O nuclear e a (des)União Europeia
Nos últimos dias muitos ficaram surpreendidos ou agastados com os esforços negociais da França que conseguiu iniciar uma aliança nuclear europeia (de 11 países, liderados pela França) e dar à eletricidade nuclear um estatuto equivalente ao das fontes renováveis para produção de hidrogénio (o hidrogénio rosa).
Em relação à eletricidade usada para a produção de hidrogénio o limite imposto pela Comissão é de 64 gramas de dióxido de carbono (CO2) por cada kWh de electricidade produzida. Em 2021 (segundo a Agência Europeia do Ambiente) a média de emissões na geração eléctrica para a UE foi de 275 gCO2/KWh. A Alemanha, apesar do investimento substancial em energias renováveis, continua muito acima deste valor com 402 gCO2/kWh e Portugal com 220 gCO2/kWh. Apenas dois países estão em condições de respeitar este critério, a França (67 gCO2/kWh) e Suécia (9 gCO2/kWh). Tal só é possível porque grande parte da sua eletricidade é produzida a partir da energia nuclear (31% na Suécia e 75% em França).
Várias vozes levantaram-se imediatamente contra esta decisão, recuperando velhos mitos contra o nuclear e alguns novos. O que se realça de todo o criticismo é que, por um lado, apontam o hidrogénio produzido com base em energia nuclear como uma solução cara, mas, por outro, temem que o hidrogénio produzido com eletricidade a partir de energia nuclear possa criar uma grande distorção do mercado de eletricidade, prejudicando a transição energética verde.
Desta atitude transparece o grande receio de que esta movimentação da França ponha em risco a estratégia ibérica para transformar a península num hub do hidrogénio. Em Portugal a produção de hidrogénio irá exigir investimento em produção de energia renovável exclusiva para suprir essas necessidades, porque, apesar da quantidade significativa de fontes de energia renovável, há situações em que a produção de gás e importação se fazem necessárias, resultando num aumento do conteúdo de CO2 na eletricidade, que pode chegar a valores de cerca de 230g/kWh.
O hidrogénio rosa verde é! A energia nuclear é limpa produzindo 5-6 g CO2 /kWh e o nuclear não tem intermitências que ponham em causa a fiabilidade do funcionamento dos electrolisadores e a rentabilidade destes. De acordo com o previsto no REPowerEU, a União Europeia pretende produzir, a nível interno, 10 milhões de toneladas de hidrogénio renovável e importar outros 10 milhões de toneladas. Há espaço para múltiplas soluções de produção de hidrogénio, uma vez que a Europa não terá capacidade para produzir o suficiente para as suas necessidades. No entanto, é compreensível que muitos olhem para as iniciativas francesas com apreensão porque preocupantes são também as notícias do custo estimado para a transição energética na Alemanha, mesmo após os 500 mil milhões investidos nos últimos anos no Energiewende, um valor da ordem de 1 bilião de euros (um milhão de milhão de euros)!
Vários aspectos sobressaem do plano alemão começando pela dimensão e a incerteza quanto ao sucesso de algumas apostas: a Alemanha precisa de descobrir como gerará eletricidade quando o vento e o sol não estiverem disponíveis. O plano alemão, até agora, envolve preparar uma frota de novas centrais a gás que mais tarde poderão funcionar com hidrogénio, para evitar a escassez de eletricidade durante os períodos de pico de procura, à medida que o país se afasta da energia nuclear e dos combustíveis fósseis. Sem novas centrais de gás, a Alemanha enfrenta uma lacuna de capacidade de eletricidade de 30 gigawatts até 2030, para fazer face ao aumento da carga de pico devido à eletrificação que, de acordo com o índice bianual Energiewende da McKinsey, a expansão das energias renováveis sozinha não pode suprir.
Por outro lado, a simultaneidade de projectos energéticos megalómanos em vários países pode resultar em ausência de recursos (mão de obra, equipamento), incluindo a quantidade de materiais necessários para os quais poderá não haver produção suficiente o que não só aumentará os preços como poderá tornar impossível cumprir os objectivos. Neste campo enfrentam dificuldades para encontrar investidores dispostos a assumir projetos tão caros nos quais não se pode descurar o efeito de canibalização, porque, quanto mais potência for instalada (sobretudo intermitente), menos a energia vai valer, devido aos períodos de excesso de produção, tornando os projectos menos atrativos. E dada a dependência de terceiros (em particular e cada vez mais da China), basta um problema num dos países-chave em tecnologia ou materiais críticos e toda a transição está posta em causa. Apesar de tudo é provável que no fim do mês as centrais nucleares alemãs, que em 2022 produziram 6,7% da electricidade produzida (33 TWh), sejam encerradas.
Em Espanha também começam a emergir sinais de alarme e dificuldade em concretizar alguns projectos. Existe uma saturação do mercado, na procura por financiamento, equipamentos, aumentam os custos e falta mão de obra altamente especializada. O investimento esperado em energias renováveis e na produção de hidrogénio é substancial.
Só a REN antecipa um valor de investimento que pode ultrapassar os 500 milhões euros, muito à boleia do hidrogénio verde. O Governo estima que o setor energético mobilize 60 mil milhões de euros de investimento, sobretudo privado, até 2030.
Com tantas notas de preocupação a nível europeu que põem em causa a capacidade de execução da transição energética, devemos estar preocupados com as iniciativas francesas, não porque estas causem uma grande distorção do mercado de eletricidade, prejudicando a transição energética verde, mas porque existem vários sinais no horizonte que indicam que o mercado do hidrogénio será mais concorrencial do que esperávamos, que a Alemanha parece trilhar um caminho que levará à perda de competitividade e que transição para as renováveis será espinhosa, cara e difícil de concretizar.
A divisão cada vez mais evidente entre a posição francesa e a posição alemã envia um sinal forte de desunião europeia, quando devíamos trabalhar para procurar sinergias e encontrar as melhores soluções para a transição energética. A confirmar-se a intenção da Comissão de incluir o nuclear nas tecnologias elegíveis para esquemas de apoio para novos investimentos em geração, as vozes de desunião far-se-ão ouvir em breve. Velhos mitos e alguns novos serão esgrimidos. No final, os vencedores podem ser alguns países fora da Europa. A pílula dourada da transição energética baseada apenas em renováveis está cada vez mais difícil de engolir!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico