Monetização da Natureza

A existência de mecanismos como o Mercado Voluntário de Carbono integra a tendência de quantificar o papel da Natureza. Será que precisamos mesmo de monetizá-la para a conseguirmos proteger?

A criação do Mercado Voluntário de Carbono de Portugal foi anunciada recentemente. Uma iniciativa já há algum tempo esperada, implementada noutros países fora da Europa, em alguns casos com mais sucesso do que noutros, e que visa basicamente recompensar ou incentivar as boas práticas ambientais, por exemplo, de gestão florestal, através do direito à emissão de certificados de carbono transaccionáveis.

Na prática, o que acontece é o seguinte: um gestor florestal que gere a sua floresta como deve ser, por exemplo, ao assumir a sua boa manutenção e que não vai substituí-la por um parque industrial (ou mesmo solar), recebe os créditos de carbono correspondentes à capacidade de sequestro de carbono do seu terreno. Coloca os créditos à venda no mercado voluntário de carbono e, assim, obtém um rendimento extra como recompensa pelas boas práticas.

Por princípio, a criação deste tipo de mercados, seja o mercado voluntário de carbono ou as garantias de electricidade de origem renovável, tem um objectivo bom, um princípio razoável e um efeito perverso (ou vários).

O objectivo bom é óbvio: incentivar as boas práticas no que respeita a evitar, reduzir e compensar as emissões de carbono. É do interesse de todos e fundamental para mitigar o aquecimento global, a subida do nível do mar, as ondas de calor, o agravamento das secas, as tempestades tropicais cada vez mais frequentes e o exponenciar de uma crise de refugiados climáticos que se junta à dos que fogem da guerra, dos regimes autoritários, da fome e da pobreza.

O princípio razoável é que as boas práticas têm que ser recompensadas economicamente. Fica-se um pouco com a sensação que deveriam ser a norma mas, perante outras possibilidades financeiramente rentáveis, como a substituição de uma zona natural por um projecto agrícola, energia solar ou um complexo turístico de “interesse nacional”, é fácil sentir empatia com o dono do terreno.

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Um bom gestor florestal, que assegura a manutenção da cobertura vegetal, recebe os créditos de carbono correspondentes à capacidade de sequestro de carbono do seu terreno Sérgio Azenha

Neste ponto ganha importância o pouco discutido mas fundamental conceito de “adicionalidade”. Dito de forma simples, a adicionalidade de um projecto de redução de emissões significa que o mesmo não teria ocorrido sem os incentivos associados à emissão dos créditos de carbono.

O efeito perverso é o famoso greenwashing: aqueles certificados serão adquiridos por uma qualquer organização ou empresa que os vai utilizar para assegurar que a sua empresa, evento ou produto é neutro em carbono, o que não será verdade na prática e terá, provavelmente, um custo muito mais baixo do que sê-lo de facto. Se juntarmos o risco de não se verificar a “adicionalidade” dos créditos de carbono que comprou, podemos até pensar que certificados de “má qualidade” têm um efeito de aumento das emissões, pois são utilizados para compensar emissões, sem afinal o fazerem.

Um exemplo óbvio é o das comercializadoras de electricidade que pertencem a grupos que produzem com gás natural, carvão ou até nuclear, que comercializam exactamente a mesma electricidade que todas as outras, mas nos inundam com anúncios de electricidade 100% renovável em tons de verde, azul ou laranja por lhe associarem garantias de origem renovável adquiridas a terceiros. Nada garante que o rendimento extra obtido por estes produtores de electricidade limpa foi reinvestido em produção renovável, muito menos se pode concluir que assegurem a tal “adicionalidade”.

Como se faz então no caso da electricidade? Apesar de a electricidade que corre na rede ter toda a mesma origem, a existência de clientes finais 100% verdes faz com que os restantes sejam todos, na sua factura, um pouco mais “cinzentos”.

A existência deste tipo de mecanismos, como por exemplo a já muito augurada remuneração dos serviços dos ecossistemas, faz parte de uma tendência, ou linha de pensamento, que tem como base a ideia de que se conseguirmos quantificar, ou traduzir em dinheiro, o papel da Natureza, iremos finalmente ajustar os nossos comportamentos como sociedade à sua manutenção.

Assusta-me que a mesma linha implica um reconhecimento de que não somos capazes de mudar e que a economia, ou o dinheiro, é a única coisa capaz de mudar comportamentos (no que à sustentabilidade ambiental diz respeito).

Será que precisamos mesmo de monetizar a natureza para a conseguirmos proteger?