Clima: estará a Primavera a chegar mais cedo?
Nos Estados Unidos, espera-se “uma Primavera anormalmente precoce”, mas os alertas estão por todo o lado: a flora está a acordar cada vez mais cedo e a culpa pode ser das alterações climáticas.
O fenómeno é silencioso e evolui de forma discreta, mas as alterações climáticas estão, aos poucos, a antecipar a chegada da Primavera. Foi o programa Copérnico, a missão da União Europeia para a observação da Terra, que deixou um dos alertas mais recentes: em Almogía, na província espanhola de Málaga, as amendoeiras floriram mais cedo.
Com uma imagem de satélite capturada a 12 de Fevereiro e publicada quatro dias depois, a missão europeia Copérnico notou que as amendoeiras estavam a dar flores prematuras, alertando que isso poderá vir a comprometer futuras colheitas devido à exposição ao frio e à assincronia com animais polinizadores, como as abelhas.
Já nos Estados Unidos, a Primavera está a abrir caminho com um mês de antecedência. Em Nova Iorque, as temperaturas estão a subir e, em Washington, as famosas cerejeiras já estão a florir sem esperar por meados de Março, revela uma notícia da Bloomberg. Citada no artigo, Theresa Crimmins, directora da Rede Nacional de Fenologia dos EUA, refere: "É definitivamente uma Primavera anormalmente precoce e quente no Nordeste deste ano; eu tinha hesitado e não queria não exagerar, mas realmente parece bastante evidente".
A investigadora, que é também professora na Universidade do Arizona, nota que, em 2017 e 2020, a cidade de Nova Iorque teve primaveras precoces, mas o calor deste ano estará a ultrapassá-las. "As condições têm sido definitivamente muito mais quentes do que a média em Nova Iorque desde o início do ano, e como resultado, as plantas e os animais estão definitivamente a começar a acordar", confirma.
Esta chegada não é propriamente oficial, visto que as estações são delineadas, não através das condições climatéricas, mas sim de equinócios e solstícios. O equinócio de Primavera, altura em que a noite e o dia duram exactamente o mesmo tempo, anuncia a chegada oficial desta estação do hemisfério Norte e isso nada tem a ver com a temperatura, a precipitação ou a quantidade de flores que vemos no parque ao pé de casa.
Se, por um lado, mudanças na temperatura e na precipitação média anual fazem parecer que as estações estão trocadas, por outro, “a Primavera está perfeitamente definida”, relembra Filipe Duarte Santos, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS).
Contudo, a linha que separa as diferentes estações está cada vez mais turva, à medida que, com as alterações climáticas, características de umas começam facilmente passar para outras. Plantas a florir mais cedo que o suposto – como alertaram a missão Copérnico e a Rede Nacional de Fenologia dos Estados Unidos – é mais um exemplo da forma como as alterações climáticas estão a trocar as voltas à biodiversidade.
“O que se passa é que, como as temperaturas são mais altas, as plantas andam desnorteadas. Plantas ou árvores que, no passado, davam flor só a partir de uma certa data, estão agora a dar mais cedo”, observa Filipe Duarte Santos.
Já Helena Ribeiro, docente e investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) e também responsável pelo jardim fenológico do Instituto Geofísico da Universidade do Porto (IGUP), explica o que está a desnortear as plantas: “A partir do momento em que as condições de temperatura e fotoperíodo voltam a ser favoráveis, uma cascata de respostas fisiológicas é desencadeada”, esclarece.
Bom tempo sinaliza às plantas que estas podem começar a crescer e, “com a ocorrência de temperaturas favoráveis fora de época, como o que se observou nas últimas duas semanas, algumas espécies antecipam o seu ciclo”, continua a investigadora. Ver as cores da Primavera ainda em Janeiro ou Fevereiro é como uma lufada de ar fresco nos dias cinzentos de Inverno, mas a verdade é que a alteração das rotinas das plantas tem implicações sociais e económicas, inclusive em Portugal.
Um novo normal
A imagem partilhada pela Copérnico levantou dúvidas: afinal, não é o mês de Fevereiro que marca o início do florescer cor-de-rosa e branco das amendoeiras? Dizem os manuais que, entre o final de Janeiro e Março, é comum ver várias regiões da Península Ibérica adornadas com amendoais em flor, mas o clima parece estar a trocar as voltas às plantas e a antecipar este momento. São, por vezes, diferenças muito subtis de poucas semanas ou dias e que podem variar de região para região, mas são o suficiente para que sejam notadas por quem cuida destas culturas.
João Ferreira de Andrade, produtor de amêndoas na Quinta da Lagoalva de Baixo, no Ribatejo, contava ao PÚBLICO no ano passado que já tinha floração em Janeiro, mais cedo do que previa. No Alentejo, o florir dos amendoais foi ligeiramente diferente, iniciando-se apenas uma semana antes dos cálculos dos agricultores em determinadas zonas. O fenómeno tem diferentes contornos de região para região e parece ter vindo para ficar, tendo sido o novo normal dos últimos cinco anos. E este ano não parece fugir à (nova) regra.
“[Este ano] já há algum abrolhamento, mas está a ser semelhante aos dois anos anteriores. É provável que, nas espécies mais exigentes em frio, como viram as suas necessidades satisfeitas mais cedo, haja alguma antecipação”, refere ao PÚBLICO Ana Paula Silva, docente e investigadora da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
Em Portugal, o calor e a menor probabilidade de geadas tardias facilitam a produção de amêndoas mais a Sul, mas, agora, amendoais multiplicam-se do Norte ao Algarve à medida que as temperaturas aumentam. O florescer precoce é um problema ao qual os produtores já se adaptaram, procurando, desde cedo, fugir às consequências de um planeta em mudança ao escolher variedades desta planta mais adequadas ao clima de cada região. Assim, no Norte, planta-se as amendoeiras que florescem mais tarde para evitar que estas congelem; a Sul, ver floração ainda em Janeiro já se torna natural.
As amendoeiras não são um caso isolado: há cerejeiras a florir mais cedo um pouco por todo o mundo e os castanheiros e vinhas parecem estar no mesmo caminho. Também o jasmim, “que costuma florir em Março, está a florir agora em Fevereiro”, nota Filipe Duarte Santos.
Também no jardim fenológico do IGUP, já há flores a aparecer. “Já verificámos algumas flores abertas na Forsythia [lilaseiro chinês] e no Populus [choupo]. Os gomos florais da Fagus [faia] já saíram do estado fenológico de dormência. Incharam e mudaram de cor, o que é usual só acontecer no início de Março”, relata Helena Ribeiro.
Não é só na Primavera que isto acontece. Um outro exemplo da forma como as andanças confusas do clima deixam as plantas sem datas certas são as vindimas, que cada vez se fazem mais cedo. O facto de as temperaturas médias estarem mais altas leva a que as uvas amadureçam ainda no Verão e dias de praia estão, agora, a ser trocados pelo campo.
“Em Portugal, Espanha e outros países do Mediterrâneo, as vindimas eram feitas em Setembro”, diz o presidente do CNADS. “Agora, os agricultores têm grande dificuldade em ter férias em Agosto, como toda a gente gosta, porque têm de fazer a vindima nesse mês.”
Ritmo das plantas está a alterar-se
A influência das alterações climáticas nas rotinas das plantas já é há muito estudada dentro da fenologia – a área da botânica que estuda as diferentes fases do desenvolvimento de uma planta e a forma como estas podem ser influenciadas por factores externos, nomeadamente, a luz e a temperatura, variáveis relacionadas também com as estações do ano.
A maior linha do tempo das mudanças fenológicas das plantas alguma vez feita foi publicada na revista Nature em Abril do ano passado e os resultados fornecem, segundo os investigadores, “poderosas evidências do impacto do aquecimento global na vida na Terra”. Os dados – que incluem registos feitos durante 250 anos – mostram que o florir das plantas se manteve estável durante o século XIX e, à medida que a temperatura global aumentava, começou a ocorrer cada vez mais cedo a partir da primeira metade do século XX.
Na China, a fenologia de Primavera sofreu um adianto de cerca de seis dias nos últimos 35 anos e, na Suíça, este número aumenta para 30 dias. Em Kyoto, no Japão, o ano de 2021 viu o abrir de cerejeiras mais prematuro dos últimos 1200 anos.
Outro estudo, publicado meses antes na AGU Advances, analisou as datas de início e de fim da fase vegetativa (na qual a planta cresce, antes de se reproduzir) em plantas do hemisfério Norte nos últimos 30 anos, comparando mudanças na temperatura com a forma como estas respondiam. O que os investigadores encontraram foi uma mistura de plantas que floriam mais cedo e de outras que floriam mais tarde do que o normal, sendo que os fenómenos ocorriam mais frequentemente em regiões dominadas por actividade humana intensiva.
Estando o desenvolvimento fenológico de uma planta directamente relacionado com a temperatura do ar, que tem aumentado nos últimos anos, a ciência está a descobrir que “não só o início da época de crescimento se tem antecipado, como também a entrada em dormência está a ser retardada” nas plantas. Em locais como Portugal, onde o tempo de luz “não é um elemento crítico”, as condições de temperatura do ar – como, por exemplo, Outonos mais quentes –, podem permitir que “as plantas não entrem em dormência tão cedo”, esclarece a Helena Ribeiro.
“As árvores têm memória”
Uma fenologia que, nas palavras de Filipe Duarte Santos, “está perturbada”, pode ter consequências a longo prazo para as plantas, que estão programadas para ter determinados comportamentos num determinado clima. A maioria adapta-se bem a diferenças pontuais na temperatura, mas, se o calor que fez a flor nascer mais cedo for substituído por temperaturas mais baixas – como o que vai acontecer nos próximos dias –, isto pode “potenciar a ocorrência de geadas que danificam a flor”, relembra Helena Ribeiro.
“Também as flores que ainda não abriram vão continuar fechadas e vai ocorrer dessincronização na floração, que poderá potenciar um período de maturação do fruto mais alargado e prolongamento das datas de colheita”, acrescenta a investigadora.
Contudo, e porque “as árvores têm memória”, são as mudanças do clima a longo prazo as mais preocupantes, diz Filipe Duarte Santos, que destaca as secas que têm vindo a ser registadas na Europa. Por exemplo, num montado, ecossistema comum no Sul de Portugal, as árvores existem num equilíbrio muito particular e “sabem quanto é que choveu nos últimos anos”, explica o docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Quando chove não tem importância, mas, “se a média da precipitação anual diminuir à medida que avançamos nas décadas”, a flora sairá prejudicada. “É este o grande problema que temos pela frente”, remata.
A beleza da Primavera a chegar mais cedo parece até algo positivo, num mapa de eventos climáticos extremos e calotes polares a derreter. Mas, na natureza, tudo está ligado e este equilíbrio depende de timings perfeitos. O aumento da temperatura pode ter várias implicações para animais e plantas: desde os mosquitos e o pólen que aparecem mais cedo e persistem por mais tempo até às aves migratórias, que alteram as suas rotas e adiam viagens.
Com as plantas a acordar mais cedo e a adormecer mais tarde, quem sofre de patologias alérgicas ao pólen pode ter sintomas durante mais tempo, segundo alerta a responsável pelo jardim fenológico do IGUP. E não fica por aqui: se uma flor nasce mais cedo, pode já não existir quando uma abelha chegar para a polinizar. Sem polinização, não há fruto e, sem fruto, a alimentação de milhares de animais – incluindo a nossa – fica comprometida.