O principal aterro de Nairobi, no Quénia, já chegou ao limite. Após a sua abertura em 1975 com fundos do Banco Mundial, Dandora foi declarado cheio em 2001. Mas, até hoje, quatro mil toneladas de lixo são lá deixadas todos os dias e a sua incineração – em fogos cujas chamas parecem nunca apagar – deixa rastos de poluição aérea e de problemas respiratórios nos trabalhadores.
Uma porção significativa do que é depositado em aterros como Dandora são têxteis. Quando uma equipa de investigadores decidiu visitar o local, encontrou sapatilhas da Nike e roupa de alta-costura, incluindo peças da marca Yves Saint Laurent. É um autêntico desfile de moda de material sintético que não se biodegrada e não tem qualquer valor para os trabalhadores que seleccionam e recolhem os resíduos.
Ao rebobinar a cassete que conta a história destas peças, rapidamente os cientistas descobriram que a circulação de roupa em segunda mão constitui um buraco na lei e permite que a União Europeia (UE) continue a poluir os países do Sul Global com toneladas de plástico.
Publicado esta quinta-feira, o Trashion – estudo realizado pelos grupos ambientais Clean Up Kenya e Wildlight para a Changing Markets Foundation – narra o ciclo da roupa em segunda mão que chega aos países em desenvolvimento e alerta para um grande problema ambiental: os Estados-membros da UE estão a usar o Quénia como um autêntico caixote de lixo, descartando 37 milhões de peças de roupa feitas com material sintético no país.
A roupa, demasiado suja ou danificada para ser utilizada, vai parar a aterros que mais parecem montanhas fabricadas pelos humanos e “cria sérios problemas ambientais e de saúde para as comunidades vulneráveis”, afirma a Changing Markets Foundation em comunicado.
Resíduos vão juntamente com as doações
Desde 2019, a União Europeia tem um acordo legal que impede os Estados-membros de exportar plástico não reciclável para os países em desenvolvimento, mas a circulação de roupa usada é um ponto cego.
A roupa que é doada chega ao Quénia e é transferida para mercados em segunda mão, que empregam cerca de dois milhões de pessoas no país e são importantes fontes de financiamento. Contudo, peças danificadas são enviadas juntamente com as reutilizáveis e os vendedores descartam-nas. Num cenário em que 69% dos têxteis são, hoje, feitos com fibras plásticas, impossíveis de reciclar, é como se a poluição fosse transportada para outro país.
Dados de 2021 citados no relatório mostram que os maiores exportadores de roupa usada na Europa – onde os habitantes descartam 5,8 milhões de toneladas de roupa por ano – são a Alemanha (41,27%) a Polónia (24,68%) e o Reino Unido (23,05%). Em Portugal, os números não são muito expressivos, pelo que menos de 0,1% das exportações é atribuído ao país. Os destinos-chave? Gana, Índia, Quénia (onde se fez a investigação em campo), Nigéria e Paquistão.
“Embora as empresas de reciclagem estejam frequentemente a mascarar o comércio de vestuário usado como forma de reduzir o desperdício e ajudar o Sul Global, este volume gigante constitui uma enorme lixeira de roupa no Quénia. Dado que a sua maior parte é lixo, acabará por contribuir marcadamente para o desastre ambiental no país”, lê-se no relatório.
Das mais de 500 empresas encontradas pelo estudo, apenas cinco controlavam cerca de 50% das exportações europeias em 2021, entre as quais se incluía a rede Humana. O PÚBLICO contactou a Humana Portugal, que apenas confirmou por e-mail que foi identificada “uma empresa ligada à Humana Lituânia como responsável pelo envio de muita roupa que acaba no lixo”, mas remeteu mais informações para segunda-feira.
A lotaria da roupa em segunda mão
O problema não é apenas europeu e adquire uma dimensão maior a nível global. Todos os anos, 900 milhões de itens de roupa são enviados para o Quénia e estima-se que metade não chega a ter valor na cadeia, tornando-se em resíduo têxtil.
Mas comecemos pelo início. A roupa que é doada chega às mãos dos quenianos agrupada em fardos de cerca de 200 peças, com origem e qualidade desconhecidas. Os vendedores dos mercados em segunda mão compram-nas a preços entre os seis e os 10 mil xelins quenianos – valores entre os 50 e os 80 euros –, para depois os levarem para as feiras de mitumba (termo suaíli para “roupa usada”), onde finalmente os abrem.
É uma lotaria: só depois da compra e já nos mercados é que os vendedores de mitumba descobrem se fizeram um bom negócio, dado que a roupa danificada representa uma perda financeira. Feirantes entrevistados para o Trashion estimam que 20% a 50% da roupa de um fardo não tem condições para ser vendida, por estar danificada, com nódoas, ter problemas de tamanho ou ser culturalmente inapropriada.
A roupa que não pode ser vendida tem dois caminhos possíveis: passa a resíduo ou é adquirida pelos vendedores de fagia – a roupa usada de qualidade mais baixa. Apesar do grande esforço para encontrar roupa que ainda consigam aproveitar (uma minoria do que é descartado pelos mercados de mitumba), os vendedores de fagia fazem apenas cerca de 70 xelins, ou 50 cêntimos, por quilo de roupa vendida.
A verdade é que a maior parte da roupa que sai dos primeiros mercados não pode ser aproveitada por esta segunda via – um problema que só piora com a perda de qualidade das peças, que já chegam aos quenianos tão frágeis que podem ser rasgadas com um simples puxão. Com todas as opções esgotadas, o que resta é usado para fazer trapos, depositado em aterros ou vai alimentar fogueiras onde se cozinha.
Muitas destas fogueiras estão localizadas perto dos próprios mercados e os investigadores chegaram a encontrar, ao pé de uma delas, uma peça cuja etiqueta encorajava a “reciclar com a Oxfam” [organização que trabalha para combater a desigualdade social e actua também a nível ambiental].
“O que me preocupa é o rio”
Esta história já não é, por si mesma, um conto de fadas, mas grande parte da roupa tem um final ainda mais infeliz, num aterro que lhe vai servir de berço durante toda a eternidade. Áreas à volta dos mercados de fagia estão impregnadas com resíduos têxteis, que, ao invés de se degradarem, soltam micropartículas de plástico e contaminam rios e solos.
Os relatos recolhidos durante a investigação indicam que situação parece piorar cada vez mais, à medida que o volume de roupa que chega ao país aumenta e a percentagem de aproveitamento diminui. “O que me preocupa é o rio. Está muito sujo, tornou-se num aterro. Não acho que esta seja a forma como devemos viver”, diz um dos entrevistados.
No Trashion, os investigadores deixam ainda recomendações para o combate ao problema. Se, por um lado, quem faz a gestão da roupa em segunda mão deve separar as roupas com qualidade a partir da fonte, por outro, as próprias empresas de moda devem adoptar medidas de responsabilidade social, como desenhar roupa ecológica e durável sem que isso passe por campanhas de greenwashing. No estudo, é ainda recomendada uma maior transparência em relação ao que é exportado pelos países do Norte Global, que devem, por seu turno, consultar as nações em desenvolvimento para perceber as efectivas necessidades.
“É categoricamente inaceitável que países como o Quénia tenham de arcar com os custos de limpeza da sobreprodução de moda. Em toda a cadeia de valor, os trabalhadores com baixos rendimentos enfrentam sérios riscos para a saúde e más condições”, conclui o relatório. “Também aqui, no fim da vida, os prejudicados pelos riscos para a saúde e para o ambiente são os que não lucram com este negócio.”