Biorresíduos: estamos a perder o comboio da compostagem
Se ainda não ouviu falar de compostagem doméstica ou comunitária, ou mesmo na recolha selectiva de biorresíduos, de certeza esse tema não tarda a chegar ao seu quotidiano. Portugal tem até Dezembro para implantar a recolha selectiva de biorresíduos e o seu tratamento em separado, mas acredito que não estamos de todo preparados para cumprir as metas que foram estabelecidas.
A compostagem é um assunto que está em alta desde 2020, quando o Decreto-Lei 102-D/2020 estabeleceu a obrigatoriedade da recolha selectiva de biorresíduos pelos municípios e a proibição de posteriormente misturá-los aos orgânicos provenientes da recolha indiferenciada. Após tantos anos a trabalhar com compostagem, vejo o quanto ainda estamos atrasados em matéria de transformação social quando o assunto é a gestão sustentável dos nossos resíduos.
Há um par de décadas, estamos a trabalhar o assunto da reciclagem de embalagens, sendo o resultado ainda muito pouco expressivo: o destino final de resíduos sólidos para a reciclagem foi, em 2021, de apenas 14% (RARU, APA, publicado em Outubro de 2022). Defendo que é urgente reavaliarmos a forma como estamos a comunicar a importância da separação dos resíduos na fonte (em nossas casas) para o público em geral.
Recentemente, acompanhei a implementação de projectos-piloto muito similares de distribuição de compostores domésticos para jardins, ou a implementação de compostores comunitários em zonas urbanas. Em 2023, ao observar a execução de alguns projectos financiados pelo Fundo Ambiental no âmbito do RecolhaBio, notei uma forte tendência para a destinação de fundos para a aquisição de compostores de jardim para serem distribuídos para a população. É regra o reduzido investimento em educação ambiental, o que na minha opinião deveria ser o combustível para qualquer mudança significativa nas metas de reciclagem (orgânica ou não) no nosso país. O investimento na parte de sensibilização é de 15-20% do total financiado, em média. Para atingirmos as metas comunitárias, temos de ir além de formações pontuais e campanhas de sensibilização que apenas tocam à superfície da questão dos resíduos domésticos.
A criação de projectos de educação ambiental tem de ser pensada de forma mais transversal, em que os temas são escolhidos conforme cada território e as suas particularidades: não consigo conceber projectos de compostagem doméstica em zonas rurais que não sejam implementados de forma conjunta com projectos de prevenção de incêndios, por exemplo. As zonas rurais do nosso país são estratégicas para a implementação de projectos de sensibilização que abordam a mitigação das mudanças climáticas de forma não segmentada, fazendo ligações entre a compostagem, a limpeza das florestas e dos terrenos, a redução das queimadas e, consequentemente, a redução da emissão de gases de efeito estufa durante este momento final de preparação do país para o verão. São também nessas zonas onde temos a maior capacidade de absorção do composto final em projectos de agricultura orgânica, sendo mais fácil escoar os subprodutos da compostagem ou da digestão anaeróbia.
Ao estudar as limitações de projectos descentralizados de tratamento de biorresíduos na Europa, topei com uma expressão que pareceu-me central para dar destino ao meu incómodo: o nível de “preparo” da sociedade, ou societal readiness level como nomearam os autores. Sempre argumentei que a nossa sociedade ainda não está preparada para fazer a separação dos resíduos orgânicos em casa, muito menos para a compostagem doméstica ou comunitária. Claro que há excepções, que resultaram na grande adesão à compostagem doméstica mesmo em apartamentos sem varanda. Mas não sou ingénua de pensar que essa é a regra: no mesmo prédio onde vive uma família adepta da vermicompostagem, por exemplo, há uma dúzia de famílias que ainda não têm claras as regras para a separação de embalagens para a reciclagem.
Vejo apenas um caminho possível para eventualmente cumprirmos as metas europeias de recolha e tratamento selectivo de biorresíduos: no bom sentido, é preciso “uma lavagem cerebral” para que possamos enxergar a gravidade que é enviarmos tantos recursos para o triste fim dos aterros sanitários. Por mais clichê que isso pareça, não há volta a dar quando está em causa uma mudança estrutural de comportamento entre quatro paredes.
Mas uma educação ambiental transformadora é muito mais complexa do que algumas sessões de formação em compostagem doméstica, e exige um planeamento muito meticuloso de transformação de mentalidades, que seja intergeracional e transversal a todos os ambientes em que estamos inseridos: doméstico, escolar e laboral.
Estratégias de sensibilização “fora da caixa” são normalmente vistas com desconfiança e receio, e também custam mais que o lugar-comum das palestras. Exigem a criação de comunidade, o despertar do sentimento de responsabilização individual e a clarificação dos papeis de cada actor da sociedade em cada etapa da transição para a gestão circular e ecologicamente eficiente dos resíduos urbanos.
Há tempo para uma revolução educacional para cumprirmos as metas antes de 2024? Eu pessoalmente acredito que não, mas em 2023 ainda há tempo suficiente de criarmos um plano conciso para de facto transformar a relação dos portugueses com os seus resíduos.