Acordo de Paris: missão (quase) impossível
O recente relatório síntese do sexto ciclo de avaliação (AR6) das alterações climáticas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) dá-nos um resumo das conclusões dos diversos relatórios publicados desde 2021, no que toca aos motores do aquecimento global e ao modo como deve o mundo adaptar-se e mitigar esse fenómeno. O cenário que temos pela frente é sombrio e desafiante. Para cumprirmos o Acordo de Paris, até 2030 teremos de reduzir as emissões globais para metade. Porém, neste momento a estimativa é de um aumento de 14%.
Ora, fazer face a esse gap de 64% (i.e., de +14% para -50%) em sete anos exigiria uma revolução imediata nas nossas economias e estilos de vida. A redução anual das emissões teria de ser superior à que ocorreu no ano de maior confinamento (2020) – porém, sem termos as nossas vidas e economias confinadas. Ainda por cima, num quotidiano cada vez mais rico em apelos urgentes – da guerra na Ucrânia, às diversas crises financeiras, económicas e sociais. É essa a magnitude do nosso desafio.
Ainda que o IPCC já tenha sido criado em 1988, mais de metade das emissões históricas (i.e., desde 1750) ocorreram após essa data. Apesar da sua criação e de termos uma noção clara dos motivos e consequências da emissão de gases com efeito de estufa, desde então batemos recordes, ano após ano. Em 1997, o Protocolo de Quioto foi uma primeira tentativa para inverter essa tendência, mas não correu bem. A década com mais emissões de sempre foi 2010-2019. Em 2015, celebrou-se o Acordo de Paris. Porém, mais uma vez, os países não estão a fazer o suficiente. Segundo o recente relatório do IPCC, “sem um reforço das políticas projeta-se um aquecimento global de 3,2°C até 2100.” A diferença pode parecer pequena, mas é catastrófica.
O desafio das alterações climáticas requer uma abordagem semelhante à adotada para fazer face ao buraco na camada do ozono – que nos protege dos raios ultravioleta. Identificada a sua origem na década de 1980, sob a égide das Nações Unidas, o mundo baniu o uso de certas substâncias químicas, através de um protocolo assinado em 1987. Se nada tivesse sido feito, provavelmente já não seria seguro irmos à praia em Portugal durante o verão. É verdade que o desafio da transição energética e das dietas alimentares é muito mais complexo. No que toca aos combustíveis fósseis, não só estes estão muitíssimo entranhados em tudo, como a adoção em larga escala de energias renováveis envolve investimentos avultados e um longo tempo de infraestruturação.
Mas há outro aspeto que foi decisivo para que o mundo agisse com sentido de urgência e escala no caso da camada do ozono: os dois principais líderes globais à época compreendiam bem a sua importância. Tatcher era engenheira química e Reagan tinha tido cancro da pele. No caso das alterações climáticas, temos (ainda) pouca experiência direta das suas consequências e, na realidade, os nossos cérebros não processam diferenças de 1 ou 2 graus centígrados. Por isso, é normal sermos céticos ou desvalorizarmos o problema. O ser humano tende para o que tem materialidade imediata, para o interesse próprio e para a consonância cognitiva – e o aquecimento global (ainda) não satisfaz nenhuma dessas premissas.
Na COP24 das Nações Unidas, que teve lugar em Katowice (Polónia), em 2018, pude experimentar um vinho Bordéus 2050. Bordéus desafiou um grupo de cientistas a estimar a evolução do clima na região, caso a evolução seja a que se prevê atualmente. Depois, foi buscar as mesmas castas a zonas onde já se verificam as condições climáticas deverá enfrentar em 2050, nomeadamente, à Tunísia e a Espanha. O resultado é dececionante: um dos melhores vinhos do mundo perder-se-á para sempre. Neste caso, provar o impacto das alterações climáticas ajudou a mobilizar todos os atores – públicos e privados – de Bordéus para uma ação coletiva em prol da descarbonização da região.
Em Portugal, temos os desafios da Lei de Bases do Clima, da implementação do PNEC 2030 e do RNC 2050, das compras públicas (e privadas) verdes, e da adoção de diversas diretivas e diretrizes da UE. Será um caminho complexo e exigente, para o qual não parece haver a determinação e a criatividade necessárias. E, como sempre, as desculpas para a inação abundam: há outros com mais obrigação moral ou capacidade financeira, o meu contributo é irrelevante, a inovação tecnológica salvar-nos-á, entre tantas outras. Certo é que não será possível mantermos os nossos modelos de desenvolvimento e estilos de vida atuais e, ao mesmo tempo, assegurar o cumprimento do Acordo de Paris – vital para o bem-estar das futuras gerações. Como se diz no último relatório do IPCC, é agora ou nunca.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico