A Era do Antropoceno – o grande elefante na sala
Estamos numa época crucial. Enquanto, numa sala, governos assinam compromissos de conservação do Património Natural e da Humanidade, na sala ao lado, os mesmos governos assinam compromissos económicos de crescimento sem limite e desregulado. Parece, no entanto, fundamental começarmos a pensar, antes de mergulharmos na utopia. Nunca haverá um crescimento económico sustentável se não forem estabelecidos limites. Há uns anos, ouvia-se e lia-se acerca de um “desenvolvimento sustentável”. Hoje, parece que só o “crescimento económico” importa. E, curiosamente, é a este que vemos sempre associado um arco-íris de carimbos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Para crescer economicamente, basta-nos encher tanques de água, sabendo, no entanto, que secamos os rios. Mas não podemos fazê-lo advogando uma evolução, dizendo que fazemos tudo isto enquanto salvamos os rios e enriquecemos os pobres. E é nesse ponto que estamos – na utopia da Era do Antropoceno. Uma fase dramática da evolução, em que nos achamos deuses, levando pela frente o que nos sustenta, galgando ondas sob o pretexto de sucessivas emergências. Vendendo a ilusão de que podemos recuperar o Património Natural e da Humanidade a tempo, e antes da próxima emergência.
Olhemos para o sistema dunar. A diferença entre o tempo da sua regeneração e o da sua destruição, e os respetivos custos coletivos, mostra-nos que a sua destruição, autorizada, segue uma dinâmica economicista de curto/médio prazo. Já a sua regeneração exige investir muitos mais milhões de euros do que aqueles que se ganham, coletivamente, com a sua destruição, e leva décadas nesse investimento continuado. A sucessão ecológica não se compadece com os ciclos económicos, nem tão-pouco com os seus subsequentes – os ciclos políticos. E não se compensa a ausência de um sistema dunar, plantando campos de golfe ou canteiros de plantas exóticas bonitas, sob o argumento de se aumentar zonas ditas “verdes”. E não, também não se consegue prevenir a erosão da orla costeira com pontões arquitetados pela mais avançada tecnologia. A hipocrisia do Antropoceno.
Falemos na emergência energética, que, sob a bandeira de argumentos adequados, a emergência climática, tem como motor um potencial desaceleramento da economia pelo crescente custo da energia. Aqui, em vez de traçarmos uma estratégia de transição responsável, assinamos compromissos de execução em que a referência se fica por metas percentuais para a produção e eficiência energéticas, enquanto se simplificam ou fazem desaparecer procedimentos de licenciamento ambiental. O resultado aparente e mais visível parece ser o legitimar da destruição de paisagens naturais e/ou sinergéticas para se transitar de fornecedor de energia.
De observar também que, pouco tempo depois de ser tornado público o Tratado para o Mar Profundo, parece ser urgente a legitimação da mineração da mesma profundidade do oceano em prol, também, da almejada transição energética. Como se a conservação dependesse apenas dos limites de áreas protegidas. E como se conseguíssemos prever efeitos, ou mitigar impactos, em ambientes que mal conhecemos. O paradoxo da fé no Antropoceno.
Seguimos então na utopia de que podemos pôr palas nos olhos, fingir que não interessam os impactos cumulativos, a interdependência de ecossistemas, e viver na ilusão de que sabemos naturalizar sistemas artificiais, mantendo as funções dos ecossistemas originais vivas, e ir executando emergentemente a sua destruição, porque dizem ser urgente.
Cai-se então numa troca vazia de argumentos. Os que querem a redução da dependência de combustíveis fósseis são atirados ao ridículo, porque afinal parece também não quererem a transição energética. Quando o que contestam não é a transição, mas a forma como ela está a ser executada. De facto, o caminho mais fácil é este, o de encostar uma sociedade à parede, argumentando que, se não se destruir parte da natureza, não se consegue ser amigo da própria natureza. As incongruências do Antropoceno.
Convenhamos, dizer que “os parques solares serão os novos ecossistemas terrestres”, como já se ouve em alguns setores da administração, é basicamente a mesma coisa que dizer, com as devidas diferenças, que as plataformas offshore de extração de petróleo são, à escala geológica, os mais recentes ecossistemas marinhos.
Sempre que uma política segue uma emergência não associada a uma catástrofe, devemos ter reservas. E não esquecer a diferença entre o que é emergente e o que é urgente. Emergente é traçar estratégias, conhecer necessidades, gerir consumos, entender capacidades de produção e os seus custos, a capacidade de carga, acautelando que não se provocam danos colaterais noutras crises, como a da biodiversidade. Transitar é urgente, aceitando que o consumo infinito, requerido pelo infinito crescimento económico, nunca será uma possibilidade no que respeita à sustentabilidade. A atual emergência energética parece estar simplesmente reduzida à emergência de se esgotarem os milhões de euros disponibilizados para a chamada transição energética, não para se traçar uma estratégia pública basilar, mas para desbravar território para a construção de infraestruturas privadas. As prioridades emergentes do Antropoceno.
De uma forma geral, sem diferenciar cores no arco-íris político, os governos tendem a impulsionar políticas aplicáveis, vejam só, a espécies que não existem – os unicórnios e os tubarões financeiros. Os únicos que sobreviverão neste mundo de ilusões enquanto existir alguma réstia de memória coletiva. A tragédia do Antropoceno.
Temos hoje uma sociedade mais informada, com melhor acesso a todas as fontes de informação, exigente em tantos aspetos importantes, e que de vez em quando mostra a sua capacidade de mobilização para causas coletivas. Não me parece que esta sociedade se possa enganar durante muito mais tempo. Há um grande elefante na sala. É talvez hora de evoluirmos, e de sairmos coletivamente deste Antropoceno que em nada eleva a sociedade humana.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico