Cada português deita fora 184kg de comida por ano. O que propõem para mudar isso?

O primeiro Painel de Cidadãos da UE incidiu sobre o desperdício alimentar. Metas para o mitigar serão apresentadas em Junho, mas não incluem, por agora, as 23 recomendações dos participantes.

#LM Miguel Manso - Reportagem desperdicio Alimentar - 13 de dezembro de 2017
Fotogaleria
Cerca de 57 milhões de toneladas de comida são desperdiçados na União Europeia (UE) todos os anos,Cerca de 57 milhões de toneladas de comida são desperdiçados na União Europeia (UE) todos os anos Miguel Manso,Miguel Manso
azul,europa-queremos,desperdicio-alimentar,sustentabilidade,uniao-europeia,
Fotogaleria
O painel sobre desperdício alimentar juntou cerca de 150 cidadãos da UE Octavian Carare

Foi uma chamada telefónica que mudou a mentalidade de Maria de Lurdes Pinto. A ex-funcionária pública era como quase todos nós: ocasionalmente, lá deixava que o que sobrava do jantar fosse parar ao lixo, sem pensar duas vezes no impacto que isso poderia ter. Mas, quando a Comissão Europeia (CE) a convidou para se juntar a cidadãos de toda a Europa para falar de desperdício alimentar, deu por si, aos 70 anos, a aprender sobre um universo que, tão desconhecido, estava afinal tão presente no seu dia-a-dia.

A história de Maria de Lurdes, de Lisboa, é uma entre 150 aventuras. O tema do desperdício alimentar é o abrir portas para uma nova fase na democracia da União Europeia, ao colocar em prática pela primeira vez a principal inovação da Conferência sobre o Futuro da Europa. Nos últimos três meses, cidadãos de vários países europeus foram chamados a falar sobre desperdício alimentar e participaram em várias sessões presenciais e online. Fizeram 23 recomendações para mudar.

Em causa, está um problema social e ambiental: dados oficiais demonstram que cerca de 57 milhões de toneladas de comida são desperdiçados na União Europeia (UE) todos os anos, o equivalente a 127 quilogramas por habitante. São cerca de 130 milhões de euros que vão, literalmente, para o lixo, quando milhares de europeus não têm acesso a uma refeição completa.

Foto
Apesar de todas as recomendações fazerem parte do documento final, a votação servia para perceber o peso de cada uma Octavian Carare

Neste cenário, números de 2020 mostram que Portugal está acima da média. No quarto país da UE onde mais se deita comida fora, cada português desperdiça em média quase 184 quilogramas de alimentos por ano.

Usar melhor o que é produzido

A premissa dos Painéis de Cidadãos é simples: cerca de 150 cidadãos são seleccionados aleatoriamente pela CE, que tem em consideração quotas de género, idade (por exemplo, um terço dos participantes deve ter entre 16 e 25 anos), escolaridade e localização geográfica, para discutir um determinado tema de forma organizada e fazer recomendações aos decisores políticos.

Nesta forma de participação cidadã, o número de representantes de cada país é proporcional ao tamanho da sua população. Nos painéis sobre desperdício alimentar, estiveram cinco portugueses: Maria de Lurdes Pinto, Raul Caetano, Carolina Cruz, Rui Silva e Telmo Teixeira.

Divididos em 12 grupos com elementos dos diferentes cantos da Europa, os cidadãos estiveram presentes em três sessões distintas, onde assistiram a plenários, contactaram com actores da cadeia de produção de alimentos e discutiram questões como a origem e as causas do desperdício alimentar. O culminar do trabalho de três meses – 23 recomendações dos cidadãos para os decisores políticos – foi apresentado e sujeito no último domingo a votações, na sessão final dos Painéis de Cidadãos sobre o tema, em Bruxelas.

A abordagem vem a propósito das metas de combate ao desperdício alimentar que a Comissão Europeia quer definir, no âmbito da estratégia “Do prado ao prato” e do seu Pacto Ecológico. Até Junho, revelaram os representantes da CE, serão estabelecidos objectivos de redução em percentagem, aplicados a todos os Estados-membros, que, apesar da “obrigação legal de reduzir o desperdício alimentar até 2030”, não terão financiamento para os atingir.

“As alterações climáticas vão obrigar-nos a produzir com menos recursos. Portanto, temos de usar melhor o que é produzido”, disse Sandra Gallina, directora-geral de Saúde e Segurança Alimentar da Comissão Europeia, aos jornalistas.

Foto
Durante três sessões, os cidadãos tiveram oportunidade de contactar com especialistas e actores da cadeia de produção Octavian Carare

Apoios, sanções e outras medidas

No plenário realizado no passado fim-de-semana, as 23 recomendações dos cidadãos foram revistas e votadas uma a uma. Cada grupo tinha duas sugestões – à excepção de um, que optou por fazer uma única recomendação – e seleccionou um porta-voz que explicasse o raciocínio que sustentava a ideia.

Ao longo de cerca de duas horas, falou-se de incentivos à produção e ao comércio local de produtos sazonais, de benefícios e sanções fiscais, de redes europeias de partilha de informação (e até de comida!). Os cidadãos sugeriram mais investigação científica, transparência e apoios aos supermercados e restaurantes para que estes façam chegar o excedente de comida a quem mais precisa.

Os rótulos e as embalagens também foram tema de conversa e exigiu-se clarificação da informação que se lê nas etiquetas, que devem ser coladas em embalagens mais sustentáveis. O pilar principal? Educar as crianças e sensibilizar os adultos – sugestões transversais a quase todos os grupos, que representam, segundo a CE, “uma mensagem muito forte para os Estados-membros”.

Uma ideia várias vezes repetida foi também o financiamento de entidades que façam a redistribuição do excedente alimentar em restaurantes ou supermercados. Em Portugal, projectos como o ReFood, Zero Desperdício, Dose Certa e Fruta Feia fazem exactamente esse trabalho no combate ao desperdício, ajudando pessoas particulares, mas também estabelecimentos (supermercados ou restaurantes) onde fazem a recolha do que sobra. O Fruta Feia, por exemplo, permite que qualquer pessoa possa comprar cabazes de fruta que, apesar do seu bom estado, foi descartada pelos supermercados devido aos padrões estéticos.

Especificamente para os portugueses que participaram no painel, fiscalizar, educar e comunicar é o segredo. Durante as sessões, Maria de Lurdes e Raul propuseram a sensibilização de crianças e adultos para a problemática, através da inserção do desperdício alimentar no currículo escolar e de campanhas de divulgação.

Foto
Da esquerda para a direita: Rui Silva, Telmo Teixeira, Maria de Lurdes Pinto, Carolina Cruz e Raul Caetano com a esposa Catarina Matos/Projecto Mind the Trash

Por outro lado, o grupo de Carolina Cruz deixou a recomendação de incentivar boas práticas e sancionar as más. Já Rui Silva falou-nos de "cidades gémeas": zonas onde a produção de alimentos é semelhante, que poderiam comunicar entre si para encontrar formas de combater o desperdício alimentar.

O timing das recomendações

No final, os participantes estavam satisfeitos, entusiasmados para ver as suas recomendações colocadas em prática. Os resultados do primeiro Painel de Cidadãos vão chegar aos decisores políticos, mas as afirmações da Comissão Europeia em conferência de imprensa deixam dúvidas em relação à sua aplicação a curto prazo – já que, numa primeira instância, falamos de números e não de medidas concretas.

A verdade é que as recomendações não terão uma influência directa na definição das metas para a redução do desperdício alimentar na UE que vão ser apresentadas em Junho. “As recomendações dos cidadãos não são sobre as metas, o que significa que vão além do escopo da nossa proposta legislativa”, admitiu uma fonte oficial da Comissão Europeia, quando questionada pelo PÚBLICO. “Infelizmente, o timing do Painel de Cidadãos relativamente à proposta legislativa não é ideal. Isto é algo que explicámos aos cidadãos de forma muito transparente.”

Por outro lado, a Comissão Europeia vê as opiniões dos cidadãos como uma “ferramenta” para negociar com os Estados-membros. “Muitas das acções [propostas pelos cidadãos] alimentarão a implementação da proposta. Se precisamos de atingir metas, precisamos de implementar diferentes acções”, remata. Ainda assim, há recomendações que podem não ser consideradas, por “questões de custo” ou por não estarem entre as competências da União Europeia.

Rui Silva, engenheiro de 49 anos e um dos participantes do painel que o PÚBLICO contactou posteriormente, alerta que as informações passadas aos cidadãos “não foram tão específicas” como as transmitidas em conferência de imprensa, mas mostrou-se consciente de que nem todas as ideias discutidas poderiam ser implementadas a curto prazo. A “diversidade de pessoas” poderá ter levado a uma diversidade de interpretações, confessa, mas, para si, a Comissão Europeia foi “bastante clara”.

“Isto é um assunto muito melindroso. Por exemplo, se reduzires a produção para evitar o desperdício, os alimentos podem até aumentar de custo, pelo que percebi. Eles têm de ver isto tudo com especialistas antes de fazerem alguma coisa”, afirma.

As próximas sessões dos Painéis de Cidadãos, previstas para “as próximas semanas”, irão debater o mundo digital e o intercâmbio de estudantes na UE, revelou ainda a Comissão Europeia.

“A mudança começa nas nossas casas”

Após a experiência “interessantíssima” (termo que repete dezenas de vezes para descrever todas as etapas do processo), Maria de Lurdes não resiste a uma ida ao supermercado ou ao restaurante sem perguntar aos responsáveis o que fazem com o excedente de comida. É um hábito que veio para ficar: “Eu agora ando a perguntar em todo o lado! Vou ao supermercado: 'Olhe, eu queria perguntar-lhe sobre desperdício alimentar'. A minha filha já está cansada de me ouvir”, conta, sem conseguir conter o riso.

A curiosidade e a insistência levaram-na a conseguir até uma reunião privada com o gerente de um supermercado. A conclusão? “Disseram-me que até o pão mandam fora porque, se não está bom para os clientes, não está bom para ninguém. Então como é que não está bom se é comida daquele dia?”, questiona.

Sentado ao lado da ex-funcionária pública, Telmo Teixeira – que, aos 24 anos, é o mais novo dos portugueses convocados – complementa o seu raciocínio, relatando o que presenciou em primeira mão quando trabalhava numa cadeia de restauração. “A comida que já não podia ser servida aos clientes era mandada para o lixo e os funcionários que tentassem trazer para casa arriscavam-se a ser despedidos”, relembra.

Neste sentido, Maria de Lurdes Pinto sugere a penalização dos estabelecimentos que não evitam o desperdício, admitindo, contudo, que definir essa logística não seria tarefa fácil. “Ia andar todas as noites uma pessoa a fiscalizar? É difícil” – e, por isso, o combate ao desperdício passa pela sensibilização. “Eu e outros cidadãos também sugerimos nas sessões que deve haver mais publicidade, porque as pessoas não têm noção do problema”, afirma, acrescentando que as campanhas devem passar pelos próprios órgãos de comunicação social.

“Fazer uma lista de compras, saber o que é necessário, organizar o frigorífico para que as coisas mais antigas fiquem à frente… A mudança começa nas nossas casas”, conclui.

“Agora, tudo é excesso”

É através das crianças que se consegue mudar o mundo, pelo que a educação é um pilar do combate ao desperdício alimentar – e isto é consensual, não só entre os participantes que conversaram com o PÚBLICO em Bruxelas, mas também entre todos os cidadãos desafiados pela Comissão Europeia a pensar no tema. Para Telmo Teixeira, esta passa por, desde a infância, “ensinar as pessoas a valorizar aquela fruta ou legume que pode ser consumido na mesma, mas que não é comprado porque é feio”.

Já Raul Caetano, que viajou acompanhado pela esposa, acredita que a mudança só acontecerá a longo prazo, com os ensinamentos transmitidos às próximas gerações. “A primeira intervenção que eu fiz foi para dizer que se deve incluir isso nas escolas”, conta. Aos 78 anos, recorda com saudade os tempos em que desperdício alimentar não era uma realidade tão próxima. “Agora, é diferente. Há 40, 60, 70 anos, não se desperdiçava comida. Agora, tudo é excesso. Não há um mínimo de civismo nesse aspecto”, lamenta.

Para que se obtenha resultados, Raul apela à “mobilização dos cidadãos comuns e dos jornalistas” e a mais iniciativas que repliquem os Painéis de Cidadãos. E, quando lhe passaram a palavra no final da sessão, afirmou em bom português: “Gostava ainda de viver para ver o mundo a ficar melhor.”