Família Welsh continua estudo de castas em antigo campo ampelográfico na Calheta
Na Quinta das Vinhas, que já foi um importante campo ampelográfico gerido pelo governo regional, os Welsh voltaram a fazer investigação, com a Universidade da Madeira, e estão a fazer vinho biológico.
A Quinta das Vinhas, com cerca de 4 hectares, é hoje um dinâmico projecto de enoturismo (e não só) no soalheiro Estreito da Calheta, na parte Sul da ilha da Madeira. Os primeiros seis quartos (hoje são 24 neste hotel e casas de campo) surgiram há 25 anos, uma meia dúzia de anos depois de ali terem sido plantadas as primeiras vinhas pelo Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM), que durante anos arrendou o terreno aos Welsh. Plantou esse primeiro talhão do campo ampelográfico em 1990 e uma segunda parcela em 2005. Findo o contrato entre as partes, em 2017, a família proprietária decidiu explorar o potencial da quinta, mas em modo de produção biológica.
Não só se metiam na produção de vinho sem ter antecedentes nesta actividade, como se atiravam a uma agricultura ainda mais difícil de trabalhar, sobretudo num clima húmido — por alguma razão se contam pelos dedos de uma mão as vinhas biológicas na Madeira. Mas a aventura iniciada em 2018 está a correr bem e dará em breve os primeiros frutos, que neste caso são dois vinhos: o vinho tranquilo biológico da região, feito da casta Verdelho, e um vinho Madeira com a marca Quinta das Vinhas, que já está a envelhecer e será lançado com pelo menos 5 anos, ambos em parceria com a Justino's Madeira Wines.
Para além de Juan Teixeira, o director-geral faz-tudo da Justino's, Isabel e Catarina Welsh, as duas irmãs à frente da quinta, têm contado com o apoio técnico da Universidade da Madeira (UMa), que acompanhou a reconversão das vinhas e encontrou nelas condições privilegiadas para estudar uma série de coisas.
"Como isto era cultivado no regime convencional e a universidade estava à procura exactamente de estudar uma reconversão do [modo de produção] convencional para biológico, têm estado a acompanhar-nos desde o início", explica Isabel, que é formada em Economia mas encontrou na vinha uma actividade que teima em fugir aos planos feitos na folha de Excel.
O coordenador do ISOPlexis, o Centro de Agricultura Sustentável e Tecnologia Alimentar da UMa, Miguel Ângelo Carvalho, explica que a universidade começou por efectuar "um levantamento dos recursos genéticos" existentes na quinta, para depois fazer "a caracterização dos agro-sistemas e a monitorização das alterações climáticas, para estudar o seu impacto futuro" nesses ecossistemas, na produção de vinho e na produtividade das diferentes castas — ao todo, a Quinta das Vinhas tem 71 castas com interesse enológico e 40 variedades de uva de mesa. Essa investigação continua, com monitorização periódica das vinhas, apesar de o projecto CASBio (no âmbito do Programa Operacional Madeira e financiado pelo FEDER) ter formalmente terminado no final de 2022.
Alterações climáticas e desequilíbrios na vinha
As conclusões apontam para "uma série de desequilíbrios" na zona onde fica a Quinta das Vinhas, em relação aos cenários projectados para 2070, partilha Miguel Ângelo Carvalho, nomeadamente, para um "aumento de temperatura até 3 graus" e para uma "diminuição da disponibilidade hídrica em 40 por cento". "O que notamos é que os Invernos estão muito mais quente, temos [nessa estação do ano] um aumento de temperatura média de 4, 5 graus [comparando com a série de médias entre 1861 e 1991]."
"Outra conclusão a que chegámos é que, à excepção de dois ou três meses do ano, os solos estão já em deficit hídrico, ou seja, na maior parte do ano", refere o coordenador do ISOPlexis. Embora sejam ainda "dados preliminares, porque a série é pequena", foram detectados também desequilíbrios na microbiologia: em alguns períodos, há mais microorganismos a libertar azoto do que aqueles que o fixam. E, por último, verifica-se "um aumento de ocorrência e intensidade de pragas, nomeadamente duas que têm importância na Madeira, a mosca-da-fruta e a Drosophila suzukii [drosófila-da-asa-manchada]".
O director do curso técnico em Agricultura Biológica da UMa contou ao Terroir que, depois do projecto de quatro anos CASBio, surgiram outros estudos. Um deles é a monitorização da vinha ao longo do ciclo vegetativo "utilizando técnicas digitais, como drones e câmaras hiperespectrais" (projecto Apogeu, do Programa MAC, através do qual a UMa também estuda vinhas na zona de Porto Moniz, na Fajã do Barro), que permite detectar atempadamente "situações em que o agricultor tem de intervir, seja porque faltam água ou nutrientes ou em ataques de pragas".
Há, depois, ensaios inovadores com a "utilização com estimulantes encapsulados" (projecto Nano estimulantes, Bolsa Marie Curie) que visam conseguir uma maior eficácia na aplicação de substâncias biológicas, "neste caso, aminoácidos". "Habitualmente estas substâncias são aplicadas por contacto foliar ou na rega, mas quando se faz isso rapidamente são degradadas. Estamos a associar materiais polímeros de natureza biológica, alginato de algas castanhas e quitosano, e a aplicar para que a substância fique protegida e tenha maior durabilidade." Os investigadores têm levado mesmo material genético, plantas, da Quinta das Vinhas, para plantar numa vinha e em vasos na Quinta de São Roque, propriedade da UMa no Funchal, onde conduzem ensaios controlados.
No âmbito de outro projecto, igualmente com financiamento europeu e que deverá arrancará em Março, a equipa do ISOPlexis quer usar biofertilizantes na Quinta das Vinhas. E, no futuro, Miguel Ângelo Carvalho gostava de estudar também a relação de causa e efeito entre as práticas da agricultura biológica e a a reacção da cultura da vinha às alterações climáticas.
Mais de 100 variedades de uva
Na fazenda dos Welsh, existem "quase todas as variedades que existiam [no passado] na Madeira", incluindo a famosa e quase desaparecida Malvasia Cândida (que também encontramos na Fajã dos Padres e num vinho Madeira da Barbeito, feito com essas uvas à beira-mar plantadas)", "cinco pés de cada", excepto onde já há falhas, "de videiras que morreram ao longo do tempo", explica-nos Isabel Welsh, que gere o dia-a-dia da parte agrícola da Quinta das Vinhas, enquanto a irmã Catarina está mais focada no alojamento.
A lista de variedades plantadas ali no estreito tem nomes estranhos, e intrigantes, como Deliciosa, Tinta Lisboa ou Tinta Antiga da Gaula. "Penso que fosse uma Tinta Negra de um produtor da Gaula [no concelho de Santa Cruz], chamado João Sabino. O IVBAM melhor do que ninguém sabia o que estava plantado ao longo da ilha e onde. Temos esses registos, mas ainda estamos a estudá-los", partilha Isabel Henriques de Freitas, a responsável pela viticultura na quinta. Foi colega de escola de Isabel Welsh e aos 50 anos resolveu tirar o tal curso técnico de Agricultura Biológica da UMa, quando ainda trabalhava em gestão de empresas. Estagiou na Quinta das Vinhas e o resto é a história que aqui se conta, de mentes que pensam da mesma forma.
Há outras castas na lista do antigo campo ampelográfico reconhecemos de outras paragens: o Listrão, a uva que levou vários produtores de vinho a apostar no Porto Santo, o Ferral, que foi recuperada pelo Sesimbra Natura Park nos últimos anos e também existe noutros terroirs de Portugal — atenção que, em matéria de castas, a sinonímia é algo que confunde até os mais conhecedores, por isso, fica aqui essa ressalva —, e o Bastardo, que é trabalhado no Douro, em Trás-os-Montes e no Dão e que, muitos não saberão, é uma das oito castas recomendadas para a produção de vinho Madeira.
A Quinta das Vinhas já aumentou a área de Bastardo que, ainda assim, é somente de "1 hectare e pouco". "Temos vindo a aumentar também a Malvasia Cândida, que chegou à Madeira com os padres jesuítas. Existe na Fajã dos Padres e há mais um viticultor a plantar em Santana", explica Isabel Henriques de Freitas. A responsável conta como, "na gestão das aplicações, tem sido muito útil a estação meteorológica" instalada na quinta à boleia dos projectos com a UMa. Há também sondas para medir a disponibilidade hídrica dos solos e armadilhas para a mosca-da-fruta, num projecto em que, apesar dos desafios, a palavra de ordem é "manter a colecção viva de plantas". "E aumentá-la até", confia a técnica.
Para aumentar a dificuldade do desafio que têm em mãos, uma e outra Isabel estão já a experimentar a agricultura biodinâmica, depois de uma "inspiradora" visita à Quinta da Lomba, o projecto da Niepoort no Dão. Isso e, numa parcela adquirida recentemente, querem fazer uma experiência, com outras culturas, em permacultura.
O parceiro Justino's, que anunciou recentemente melhorias na adega para produção de vinhos tranquilos, bem como a construção de um centro de visitas, tem as naturais reservas em relação a um modo de produção mais difícil (dificílimo na Madeira), mas está interessado em acompanhar toda esta transformação na Quinta das Vinhas. Por um lado, porque a Justino's não tem vinhas próprias e a propriedade no Estreito da Calheta pode ser a vinha de ensaio que a empresa procura nesta fase, e por outro, porque o gestor-enólogo vê em variedades especiais, como a Malvasia Cândida Roxa e o Bastardo, a possibilidade de fazer outros "vinhos fora da caixa" na nova gama Fanal. Produções sempre muito limitadas.
Uma história com mais de 200 anos
A família de origem inglesa que está a pôr o Estreito da Calheta na rota do enoturismo na Madeira teve em tempos aquele que ficou conhecido como o Engenho do Hinton no centro do Funchal, foi então expropriada e a Fábrica de Açúcar do Torreão deu lugar ao Jardim de Santa Luzia. O alambique de cobre da histórica produção está hoje no Engenho Novo da Madeira, que tem os Welsh entre os seus vários sócios e fica a curta distância da Quinta das Vinhas, onde no passado a paisagem era "tudo cana-de-açúcar". As casas de campo da propriedade foram construídas e reconstruídas maioritariamente com material de demolição, saído da fábrica do Hinton.
Isabel e os irmãos, Catarina e Eduardo, são a sexta geração de uma família cuja história na Madeira remonta ao século XVIII. "Os Hinton estão na Madeira desde o século XIX, tendo a segunda geração Hinton casado com a minha bisavó em segundas núpcias. Os Welsh estão na Madeira desde cerca de 1780", explica a gestora.
Na quinta, a carta do restaurante Bago lista "quase todos os vinhos tranquilos" da Madeira, vários vinhos Madeira, claro, e os runs feitos na ilha. E num terraço com vista para o Atlântico começaram a organizar-se, durante a pandemia, retiros de yoga e ayurvédica, como resposta a uma comunidade crescente na ilha que procura "coisas diferentes", os nómadas digitais.