Um produtor que apresente com formalidade e pela primeira vez uma marca aos jornalistas tem a preocupação de destacar detalhes como a razão de ser do projecto, a história da quinta, as castas que explora, a tecnologia de adega ou o posicionamento de mercado. E, pronto, siga a banda que é preciso vender vinho. Raríssimos são os casos em que um novo produtor gasta mais tempo a falar dos solos onde estão as suas vinhas do que das temperaturas de fermentação ou dos topos de acácia das barricas que mandou vir de uma tanoaria fina.
Ora, um destes casos raros é Manuel Lobo de Vasconcellos, o criador do projecto Lobo de Vasconcellos Wines (LWV). Durante a apresentação dos vinhos a conversa rodou sobre o pH dos diferentes perfis de solos, a condutividade eléctrica, a altimetria, as texturas, as profundidades, as fertilidades, as capacidades de retenção de água e outras coisas misteriosas. A vida de um jornalista já não é fácil para explicar o vinho aos leitores, mas Manuel Lobo faz o favor de acrescentar mais variáveis à equação. Com toda a razão, diga-se, porque Portugal é um caso curioso.
Não há vida sem solo, é certo, mas ninguém lhe dá importância. Sim, temos o caso exemplar e levado ao limite da Quinta do Monte d'Oiro com os vinhos de parcela a partir de uma única casta (Syrah). E sim, também temos os casos de Anselmo Mendes, Aveleda, Falua, João Portugal Ramos ou a Herdade do Peso, mas são escassos quando nos comparamos com os amigos franceses. Como se sabe, em França, estudar o solo tem uma finalidade científica e outra — suportada nesta e numa boa narrativa — comercial. Um vinho cujas cepas de duas filas estão agarradas a um veio de pedra diferente pode valer uma pequena fortuna por comparação com outro vinho feito de cepas da mesma casta que estão três metros ao lado. Exemplos não faltam.
A atenção dos responsáveis da LWV nesta matéria é tal que contrataram uma equipa especializada em solos para esburacar a Herdade da Perescuma (Vendinha, Reguengos), onde está neste momento a maioria das vinhas que sustenta a nova aventura de Manuel Lobo, mais conhecido por ser o enólogo da Quinta do Crasto (Douro) e da Quinta do Casal Branco (Tejo). A herdade alentejana faz parte da família há muitas décadas, Manuel Lobo cresceu por aqui e teve responsabilidades na plantação das vinhas em 1995.
De há dois anos a esta parte, em virtude de partilhas familiares, ficou com as vinhas e decidiu criar o projecto com o seu nome. Primeira decisão: reavaliar o uso dos solos em função da necessidade de “criar vinhos com identidade do lugar”, o que significou manter algumas castas, mas arrancar e mudar outras para novos terrenos. Pode parecer uma tese de La Palice, mas de nada vale ter os melhores clones (ou selecção policlonal), os melhores porta-enxertos, ou a melhor tecnologia de adega se não se conhecer bem o solo onde as plantas metem as raízes.
É um jargão dizer-se que o vinho é feito na vinha e não na adega, mas Manuel Lobo assume ao Terroir: “não só continuamos a cometer muitos erros, como desperdiçamos recursos e tempo com certas decisões pouco pensadas na instalação de vinhas”. Ao seu lado, na adega da Vendinha, está Manuel Penteado, o responsável da Agro Analítica, que avalia os solos como um daqueles tubos medonhos das ressonâncias magnéticas esmiúça os nossos corpos. É potássio para a direita, magnésio para esquerda e cálcio e outras cenas ao centro. A dada altura diz o seguinte: “se a função do viticultor é facilitar a vida do enólogo, o viticultor trabalhará melhor em função de conhecimento o mais rigoroso possível dos solos. O nosso trabalho é, com o técnico de viticultura e também o enólogo, fazer com que as uvas cheguem à adega de forma a que o enólogo faças as mínimas intervenções e correcções”. Voltando de novo ao jargão, a isto chama-se agricultura de precisão.
Este é um assunto com alguma complexidade porque a heterogeneidade dos solos é, num só hectare, imensa. À superfície, até parece que as coisas são relativamente uniformes, mas se escavarmos dois palmos em profundidade de 100 em 100 metros começamos a ter variações de solos e que, em consequência, acabam por ter diferentes comportamentos nas plantas. E como cada casta tem os seus melindres, encontrar o seu solo perfeito é um jogo de grande exigência.
Não deixa de ser curioso verificar, numa cova com mais de dois metros de altura, os diferentes perfis de solos, texturas, temperaturas, cheiros e os jogos de circulação das raízes, como se fossem minhocas vegetais. Ora descem à vontade, ora, encontrando uma estrutura de solo mais rija, circulam num emaranhado a meio metro de profundidade. Como é evidente, se a nutrição é diferente para as plantas em função dos perfis de solos, diferentes serão as características das uvas e, por arrasto, do vinho, que é o que interessa.
Por regra, quando a planta está malnutrida o viticultor resolve o assunto com adubações variadas. Mas se conhecer bem os solos consegue colocar cada casta no lugar certo, sem ter necessidade de fazer determinadas correcções à superfície. É bom para o produtor, bom para a vida do solo e, claro, bom para a saúde do consumidor. Louise Bryden, enóloga da Maison Ruinart, confessava-nos há tempos que uma das suas preocupações quando vai para a vindima é “avaliar o nível de potássio dos mostos”. Pelos vistos — e se há gente que percebe do assunto são os franceses —, o potássio é determinante na segunda fermentação do champanhe. E, quando perguntamos como é que ela trata do assunto, a resposta é curiosa: “gerindo e conhecendo melhor os solos”. Voilà.
“Selecciono os vinhos em função dos solos”
No seu jeito irreverente, o produtor Abílio Tavares da Silva (vinhos Foz Torto) costuma dizer que, no mundo do vinho, “um viticólogo é mais importante do que o enólogo, no sentido em que se este cometer um erro numa colheita poderá, na colheita seguinte, emendar a mão. Mas se um responsável de viticultura cometer um erro na instalação de uma vinha, são muitos anos que se perdem para corrigir o problema”.
Ao ter arrancado Trincadeira, Castelão e outras castas, Manuel Lobo corrobora a tese do produtor do Douro. Como o objectivo da LVW é qualidade máxima numa garrafa e não a produção de uvas em quantidade, cada casta terá de estar com as raízes em solo que dê uvas saudáveis, de bago pequeno e cachos abertos. Se a Trincadeira quer solos pobres, a Tinto Cão precisa de fertilidade e humidade e a Aragonês é uma prima-dona que gosta de se sentir sempre bem arejada. São exemplos.
E é por isso que Manuel Lobo investiu e continuará a investir no estudo dos solos das terras da Vendinha. Três razões: “primeiro, um solo bem escolhido é sinónimo de manipulações mínimas em todas as fases (vinha e adega); segundo, um solo bem escolhido é sinónimo de frutos naturalmente mais saudáveis (logo, mais ricos); e, terceiro, começamos a notar que, à medida que os nossos vinhos evoluem no tempo — faço vinhos aqui desde 2014 —, o factor casta dá lugar ao factor solo. Repare-se neste detalhe. Uvas da mesma casta, do mesmo material vegetativo e fermentadas da mesma maneira, mas provenientes de solos diferentes, dão vinhos que, com o tempo, revelam comportamentos diferentes na evolução de aromas e texturas. Nós sentimos isso na herdade com os vinhos da casta Arinto. Eu não selecciono os vinhos da casta Arinto para o nosso Reserva em função do clone ou da exposição da vinha. Selecciono os vinhos em função do solo de origem. Sei hoje muito bem que solos me dão mais mineralidade e até salinidade aos vinhos”.
Em tudo isso só há um ligeiro problema: “É que quanto mais escavamos, mais plantamos e mais fermentamos, mais temos de continuar a estudar. Este é um mundo que não acaba. Não é à toa que, em França, e ao contrário do que se passa em Portugal, não se compra uma vinha sem o seu respectivo caderno de solos”. Pelos vistos, ainda temos muito a fazer neste domínio.
Os vinhos apresentados recentemente e de uma área de 40 hectares de vinha (dois colheitas, dois reservas e um licoroso) são a segunda colheita com a chancela LVW, pelo que é muito cedo para se perceber para onde caminhará a marca ou como se vai distinguir da concorrência, mas está escrito nas estrelas que tanta preocupação em dominar o que se passa no solo vai traduzir-se em novidades nos próximos anos, provavelmente através do conceito de vinhos de parcela. De momento, destaque para a excelente relação preço / qualidade dos vinhos dos colheitas e reservas, para o surpreendente licoroso (capaz de baralhar muita gente) e para um desafiante Vinha do Norte, este do Douro, mas integrado na marca LVW.
Nome Lobo de Vasconcellos Branco 2021
Produtor Lobo de Vasconcellos Wines
Castas Arinto e Verdelho
Região Alentejo (Regional)
Grau alcoólico 12,5 por cento
Preço (euros) 10
Pontuação 92
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Um branco bastante marcado pelas notas cítricas da casta Arinto, com algumas flores brancas. Na boca, não sendo um vinho longo, tem uma acidez natural que impressiona, pelo que ganha competência para desafiar pratos de carnes sem qualquer problema.
Nome Lobo de Vasconcellos Tinto 2019
Produtor Lobo de Vasconcellos Wines
Castas Touriga Nacional, Syrah e Alicante Bouschet
Região Alentejo (Regional)
Grau alcoólico 13,5 por cento
Preço (euros) 10
Pontuação 93
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Apesar da base ser Touriga Nacional e Syrah (com 30 por cento de Alicante Bouschet), mete-se o copo ao nariz e cheira a vinho do Alentejo por todo o lado. Tinto perfumado, com destaque para os frutos vermelhos. Boca fresca, mentolada, sedosa e ainda assim com um toque vegetal.
Nome Lobo de Vasconcellos Reserva Branco 2021
Produtor Lobo de Vasconcellos Wines
Castas Arinto e Verdelho
Região Alentejo (Regional)
Grau alcoólico 12,5 por cento
Preço (euros) 25
Pontuação 93
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Mais fechado aromaticamente do que o Colheita, nota-se o trabalho das barricas e da bâtonnage. Destaque para a fruta tropical (goiaba), que regressa na boca, à mistura com as sensações cítricas. Vinho mais gordo, é certo, mas a impressionar pela frescura e pela acidez que a casta Arinto dá.
Nome Lobo de Vasconcellos Reserva Tinto 2019
Produtor Lobo de Vasconcellos Wines
Castas Syrah, Alicante Bouschet, Cabernet Sauvignon e Touriga Nacional
Região Alentejo (Regional)
Grau alcoólico 14,5 por cento
Preço (euros) 25
Pontuação 95
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Aqui está um caso que se pode dizer académico porque basta um pouco de Cabernet Sauvignon num determinado lote para o vinho adquirir uma finesse de boca surpreendente (que os franceses não nos leiam). Vinho com fruta, mas a caminhar pelo lado especiado, mineral e aveludado. Se o termo guloso faz sentido no vinho, aqui está um belo exemplo.
Nome Lobo de Vasconcellos Vinha do Norte 2019
Produtor Lobo de Vasconcellos Wines
Castas Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz
Região Douro
Grau alcoólico 14 por cento
Preço (euros) Entre 62,50 e 67,50
Pontuação 95
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova É a marca LVW a estender-se para outras regiões e em particular para aquela que Manuel Lobo conhecerá melhor (virá alguma coisa do Tejo nos próximos tempos?). É um Douro bastante sério e, em certa medida, austero. Tem a raça e aquele conjunto de notas vegetais e terrosas da Touriga Franca e da Tinta Roriz. Nada excessivo na fruta, é um tinto que, com toda a certeza, vai dará mais prazer daqui a uns anos.
Nome Lobo de Vasconcellos Licoroso 2020
Produtor Lobo de Vasconcellos Wines
Castas Touriga Nacional, Touriga Franca, Sousão e vinha velha
Região Alentejo (Regional)
Grau alcoólico 19,5 por cento
Preço (euros) Entre 47,50 e 52,50
Pontuação 93
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova É uma espécie de provocação este licoroso alentejano feito com castas que se usam na feitura do vinho do Porto. Muito rico de aromas de frutos pretos e de chocolate negro, tem uma estrutura de boca que impressiona pelo equilíbrio entre doçura e acidez. E deu algum trabalho a fazer porque o enólogo residente (Diogo Grilo) teve de dormir na adega ao pé do lagar, à espera do momento preciso para parar a fermentação alcoólica com a adição de aguardente. Valeu o sacrifício.