Estamos a desafiar o limite das probabilidades do clima

Estamos a desafiar o sistema climático muito para além do que seria desejável, e do que estaremos preparados para enfrentar. E a procissão das intenções de descarbonizar a economia ainda vai no adro!

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O que acontece na Antárctida não afecta só a Antárctida. O que acontece no Pacífico não afecta apenas o Pacífico. O clima é um e um só sistema, em que os diferentes subsistemas interagem entre si, criando umas vezes o equilíbrio, outras vezes a desordem e o caos, e cujas fronteiras são dinâmicas e extremamente voláteis.

A actividade humana, resultante principalmente da sua industrialização com início no século XIX, tem interferido no sistema do clima, devido à alteração muito expressiva da composição química da atmosfera (aumento de 50% de dióxido de carbono, 160% de metano e 24% de óxido nitroso).

Esta alteração, que é cerca de 260 vezes superior à taxa média natural dos últimos períodos interglaciários ao nível do carbono, tem como consequência “imediata” (à escala geológica) o aumento do forçamento radiactivo (balanço energético da radiação solar infravermelha que atinge o planeta). Isto deve-se às propriedades destes gases (como outros, incluindo o vapor de água) de absorção e irradiação do comprimento de onda do infravermelho.

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Anomalia da temperatura à superfície do mar NOAA/DR

A maior parte da energia solar que fica retida no sistema devido à presença de gases de efeito estufa na atmosfera é absorvida pelos oceanos (cerca de 84%, e apenas 4% pela atmosfera). Devido à sua forte inércia (em que uma dada massa de água que imerge pode levar 600 anos a voltar a emergir), esta grande quantidade de energia que já foi adicionalmente absorvida pelos oceanos (37x1022 Joules desde 1970, equivalente à energia libertada por cinco mil milhões de bombas atómicas, ou seja 93 milhões por ano), mais tarde ou mais cedo (talvez mais cedo do que esperado por muitos) vai voltar à superfície, e uma boa parte libertada para a atmosfera através da evaporação (na forma de energia latente, que é libertada na condensação).

Ou seja, muita da energia absorvida pelos oceanos é libertada para a atmosfera, funcionando como mecanismo de feedback positivo, i.e., vai-se adicionar à energia já absorvida e que já aqueceu a atmosfera. Este é um dos muitos mecanismos de feedback positivo que são conhecidos e que se sabe irão acelerar ainda mais o aquecimento global que estamos a observar na Terra. Pelo que os fenómenos como o El Niño funcionam como alavancas do aquecimento (e não só, mas também de amento de dióxido de carbono na atmosfera), dando novos impulsos de aquecimento global e levando às quebras sucessivas dos seus máximos históricos.

Desde o mês de Maio que o oceano Atlântico (bem como o Pacífico, associado ao surgimento do El Niño) está a sofrer uma alteração significativa na temperatura à superfície. Tendo atingido nas últimas semanas e em algumas zonas valores de 2 e 3 graus Celsius acima da sua média para esta época do ano (em média 1,1 graus Celsius acima da média global do Atlântico). É como se uma massa de água muito quente estivesse a emergir à superfície, exactamente como o que se passa numa panela de água, quando a colocamos ao lume. Certamente que muitos dos banhistas das nossas praias têm sentido essa água quente, acima do normal para a época.

São estes processos de reequilíbrio do sistema climático, como resposta às alterações da composição química da atmosfera e consequente aumento do balanço radiactivo, que alteram os padrões do clima e potenciam as alterações climáticas que se estão a verificar e se irão intensificar no futuro.

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Temperatura à superfície do Atlântico Norte Climate Reanalyzer

Mas não é só no Atlântico que estão a ocorrer alterações significativas, e surpreendentes para alguns – também no Pacífico e na Antárctida se estão a verificar mudanças significativas que têm e terão consequências que afectam todo o sistema e todos os países do mundo, quer sejam pequenos, quer grandes emissores de gases com efeito estufa. O gelo marinho em torno da Antárctida tem estado em mínimos desde o último El Niño intenso de 2015-16, com um défice de -2,34 milhões de quilómetros quadrados de extensão – o que, comparado com a média de extensão de gelo marinho do período 1988-2010 e respectiva variabilidade, corresponde a uma anomalia de 5,2 vezes o desvio padrão desse período para esta época do ano.

Ora quem percebe de estatística e o significado desta anomalia, de perda significativa de gelo marinho, sabe que isso corresponde à probabilidade de 99,99999% de esse evento não acontecer, ou de 0,00001% de acontecer (1 em 10 milhões). Tudo que é superior a 2 vezes o desvio padrão não é normal, é excepcional – e 5 vezes o desvio padrão não é excepcional, é excepcionalíssimo. O problema é que a anomalia de gelo marinho na Antárctida já está abaixo de -2 vezes o desvio padrão desde 12 de Outubro de 2022. E desde finais de 2015 apenas esteve acima desse limiar entre Agosto de 2020 e Setembro de 2021 – ou seja, o sistema de gelo marinho da Antárctida está em forte desequilíbrio, iniciado com o El Niño de 2015-16, e será com grande probabilidade afectado por o presente El Niño que se está a formar.

Para além do El Niño de 2023-24 causar um aumento de alavancagem na temperatura média global, elevando com forte probabilidade o aquecimento global para cima dos 1,5 ºC (como tem sido referido pelas autoridades meteorológicas mundiais), está a causar um forte impacto negativo no equilíbrio de um sistema importante na estabilização do clima do hemisfério sul. Nem se quer valerá a pena referir o impacto no sistema correspondente do hemisfério norte, o Árctico.

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Extensão de gelo marinho em torno da Antártida NSIDC

Se esse já era preocupante, podendo atingir já por volta de 2040 a perda completa de gelo no seu pico mínimo de Verão (por muitas vezes referido), então agora passámos a ter as duas zonas polares causadoras de elevada preocupação. Pois, é que a média do mínimo de extensão de gelo na Antárctida, que ocorre nos finais de Fevereiro, era de 2,9 milhões de quilómetros quadrados e este ano atingiu o mínimo histórico (desde que há registo) de 1,77 milhões de quilómetros quadrados, tendo sido de 1,9 milhões de quilómetros quadrados em 2022 (a primeira vez que se quebrou o limite mínimo de 2 milhões de quilómetros quadrados de extensão). É uma redução de 39%, exactamente a mesma que se tem verificado no Árctico, de 3,8 milhões de quilómetros quadrados em Setembro de 2020 contra a média de 6,2 milhões de quilómetros quadrados.

Em conclusão, estamos a desafiar as probabilidades do sistema climático muito para além do que seria desejável e do que estaremos preparados para enfrentar. E a procissão das “intenções” de descarbonizar a economia global ainda vai no adro!

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