São raros os glaciares que ficam sem neve na Antárctida – mas este ano aconteceu. Veja o antes e depois
É o segundo ano consecutivo em que a Antárctida tem degelo superior à média. Glaciares que perdem toda a sua cobertura de neve “não conseguem sobreviver”, alerta-se. Arraste para ver a diferença.
Muitos glaciares na Antárctida nunca ficam completamente descobertos de neve, mesmo depois do fim de cada Verão no hemisfério Sul. Este ano, no entanto, as temperaturas anormalmente altas derreteram várias regiões nevadas na península, no braço da Antárctida que se projecta para a América do Sul, até ficar com o seu solo descoberto.
Este é o segundo ano consecutivo com um degelo superior à média na península – uma área que está a aquecer cinco vezes mais rápido que a média global – e que está a gerar cada vez mais preocupação entre cientistas e investigadores.
As temperaturas, superiores à média em todo o extremo Norte do continente, começaram a subir durante o mês de Novembro e duraram até Fevereiro. Nessa altura, vários glaciares já estavam quase, ou completamente, livres de neve, de acordo com imagens recolhidas por satélite.
As análises preliminares mostram que a temperatura média dessa altura de degelo foi de cerca de 1,5º graus Celsius acima da média na Base Esperanza, localizada na ponta da península. Várias regiões ao longo da costa, mais para o interior, tiveram mais 15 a 20 dias de degelo do que o normal num Verão.
A 19 de Fevereiro, a neve cobria apenas 7% da massa de gelo da ilha Eagle, localizada na costa oriental, no topo da península.
A alguns quilómetros ligeiramente a sudeste, a ilha Vega estava completamente sem neve na sua extremidade oriental, deixando expostos pontos da rocha-mãe. A extremidade ocidental da ilha perdeu 70% da sua cobertura de neve.
Pelo menos três glaciares a alguns quilómetros para sudoeste, na ilha James Ross, desapareceram. Eram os glaciares San Jose, Lachman e Triangular.
Glaciares em risco
“Se não vos dissesse que aquilo são glaciares, talvez não pensassem que seriam”, disse Mauri Pelto, um glaciologista da Universidade Nichols College, em Massachusetts, nos EUA. “Penso que ficariam confusos por existirem glaciares na Antárctida que estão realmente em risco.”
Pelto afirma não ter visto “um período com tantos glaciares assim tão descobertos de neve” em imagens de satélite, pelo menos desde o início deste século. “Desse ponto de vista, é mais generalizado do que qualquer outro exemplo que eu conheça.”
Mais para o interior, as plataformas de gelo, que raramente assistem a um degelo significativo, também sentiram os efeitos do calor. As plataformas de gelo de Getz e Sulzberger passaram por cerca de dez dias de derretimento, o dobro da média nesta época do ano, de acordo com o National Snow and Ice Data Center.
Este centro revelou também que os charcos de degelo – poças onde a neve e o gelo derretem e formam uma espécie de lago – também se formaram em toda a plataforma de gelo George VI, com uma dimensão que rivalizava com a extensão recorde da estação de 2019-2020.
Ted Scambos, um investigador sénior na Universidade de Colorado, em Boulder (EUA), disse que o número de dias de degelo e a presença de charcos de degelo podem muitas vezes assinalar uma estação de calor e derretimento na região.
Atingiu-se também este ano um recorde no nível mínimo de gelo marinho na Antárctida, embora Scambos diga que estes níveis podem também ser influenciados por factores relacionados com o oceano, para além do aquecimento climático causado pelo homem.
A maioria do degelo na Antárctida ocorre na península, onde as temperaturas são geralmente mais amenas do que no resto do continente. Enquanto a península viveu um Verão quente este ano, a análise preliminar das temperaturas mais no interior da Estação do Pólo Sul de Amundsen-Scott acaba de registar o período mais frio entre Setembro e Fevereiro desde, pelo menos, o ano de 2000 – um facto que sublinha a variedade do clima em toda a região.
Scambos explicou que as condições quentes desta estação na península foram causadas por ventos mais fortes do que o habitual, vindos do Pacífico Sul que sopraram contra montanhas de um dos lados da península. Estes ventos, chamados foehn, são secos, mas também muito quentes. Por isso, induzem muito derretimento da superfície, especialmente no lado oriental da península.
Ocorreu, no ano passado, um acontecimento de vento foehn semelhante a este que causou derretimento acima da média em toda a península, disse Scambos. “Como resultado, têm vindo a acontecer novas mudanças no gelo permanente da península, nos glaciares que repousam em terra e nas plataformas de gelo”, acrescentou.
A península tem tido tendências gerais de aquecimento a longo prazo desde 1950, disse Jorge Carrasco, um investigador da Antárctida na Universidade de Magallanes, no Chile. No entanto, as condições da península têm variado em períodos de tempo mais curtos: entrou numa fase de aquecimento entre cerca de 1951 e 1998, depois começou a arrefecer ligeiramente durante cerca de duas décadas.
Mas durante o arrefecimento, dizem os investigadores, as temperaturas não desceram “nem perto do que tinha aquecido antes”. A península entrou noutro período de aquecimento em 2016 até ao presente; e, nos últimos dois a três Verões, teve um ano de degelo acima da média. Apesar das flutuações, Carrasco afirmou que as temperaturas do ar próximo da superfície ainda mostram um aquecimento geral dentro da média.
“Períodos inferiores a 20 anos, com tendência tanto de aquecimento como de arrefecimento são normais na península Antárctida, uma região que apresenta uma grande variabilidade interanual”, afirma Sergi González-Herrero, cientista atmosférico e climático do Instituto WSL para a Investigação da Neve e Avalanche na Suíça.
González-Herrero disse ainda que muitos factores podem estar a influenciar o longo aquecimento observado, incluindo factores naturais do clima, a diminuição do ozono perto do pólo e as alterações climáticas causadas pelo homem.
“A principal reacção da Antárctida às alterações climáticas tem sido uma mudança nos padrões dos ventos”, explicou Scambos. “A península é uma das áreas da terra com um aquecimento mais fugaz, o que está relacionado com uma tendência geral para ventos mais rápidos (em torno do pólo), um Pacífico mais quente e ventos de noroeste que chegam por cima da península.”
Scambos explicou que os ventos mais rápidos estão relacionados com o aquecimento geral em volta das partes tropicais até às temperadas da Terra, o que causa ventos mais fortes em torno da Antárctida.
González-Herrero disse ainda que os padrões de vento circumpolar mais fortes estão a criar ventos mais intensos, que têm mais probabilidade de atingir temperaturas do ar recordes e que podem acelerar o derretimento glaciar.
Em Fevereiro de 2020, a Antárctida bateu o recorde de temperatura mais alta quando a Base Esperanza, na ponta da península, marcou os 18,3ºC Celsius. A ilha Eagle também sofreu um degelo intenso, perdendo cerca de 20% da acumulação de neve sazonal da região em cerca de uma semana. González-Herrero, juntamente com os seus colegas, descobriram que o aquecimento climático amplificou a onda de calor de 2020, assim como na de 2022.
“A península Antárctida é considerada um ponto de aquecimento, uma região que é e vai ser afectada pelas alterações climáticas”, afirmou Carrasco. À medida que as temperaturas sobem, os glaciares e a península continuarão a sentir estes efeitos.
“Glaciares como estes, que estão constantemente a perder toda a sua cobertura de neve e que têm este aspecto no final do Verão, não conseguem sobreviver”, disse Pelto. “Então é apenas uma questão de quão rapidamente vão derreter.”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post