Ribatejo: turfeira com 9000 anos, única no país, passou a reserva natural
Região de 140 hectares perto de Alpiarça passou a ser protegida desde Fevereiro e faz parte de uma rede europeia para estudar o impacto positivo que as turfeiras têm contra as alterações climáticas.
As imagens de satélite denunciam o paul da Gouxa (grafia anterior: Goucha), uma mancha verde alongada, rodeada por campos agrícolas de geometrias várias, que se situa logo a sul de Alpiarça, no Ribatejo. Ao vivo, o mesmo verde destaca-se do resto da paisagem. “É como um ambiente típico de O Senhor dos Anéis”, descreve Ana Mendes, investigadora da Universidade de Évora, referindo-se à obra de J.R.R. Tolkien. A bióloga conhece bem o paul, que tem características particulares: “É como se fosse uma esponja; saltamos e aquilo abana.”
É o início de uma manhã de Maio. A humidade e o vento conseguem, para já, afastar o calor. Ana Mendes fala no meio de uma estrada de terra. Atrás dela, abaixo, está o bosque intenso que forma o paul da Gouxa, que vai sendo apresentado pela bióloga a vários ouvintes.
Alimentado pela água que flui da ribeira da Atela, o paul situa-se no fundo de um vale encaixado – que é estrangulado no sentido para onde corre a água – e está em lenta construção ao longo dos últimos 9000 anos.
“Como cresceu ali uma floresta, com o acumular de detritos vegetais e sedimentos aquilo fecha [no estreito do vale] e começa a acumular-se água [a nível do solo]”, explica a especialista ao PÚBLICO dias depois. Ou seja, torna-se numa zona húmida. É a “água junto com a vegetação que faz com que se criem as condições para que a madeira vá para o fundo do vale e não se dê a sua degradação natural”, acrescenta.
Em vez disso, a madeira sofre processos químicos que fazem com que se transforme em turfa: um material orgânico riquíssimo em carbono e bastante calorífico. No paul da Gouxa, milhares de anos daquele processo resultaram numa das raras turfeiras da Península Ibérica, com 90 hectares, que em alguns pontos atinge os nove metros de altura de turfa.
A turfeira está embebida na água que chega da ribeira durante todo o ano, funcionando como uma esponja. Se as condições daquela região mudarem e a turfeira deixar de ser alimentada pela água – um risco que não é descabido, tendo em conta a realidade das alterações climáticas – a turfa arrisca-se a ficar exposta ao ar e a iniciar um processo de degradação.
Nesse caso, há a possibilidade de se libertar – sob a forma de dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4) – o mínimo de um milhão de toneladas de carbono que foram acumuladas ali ao longo de milénios. Se acontecer, esse fenómeno contribuiria para o efeito de estufa que ano após ano tem provocado cada vez mais fenómenos extremos.
É todo este carbono, junto com aquele ecossistema único no contexto português, que Ana Mendes está desde meados da primeira década deste século a lutar para que seja conservado e protegido. Mas a 23 de Fevereiro deste ano, a Assembleia Municipal de Alpiarça votou a favor de se estabelecer ali uma reserva natural local de 140 hectares.
“No meu papel de bióloga, isto tem uma importância muito grande”, assume Ana Mendes. “Tenho muitas horas investidas aqui para que o paul não seja destruído, seja preservado, para as pessoas saberem que é único.”
Armazéns de carbono
A visita ao paul enquadra-se nos trabalhos do consórcio europeu Rewet (Restauration of Wetlands, qualquer coisa como Recuperação de Zonas Húmidas). Além de se ter tornado uma reserva natural, o paul da Gouxa é um dos sete laboratórios abertos do Rewet situados em países europeus que estão em contextos climáticos e ecológicos diferentes. Os outros seis ficam em zonas húmidas (nem todas turfeiras) na Áustria, Bélgica, Estónia, Finlândia, Itália e Países Baixos.
Liderada pela empresa espanhola Idener, a rede vai estudar as sete zonas húmidas para avaliar o potencial de armazenamento de carbono e de libertação de gases com efeito de estufa, como o CO2 e o CH4, os riscos advindos das alterações climáticas, cujos impactos serão diferentes em cada país, e o potencial benefício do restauro daquelas zonas húmidas do ponto de vista da manutenção do carbono no solo e da retenção de novo CO2.
O impacto que as zonas húmidas podem ter na crise climática está longe de ser desprezável. As turfeiras cobrem apenas 3% de área terrestre. No entanto, ao todo, contêm mais do que 600 gigatoneladas de carbono, de acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês). Isto representa 44% de carbono existente no solo de todo o mundo, e “excede o carbono armazenado em todos os tipos de vegetação, incluindo as florestas”, lê-se no site da IUCN.
Anualmente, estima-se que as turfeiras secas libertam cerca de 1,9 gigatoneladas de CO2, o que equivale a 5% dos gases com efeito de estufa emitidos pelas actividades humanas. Em contrapartida, as restantes turfeiras que ainda estão em bom estado de conservação – e que perfazem uma área de três milhões de quilómetros quadrados – absorvem a cada ano 0,37 gigatoneladas de CO2, adianta aquele organismo.
É por isso que é tão importante manter este carbono no solo, argumenta Ana Mendes. “Pedimos às pessoas um esforço para não consumirem derivados do petróleo, mas, se não conservarmos estas zonas, é quase estar a tapar de um lado [o problema da crise climática] e a destapar do outro”, refere.
Em 2018, um regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu referente ao sector do uso do solo e das florestas exigiu que a partir de 2026 fossem também contabilizadas as emissões de gases com efeito de estufa nas zonas húmidas. Nesse contexto, um dos objectivos da Rewet é ajudar a União Europeia na forma como se faz essa contabilização.
Para isso, o consórcio recebeu 6,6 milhões de euros do Horizonte Europa num projecto de quatro anos iniciado em Outubro de 2022. A Universidade de Évora e a Câmara Municipal de Alpiarça são as instituições portuguesas ligadas à rede e esta é a primeira visita de representantes das várias instituições da Rewet e dos outros laboratórios vivos a uma das sete zonas húmidas. É para este grupo que Ana Mendes fala sobre o paul da Gouxa.
“A água está a passar pela turfa e cria este ambiente fantástico que está aqui”, conta a bióloga. Dentro do paul as árvores dominantes são os amieiros, os salgueiros e os freixos. Os amieiros são particularmente importantes porque libertam substâncias que inibem os microorganismos de fazerem a degradação da madeira. À volta dos 90 hectares do paul está uma área “dominada pelo sobreiral”, aponta a investigadora. “Há pinhal com pinheiro-manso. Globalmente, está em muito bom estado.” É esta área que perfaz os 140 hectares da reserva.
Os planos para a manhã são fazer uma caminhada de alguns quilómetros dentro da reserva, contornando o paul. “Vamos fazer a volta, não há escaladas”, diz a investigadora.
Calibrar satélites
O grupo desce da colina e a caminhada inicia-se com o paul à esquerda e o sobreiral da parte direita. Uma das pessoas no grupo é Jonas Franke, director administrativo da empresa Remote Sensing Solutions, com sede em Munique, na Alemanha, que trabalha com informação a partir da análise de imagens de satélite para, por exemplo, analisar as mudanças que as zonas húmidas sofrem ao longo do tempo.
“É importante vir aos lugares porque muitas vezes faltam-nos detalhes”, explica o geógrafo ao PÚBLICO, justificando a razão para estar ali. “Para as imagens de satélite utilizamos muitos algoritmos, mas os algoritmos têm que aprender o que vemos nas imagens e isso só pode ser feito a partir do que se conhece no território.”
A empresa é uma das parceiras da Rewet e vai ajudar o consórcio na questão das emissões de carbono das zonas húmidas, que vão ser medidas por satélite. Dos 510.000 euros que os parceiros portugueses receberam, 120.000 vão ser usados para comprar um aparelho chamado Eddy Covarience, que vai fazer parte de uma rede de aparelhos para calibrar as emissões de CO2 e CH4 libertadas em diferentes lugares pelo mundo.
“A Agência Espacial Europeia [ESA, sigla em inglês] vai lançar um satélite para fazer a medição das emissões de carbono [a partir do espaço]. Estes aparelhos vão ajudar a calibrar o satélite”, explica Ana Mendes. A missão da ESA chama-se Monitorização de Dióxido de Carbono Antropogénico do Copérnico e é constituída por três satélites. O primeiro será lançado em 2025. O objectivo é ter uma medição muito mais detalhada das emissões de CO2 e CH4 de origem humana para monitorizar a evolução do impacto humano nas alterações climáticas a nível europeu.
Para isso, é preciso uma calibração de qualidade no terreno com medições feitas em vários pontos do território, urbanos e não-urbanos, agrícolas e silvestres. “Quantos mais pontos houver, mais sensível é o sistema”, explica Ana Mendes. No paul, a monitorização vai ser feita por cima do coberto vegetal, o que permite medir a quantidade de CO2 que está a ser absorvida pelo ecossistema e a quantidade que está a ser libertada.
Esta medição também será importante para a informação coligida pelo Rewet, que depois vai providenciar os dados sobre as emissões nas zonas húmidas à Comissão Europeia, e também para o caso de ser instalado na reserva um mercado de carbono, que poderá trazer fundos. “É assim que vamos ter a certeza de quanto carbono está a ser sequestrado e libertado”, assegura a bióloga.
Durante a caminhada observa-se algum lixo aqui e ali, revelando um território que nem sempre foi bem tratado pela população. De 2004 para cá, partes da actual reserva foram alvo de conservação, já que houve, durante anos, exploração de inertes na orla do paul. Mas grande parte da caminhada passa pela Quinta da Atela, uma herdade com 580 hectares, 75 dos quais pertencem à reserva.
Em 2017, “quando comprámos a propriedade, não tínhamos conhecimento da importância do paul”, explica ao PÚBLICO Anabela Tereso, administradora da Quinta da Antela, que encontra o grupo de caminhantes mais à frente no percurso.
“Fala-se tanto em manter a natureza e cada vez mais as coisas estão deterioradas porque as pessoas não têm o cuidado de preservar o que ela nos dá todos os dias”, diz Anabela Tereso, justificando a decisão de abdicar daquela área para produção. “Gostaria que pudéssemos buscar algum apoio para criar condições para que as pessoas usufruam do espaço.”
Mais à frente, a estrada de terra batida passa perto de uma região do paul especialmente conservada, com amieiros altos e bonitos, que convidam a entrar. Mas a vedação junto à estrada não o permite. Resta ouvir Miguel Geraldes, geógrafo do Instituto de Geografia e de Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, que estuda zonas húmidas e vai fazendo de cicerone ao longo do percurso.
“Aqui temos um habitat em relativo bom estado, não estamos a ver plantas invasoras e a regra número um é não perturbar”, explica. “Estas árvores grandes são os amieiros, têm uma folha que parece um coraçãozinho. A temperatura no Verão pode estar 40 e tal graus fora do paul, mas chegamos aqui e está 20 e tal graus dentro”, descreve o investigador. A variação de temperatura torna o paul particularmente importante como região de refúgio para a fauna durante os meses quentes de Verão, especialmente no contexto do aquecimento global.
Mas aquelas condições não acontecem por milagre, dependem da entrada continuada de água na turfeira vinda da ribeira da Atela. A manutenção desta dinâmica é uma das prioridades de Ana Mendes para a reserva, cuja hidrologia vai ser objecto de estudo nos próximos anos.
“Se a turfeira não tiver o nível freático correcto, começa a libertar dióxido de carbono”, afirma a bióloga. “O objectivo é manter o nível freático para que se mantenham as condições ecológicas que permitem a formação de turfa.”
Outra medida que pode ajudar a conservar o ecossistema tem que ver com o cultivo. Não muito longe do paul encontrámos o início de uma área de exploração vinícola que, ao todo, preenche 130 hectares da Quinta da Atela.
“É importante prevenir que demasiados nutrientes escorram para aqui das áreas agrícolas”, explica ao PÚBLICO Ralf Verdonschot, investigador-chefe na área de ecologia aquática da Universidade e Investigação de Wageningen, dos Países Baixos, e que coordena os trabalhos de um dos laboratórios abertos da Rewet, que fica numa zona húmida também com turfa no Parque Nacional de Weerribben Wieden, naquele país.
Devido ao grande uso que se faz de fertilizantes, o excesso de nutrientes foi um dos problemas que o ecólogo teve de gerir na zona húmida do parque. Por isso, a área foi inundada várias vezes. “A inundação é importante para remover os nutrientes”, diz, durante uma pausa a meio da caminhada para um piquenique.
Se o paul da Gouxa começar a receber excesso de nutrientes, corre-se o risco de haver a degradação da turfeira. “A melhor forma para prevenir é criar uma zona tampão ao redor do núcleo da reserva com vegetação natural que bloqueia o fluxo de nutrientes”, sugere. Este tipo de observações é o que torna a visita do grupo do Rewet necessária, já que os vários responsáveis dos laboratórios abertos têm a oportunidade de trocarem experiências e aprenderem entre si.
À procura da turfa
A maioria das turfeiras na Europa situa-se mais a norte no continente, normalmente associadas a um musgo chamado esfagno. Por isso, há uma curiosidade especial em entrar dentro do paul e pisar a turfa num contexto do Sul da Europa.
Após o piquenique, o grupo entra no mato, sobe uma colina e desce-a por um caminho íngreme, chegando novamente a uma estrada de terra batida. Mais uma vez, a estrada é a fronteira entre dois mundos. De um lado há sobreiros altos, que vão oferecendo sombra à terra desidratada. Do outro, a vegetação fechada anuncia o início do território que é inundado pela água vinda da ribeira.
Apenas uma parte das pessoas opta por escorregar pelo declive junto à estrada para entrar no paul. A ideia era apenas sentir o lugar: o ambiente escuro, húmido e lamacento. Alguém refere que passaram por ali javalis. E ninguém se esquece da ameaça das carraças, que tinha sido um tema de conversa poucos minutos antes.
Mas a aventura parece começar naquele momento. Ali ainda não há turfeira. Num ímpeto, Ralf Verdonschot caminha em frente, resoluto, à procura de solo com turfa. É preciso atravessar por entre os ramos das árvores, desviar das silvas, às vezes rastejar pelo chão para penetrar no paul. O investigador avança alguns metros, acompanhado por outros, mas sem sorte.
“Isto não é turfa, é apenas mineral. É uma zona de transição entre os montes à volta e a verdadeira turfeira”, constata, com alguma frustração. Entretanto, Miguel Geraldes alcança o grupo dianteiro para travar a continuação da exploração, é preciso acelerar com a caminhada. A possibilidade de sentir o solo baloiçante da turfeira esvai-se e o grupo volta para a estrada.
Ana Mendes tem o desejo de estabelecer na reserva alguns trilhos para os visitantes caminharem e uma entrada dentro do paul para as pessoas terem a experiência e sentirem o que é caminhar em cima de uma turfeira. “Temos agora dois anos para fazer o plano de gestão em que são identificados onde devem ser os trilhos, quais as actividades que serão permitidas”, entre outras actividades de gestão, diz a bióloga. “É muito importante para a preservação do paul que as pessoas o visitem”, adianta.
A Quinta da Atela e a Câmara de Alpiarça estão a estabelecer um protocolo de colaboração para fazerem a gestão da reserva, diz Ana Mendes. Há ainda um conselho consultivo onde estão várias entidades, incluindo a Universidade de Évora, que emite pareceres para ajudar em todo o processo.
Uma possibilidade é haver bilhetes pagos para entrar no paul. “É a visitação do paul que vai permitir construir o modelo de negócio que o preserve”, diz a bióloga. Estima-se que o espaço terá o custo anual de 92.000 euros. Outras fontes de financiamento poderão passar por fundos comunitários e nacionais. O mercado do carbono também é uma potencial fonte económica.
Acidente infeliz
Entretanto, o Sol está no zénite e alimenta o ar com secura. Após a saída do paul, os caminhantes contornam a zona húmida, atravessam um pequeno ribeiro de água limpa, passam entre terrenos agrícolas e voltam a entrar num sobreiral para o último segmento do percurso.
Desde o início da manhã que havia a promessa de um encontro com turfa. É na última paragem que ela se cumpre, embora com o sabor agridoce. Em Setembro passado, um grupo de trabalhadores da Quinta da Atela escavou um canal com dezenas de metros junto do paul não sabendo da importância daquela zona e acabando por retirar turfa, que ficou acumulada ali perto. Quando se soube disto, foi ordenado que se parassem os trabalhos.
A destruição “não pôs em risco o paul, mas fazer um canal a drenar toda a zona teria impacto”, afirma a bióloga, que ainda não decidiu o que fazer com a situação. “Se calhar vamos aproveitar para fazer análises da turfa e expor parte dela. Uma outra parte seguramente será restaurada”, repondo no canal o material que foi arrancado, explica a investigadora, decidida a tirar o melhor partido daquilo que foi um acidente infeliz.
No fundo do canal a água lamacenta acumula-se. Mas a turfa castanha-escura, que entretanto secou mas reteve a sua textura vegetal, formada por aquilo que parecem ser pequenos extractos resultantes de um processo de séculos, está ali, pode ser tocada, sentida. É algo real, que existe, cujo significado foi crescendo ao longo da caminhada em paralelo com a importância do paul da Gouxa.
Serve também enquanto documento da fragilidade das coisas, da facilidade com que uma acção errada pode pôr em risco um pedaço do mundo natural. Nesse sentido, é um pequeníssimo exemplo das múltiplas acções humanas que produzem fenómenos como as alterações climáticas, a poluição, a perda de biodiversidade e, em última instância, podem pôr em risco as condições da vida na Terra tal como a conhecemos.
Mas Ana Mendes não acredita na inevitabilidade desse cenário. A criação da reserva é uma prova disso. “Parece que as alterações climáticas são um processo passivo e não são”, tinha dito a bióloga, logo ao início da manhã. “Nós temos um papel activo na construção do futuro. Se nada fizermos, nada acontece.”