Os mistérios da Mata dos Medos, um caso para Hercule Poirot
No passado dia 14 de Janeiro foi publicado neste jornal um artigo de opinião intitulado “ICNF, facilitador de negócios?”. O mesmo serviu de substrato para um outro artigo, este da autoria do presidente do Conselho Diretivo do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), publicado também neste jornal a 17 do mesmo mês, sob o título “Os Miseráveis, ou como romancear a realidade, mas com base na mentira”. Na sequência de ambos, entendeu o Público realizar uma visita à Mata Nacional dos Medos, Reserva Botânica, parte integrante da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica. Dessa visita resultou um artigo intitulado “A gestão da Mata dos Medos é polémica e a culpa é do corte dos pinheiros”, publicado no suplemento Azul, a 28 de Janeiro. É sobre este dois últimos que incide o presente artigo.
No artigo da autoria do dirigente do organismo público, pressupõe que o teor do mesmo tenha respaldo por parte da tutela. Sobre esse teor importa destacar à partida três tentativas de confundir a opinião pública.
Assim, sobre o escrutínio da operação na Mata, muito está para esclarecer. Concretamente, no que respeita ao Contrato Público N.º 123/2019/ICNF. O mais relevante está por escrutinar: quais as quantidades de toros e estilha de madeira de pinheiro manso que foram extraídas da Mata Nacional, designados pelos responsáveis do ICNF por “remanescente”? Qual a receita decorrente e a que título foi essa receita, suportada em bem público, cedida a privados, de acordo com declarações prestadas ao Público pelo director regional do ICNF? Aliás, a não ter havido retorno económico para o ICNF perspectiva-se uma contradição face à informação prestada pelo Governo ao Parlamento, como decorre da leitura do Ofício n.º 1068/2022, Proc. 32.69.02, do Gabinete do Ministro do Ambiente e da Ação Climática.
Por outro lado, alega o dirigente máximo do ICNF do reconhecimento da população e das instituições locais da mais-valia do trabalho público para a qualificação e conservação do espaço. Não esclarece que decorreu em simultâneo a execução de dois contratos públicos, um dos quais para a instalação de passadiços. Essa outra operação é muito discutível, mas não é sobre essa operação que versou o artigo de 14 de Janeiro. É sim sobre o contrato acima identificado, o qual motivou vários protestos públicos a nível local, incluindo uma posterior manifestação em Lisboa, na Praça de Luís de Camões. Não confundamos! Esses protestos foram secundados por uma tomada de posição de várias ONG, num âmbito mais alargado, visando o ICNF e não apenas sobre a gestão da Mata Nacional dos Medos.
Alega ainda o autor do artigo de 17 de Janeiro motivos de natureza fitossanitária para justificar o “remanescente”, não inscrito em projecto submetido ao POSEUR, para financiamento comunitário, nem previsto em Contrato Público. Todavia, é reconhecido no artigo do Azul, de 28 de Janeiro, por um outro responsável do ICNF, a inexistência de casos da doença da murchidão do pinheiro, que causou desde o final dos anos 90 do século passado grandes e graves prejuízos sociais e económicos na fileira silvo-industrial do pinheiro-bravo. Importa ser preciso quanto às espécies de pinheiros.
Tendo por base o teor do artigo de opinião da autoria do dirigente máximo do ICNF, foi requerida a este organismo público a consulta da documentação administrativa referente às operações desenvolvidas no âmbito das Ações 1 e 2, da Medida A, da Secção IV (pág. 21) do Contrato N.º 123/2019/ICNF, concretamente:
- Do relatório da marcação de arvoredo, de pinheiro manso, a submeter a operações de desbaste e abertura de clareiras, “correspondente a uma redução de cerca de 30% a 40%, (variável de acordo com os locais)”, onde possa ser identificado o número de árvores e em cada uma delas os parâmetros dendrométricos da opção pelo abate segundo “o critério” de seleção “pé a pé, removendo as árvores malconformadas, dominadas, debilitadas ou enfraquecidas”;
- Do Relatório que enquadre o diferencial entre o previsto nas ações do contrato, acima identificado, e o executado de acordo com o “fundamento para decidir não incorporar a totalidade do material estilhaçado”, identificando o volume de material lenhoso de pinheiro manso não incorporado, sendo que existem evidencias de saída de material torado;
- Da documentação prevista na legislação que mensure “o remanescente encaminhado para destino autorizado (cumprindo as normas fitossanitárias aplicáveis)”, com identificação desse local de destino;
- Do relatório fitossanitário que fundamente o abate de arvoredo de pinheiro manso e o seu “encaminhado para destino autorizado”;
- Do relatórios de avaliação dos riscos por agente abiótico e agentes bióticos na Mata Nacional dos Medos;
- Do documento justificativo entre a variação da área de intervenção identificada no artigo publicado no jornal e o identificado no ponto 2 do Ofício n.º 1068/2022, Proc. 32.69.02, do Gabinete do Ministro do Ambiente e da Ação Climática;
- Da documentação que identifique o volume de madeira com aproveitamento económico cujo valor tenha revertido para o orçamento desse Instituto, de acordo com o ponto 3 do citado Ofício enviado do Gabinete do Ministro ao Parlamento.
A ausência de resposta ao requerimento, por parte do ICNF, deu origem a uma queixa junto da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), formalizada a 14 de Fevereiro. A esta data ainda não houve emissão de parecer referente à possibilidade de consulta a referida documentação. Já lá vão três meses e meio. Sob gestão pública é inaceitável a inexistência no ICNF da documentação cuja consulta foi requerida.
Na sequência do artigo do Azul, de 17 de Janeiro, face às declarações de outro responsável do ICNF, foi reforçado em novo requerimento de consulta à seguinte documentação de carácter obrigatório:
- Manifestos de corte de exploração florestal, em número de seis, do “remanescente” que saiu da Mata na sequência do contrato supramencionado e que terão sido transportados para “destinos autorizados, localizados na zona de Setúbal, Poceirão e Montijo.”
A ausência de resposta ao requerido deu origem a nova queixa junto da CADA. As duas queixas originaram dois processos, posteriormente fundidos num só. Todavia, ainda sem resultados práticos. O processo unificado está “em estudo”. O caso não deixa de suscitar grande curiosidade e também uma enorme preocupação, designadamente, quanto à gestão do Património do Estado sob a responsabilidade do ICNF.
Sobre uma pilha de madeira deixada em plena Mata, junto ao Parque de Merendas da Aroeira, possivelmente para simular uma anunciada venda em hasta pública, passados quase ano e meio a mesma permanece no local. Foi mencionada ao Público a sua retirada até antes de Maio. Possivelmente, de 2024! A “tocha” continua lá. Será a aguardar um fósforo e suscitar um posterior abate de mais pinheiros mansos, no caso, ardidos? Toda a especulação é possível perante tamanha incúria, designemos assim, por parte dos dirigentes do organismo público e respectiva tutela política. Há património imobiliário privado contíguo a esta zona da Mata, esperemos que com seguro contra incêndio florestal. As seguradoras que se cuidem!
Como refere ao Público um dos responsáveis do ICNF: “Claramente temos de aprender a comunicar de uma forma mais eficaz a necessidade de intervenções”. Seguramente que sim! Muito especialmente em toneladas, metros cúbicos e euros gerados a partir do Património Público e de outros territórios sob gestão do ICNF. Não é suficiente a indicação do número de árvores envolvidas em abate. Os seus diâmetros e as alturas variam, logo o peso e o volume são distintos, assim como as receitas caso a caso e de quem delas usufrui. Neste último caso, a que título foi esse património público cedido, pelo que se lê, a título gratuito, a privados? Um caso para a Autoridade Tributária?
Ao contrário da leitura sugerida pelo dirigente público no seu artigo de 17 de Janeiro, o caso dos mistérios da Mata Nacional dos Medos sugere um romance policial de Agatha Christie. Quiçá, um caso para o inspector Hercule Poirot?
Nota de esclarecimento do autor:
Os artigos de opinião geram comentários vários, concretamente por leitores do Público. Os mesmos são tidos em conta. Por esse motivo a presente nota de esclarecimento sobre a designada “Lei da liberalização dos eucaliptos”. A autoria desta designação, com uma ou outra nuance, relativamente ao Decreto-lei n.º 96/2013, não pode ser atribuída aos autores. Ela consta em vários documento de cariz político, designadamente em programas eleitorais e de Governo, bem como em discursos de governantes. Estão os autores do artigo de 14 de Janeiro cientes do conteúdo do diploma em questão, das suas múltiplas alterações, do anúncio político quanto à sua revogação, nunca concretizada, bem como das notas informativas publicadas pelo ICNF referentes às acções de arborização e rearborização, antes e depois da proibição, com “alçapões” legais, de novas plantações de eucalipto. Um dos autores acompanha regularmente situações de ilegalidade associadas à expansão da área com plantações com esta espécie exótica, incluindo em acções de rearborização patrocinadas pela associação da indústria papeleira, antes e depois da alteração da designação desta entidade. É recorrente a tentativa de descredibilização a que os autores, estes em concreto, estão sujeitos. Tempo perdido para quem o tenta, esperamos que não seja o caso.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico