Alagoas Brancas: quando a vida pode ser substituída por um retail park

Existem 140 espécies de aves num pequeno terreno em Lagoa, no Algarve, destinado a tornar-se um parque comercial. Um movimento de cidadãos, associações ambientalistas e o PAN querem travar a obra.

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A riqueza biológica das Alagoas Brancas foi descoberta em 2008 Guillermo Vidal

As máquinas de construção foram obrigadas a parar, mas quem se aproximar das Alagoas Brancas, na cidade de Lagoa, no Algarve, confronta-se com um cenário desolador, de um espaço natural que está sob ameaça. Muita vegetação foi retirada e, apesar de já não haver máquinas no terreno, ficaram montes de terra revolvida, lixo disperso e novas acumulações de água que desnaturalizaram parte daquela zona húmida. É necessário olhar para lá da frente lamacenta para começar a observar, à distância, o movimento que atraiu pela primeira vez o biólogo alemão Manfred Temme às Alagoas Brancas, há quase 15 anos.

“Encontrei este local em 2008”, diz ao PÚBLICO Manfred Temme. “Estava a passar de carro, por volta da hora do pôr-do-sol, e muitas garças-boieiras voavam nesta área. Pensei, 'tem de haver aqui alguma coisa'. Procurei vários dias até encontrar este lugar. Estava escondido entre as planícies que há por aqui.”

As garças-boieiras (Bubulcus ibis) têm nas Alagoas Brancas um resguardo para pernoitarem. Este terreno de poucos hectares é o último reduto das zonas húmidas que existiram numa faixa importante da região. Aqui, as lagoas começam a formar-se com as primeiras chuvas de Outono, que podem durar até ao fim da Primavera, e vão construindo um habitat para cerca de 140 espécies de aves ao longo do ano, de acordo com as contabilizações mais recentes, especialmente na temporada fria. Há espécies que passam o Inverno aqui, outras nidificam. À noite, os charcos são uma protecção contra os predadores.

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Uma garça-boieira caminha no terreno das Alagoas Brancas Manfred Temme

Foi este mundo de biodiversidade, que conta também com répteis, anfíbios, insectos e flora variada, desconhecido até 2008, que Manfred Temme foi descobrindo e fotografando, ano após ano. “Tirei milhares de fotografias”, diz-nos o biólogo e ornitólogo, que desde há 30 anos foge do frio da Europa Central, tal como tantas aves, para passar os meses de Inverno na sua casa algarvia, no Carvoeiro.

Mas, paralelamente, destinos urbanísticos iam sendo traçados para as Alagoas Brancas. No mesmo ano em que o biólogo descobriu aquele local, foi aprovado o Plano de Urbanização da Cidade de Lagoa, que definiu a zona sul da cidade, onde se situam as Alagoas, como “zona de expansão de actividades económicas e implantação de áreas industriais de usos múltiplos comerciais e de serviços”, avança um comunicado recente da Câmara Municipal de Lagoa. Desde então, aquele pequeno mundo de biodiversidade está em risco de desaparecer.

Área rica em biodiversidade

Os terrenos das Alagoas Brancas foram adquiridos pela empresa Edifícios Atlântico, S.A. com o objectivo de se construir ali um parque comercial. O projecto de arquitectura foi aprovado a 25 de Julho de 2013, depois de a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), de o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e de a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve darem luz verde sem exigirem uma Avaliação de Impacte Ambiental. Finalmente, a 12 de Outubro de 2020, a câmara municipal deu à empresa o alvará para o loteamento em 11 parcelas de uma área de quase 5,7 hectares.

Ao longo daquele tempo, a descoberta de Manfred Temme despertou muitos cidadãos para o potencial das Alagoas Brancas do ponto de vista da biodiversidade e também para a importância hidrológica enquanto bacia de retenção das águas da chuva. Além disso, temia-se que a impermeabilização e a construção daquela zona trariam um risco de alagamentos.

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Muitas espécies de aves usam esta zona húmida Guillermo Vidal

Em 2017, houve a primeira grande manifestação pela preservação do local e em 2019 foi publicado um estudo, promovido pela associação ambiental algarvia Almargem, que se tornou o primeiro documento científico a demonstrar a importância daquela região. Na altura, o relatório registou 114 espécies de aves associadas à área.

“Apesar da pequena dimensão, esta área é rica em vida selvagem, nomeadamente em espécies com um estatuto de protecção alto”, lê-se no sumário do relatório. “A área é o habitat de cerca de 1% da população regional de íbis-preta (Plegadis falcinellus) – o que a classifica potencialmente como um abrigo no contexto da Convenção [sobre Zonas Húmidas] de Ramsar –, e também de uma vasta quantidade de espécies de aves aquáticas ao longo do ano, incluindo a zona de nidificação do [caimão] Porphyrio porphyrio.”

A Convenção sobre Zonas Húmidas é um tratado intergovernamental de protecção daqueles ecossistemas que foi adoptado em 1971 na cidade iraniana de Ramsar e que entrou em vigor em 1975. Portugal ratificou a convenção em 1980. As zonas húmidas são “os ecossistemas mais ricos e produtivos na biosfera”, segundo o relatório da Almargem, eficientes na filtração da água e importantes para a regulação climática.

Por tudo aquilo, o relatório considera que “a criação de um estatuto de protecção é essencial e indispensável para a conservação e gestão” das Alagoas Brancas.

No entanto, o novo conhecimento que foi sendo produzido não fez com que a Câmara Municipal de Lagoa, liderada actualmente pelo socialista Luís Encarnação, revertesse o processo de construção. Segundo o município, a construção estava acautelada pelo Plano de Urbanização de 2008. Além disso, para se reverter o plano teria de se ressarcir em milhões de euros a Edifícios Atlântico, S.A, provocando um desfalque no município.

Animais enterrados

Mas estes argumentos não demoveram as associações ambientalistas e o movimento de cidadãos que se formou. Após o alvará ter sido dado em Outubro de 2020, a Almargem e a Cidade da Participação Associação Cívica apresentaram, no ano seguinte, uma providência cautelar para travar o início das obras e exigir uma Avaliação de Impacte Ambiental (AIA). A acção foi apresentada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que ouviu os argumentos enunciados, pediu a suspensão temporária das obras e remeteu uma nova avaliação à CCDR do Algarve sobre a necessidade de uma AIA.

A CCDR, apoiada por um novo parecer do ICNF – que perante o estudo da Almargem, considerou haver justificação para uma AIA –, defendeu a necessidade da avaliação e entregou o parecer na Câmara Municipal de Lagoa, que é a entidade que pode pedir este estudo.

O município preferiu recorrer da providência cautelar e levou o processo para o Tribunal Central Administrativo Sul, que, meses depois, acabou por decidir a favor do promotor, pôs fim à suspensão das obras e rejeitou a necessidade de uma AIA. A 12 de Outubro último as máquinas foram para o terreno fazer a terraplanagem.

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Manfred Temme descobriu as Alagoas Brancas em 2008 Guillermo Vidal

Mas nessa altura o caso já tinha escalado para um âmbito nacional. Num comunicado conjunto, a Associação Almargem, A Rocha Portugal, o Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), a Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade (Fapas), a Liga para a Protecção da Natureza, a Sociedade Portuguesa de Ecologia, a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) e a Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável anunciaram que não iam “ficar parados perante esta agressão ambiental grave e desnecessária”. E argumentaram que “a destruição desta zona húmida põe em risco a segurança da cidade em situação de cheia. É notória a ilegalidade deste acto”.

Ao mesmo tempo, houve denúncias de animais que estavam a ser soterrados pelo trabalho das máquinas. Ou seja, as obras puseram em risco as populações locais de répteis, anfíbios e de outros animais que não podiam fugir. Espécies como o cágado-de-carapaça-estriada (Emys orbicularis), com o estatuto de conservação em perigo de extinção, a rã-de-focinho-pontiagudo (Discoglossus galganoi) e o cágado-mediterrânico (Mauremys leprosa) tinham sido identificadas nas Alagoas Brancas durante o estudo da Almargem e são alvo de protecção da legislação portuguesa. Por isso, o partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN) interpôs uma nova providência cautelar, que, mais uma vez, obrigou a suspender as obras.

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O maçarico-de-bico-direito Manfred Temme

“Foi com emoção que recebemos a notificação de deferimento do tribunal do pedido de interposição de uma providência cautelar. Tem sido com profunda tristeza que temos observado a destruição progressiva da zona”, disse Inês de Sousa Real, porta-voz do PAN, num comunicado que o partido divulgou a 10 de Novembro. A providência levou Luís Encarnação a criticar o partido, referindo com ironia que parecia que Lagoa tinha “uma parte da selva amazónica dentro da cidade”, disse ao jornal Algarve Primeiro.

Foi neste contexto que o PÚBLICO esteve no local.

Terreno vedado

O ponto de encontro foi o parque de estacionamento do supermercado Aldi, situado em frente da zona húmida, que foi construído há poucos anos já dentro do regime do novo Plano de Urbanização. Além do ornitólogo alemão, reunimo-nos também com Anabela Blofeld, que faz parte do movimento de cidadãos Salvar as Alagoas Brancas e que tem estado muito activa nesta luta, e Luís Santos, enfermeiro veterinário e ornitólogo amador, com um olho rápido para identificar com os seus binóculos tudo o que voa.

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A terraplanagem já destruiu parte da zona húmida Guillermo Vidal

Os dois levam-nos a conhecer o território. O biólogo alemão não pode ir. “Fiz 85 anos há dois dias”, diz, logo ao início de uma tarde de sábado de Dezembro. Os joelhos já não permitem grandes arrojos.

Não é possível entrar directamente no terreno das Alagoas Brancas. Há uma rede de plástico laranja à volta que serve como vedação e que tem um cartaz com a frase “Proibida a entrada a pessoas estranhas à obra”. Por isso, resta contornar o terreno para poder observar a parte ainda preservada.

Anabela vai explicando a situação. “Isto já foi tudo limpo”, conta ao PÚBLICO, referindo-se ao terreno. “Estava tudo cheio de canavial e juncos. Havia aqui imenso lixo, porque as pessoas vinham deitá-lo para aqui”, refere, criticando as obras por não terem limpado o lixo e este estar a ficar enterrado. Ao longo do trajecto que fizemos foi possível observar o lixo disperso, misturado com a terra: plásticos e papéis rasgados, máscaras descartadas, pneus semienterrados.

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Uma vedação afasta as pessoas de entrarem na zona húmida Guillermo Vidal

Caminhamos pela beira da N-124, junto aos terrenos, e entramos numa estrada de terra batida, à esquerda, que está situada entre duas vivendas e um canal. Andando algumas dezenas de metros, a estrada desemboca no parque de estacionamento de uma antiga fábrica, cujos edifícios são hoje ruínas e que tem sido usada de forma informal para se observar as aves.

“Eu fazia daqui um centro de observações de aves. Já tem os edifícios, já tem o parque de estacionamento. Tivera eu dinheiro”, afirma Anabela Blofeld. O muro que limita o terreno da antiga fábrica está colado às Alagoas Brancas. É aqui que é possível olhar mais de perto para aquele território.

Zona de imensa água

Quem observar as Alagoas Brancas a partir das imagens de satélite, poderá ver que a urbanização da cidade lhe foi dando contornos geométricos.

O lado mais extenso das Alagoas (virado para o Aldi) termina na N-124 e o lado oposto, muito menos largo, faz fronteira com um parque de estacionamento. Lateralmente, o descampado é limitado do lado esquerdo por um canal. Do lado direito, por onde vamos caminhando, fica uma região mais periférica da cidade, com casas e armazéns.

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As imagens de satélite também mostram os vários canais traçados dentro da zona húmida, construídos algures no passado, e várias lagoas.

A nível geológico, a região é uma depressão cársica. A química das rochas que se formaram há milhões de anos, arenitos carbonatados e calcário, permite que a água as vá dissolvendo ao longo do tempo, produzindo carsos, explica Judite Fernandes, hidrogeóloga e vice-presidente do GEOTA. “Os carsos surgem quando a circulação da água subterrânea ao longo de determinada conduta vai dissolvendo a rocha e abrindo-a”, explica ao PÚBLICO, dias depois de termos visitado o local.

A especialista também esteve nas Alagoas Brancas para avaliar, do ponto de vista hidrogeológico, a situação daqueles terrenos. Para isso, olhou para os poços que existem ali perto.

“Os poços tinham água a 80 centímetros do solo em Setembro. Agora, a 10 de Dezembro, a água estava ao nível do solo”, conta. Segundo o parecer que o grupo emitiu a partir destas e de outras observações, existe um aquífero por baixo daqueles terrenos. Como parte das Alagoas está numa cota especialmente baixa, o aquífero é uma influência directa no nível de água das lagoas que se formam.

A depressão do terreno “intersecta a superfície freática do aquífero (…), formando um plano de água do tipo lagoa, cuja variação de nível acompanha a variação sazonal do nível freático”, lê-se no parecer. Ao subir o nível subterrâneo das águas, como aconteceu entre Setembro e Dezembro, “de forma sincronizada, o plano de água das Alagoas Brancas também aumentou a sua cota topográfica”.

Esta novidade obriga a mudar a perspectiva em relação à urbanização daqueles terrenos, defende Judite Fernandes. “Eles pensam que aquela água que lá existe é resultado da água de escorrência, mas aquilo é aquífero. É uma zona de imensa água”, constata a especialista. “Vão enfiar os prédios dentro de um aquífero.”

O parecer também alerta para as incoerências do novo Plano Director Municipal (PDM) de Lagoa, publicado em 2021, onde as Alagoas não estão delimitadas como zona ameaçada por cheias. Se estivessem, não poderia haver ali construção. No mapa do PDM “constata-se que grande parte da área da depressão cársica se encontra classificada (…) [quer] como área estratégica de infiltração e de protecção à recarga de aquíferos, quer como zona ameaçada por cheias naturais, com excepção da área de Alagoas Brancas que é tão-somente a zona de menor cota topográfica em toda a depressão”, lê-se no parecer do GEOTA.

PÚBLICO - Um dos mapas do Plano Director Municipal, que mostra a azul as zonas ameaçadas pelas cheias naturais. O terreno das Alagoas Brancas está delineado a vermelho. A zona urbanizada é a cidade de Lagoa
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Um dos mapas do Plano Director Municipal, que mostra a azul as zonas ameaçadas pelas cheias naturais. O terreno das Alagoas Brancas está delineado a vermelho. A zona urbanizada é a cidade de Lagoa

“As Alagoas estão ali no meio sem qualquer classificação, quando no plano geológico é tudo o mesmo”, reforça Judite Fernandes. Segundo o parecer, “qualquer edificação que aí se pretenda construir representará um risco para pessoas e bens, porque se está a construir no seio de um aquífero, não sendo possível drenar esta água”.

"Processo estarrecedor"

Um dos efeitos da movimentação das terras feita em Outubro pelas máquinas foi a formação de uma lagoa nova, que se pode observar de perto a partir da antiga fábrica, onde nos encontramos: é uma comprida língua de água de cor barrenta que está colada à fábrica. Antes de virem as máquinas, em vez da nova lagoa, existiam juncos e outra vegetação mais alta do que o muro da fábrica, o que tornava aquele local um sítio perfeito para a observação das aves.

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Uma grande lagoa formou-se após o movimento de terras feito pelas máquinas Guillermo Vidal

“Era aqui que o Dr. Temme e os fotógrafos vinham fotografar as aves, porque se escondiam e as aves não os viam”, explica Anabela Blofeld. É possível ver no muro um buraco para colocar uma objectiva. No chão, alguém empilhou pequenos paralelepípedos de pedra e tijolos para se poder subir neles e ficar mais alto.

É o que fazemos. Luís Santos empresta-nos os binóculos e vai relatando o movimento das aves que se está a passar lá longe, nas lagoas naturais e na vegetação à volta.

Ao fundo, no meio da vegetação, avista-se um colhereiro-comum (Platalea leucorodia) de plumagem branca. O seu bico comprido icónico, que termina em forma de colher de pau, denuncia-o. “Alimenta-se de pequenos invertebrados”, explica Luís Santos. “A técnica de se alimentar é andar com o bico na água” à espera de algo que apareça para apanhar e ingerir. “Não dá para perceber se é uma fêmea ou se é um macho. Aquele é capaz de ser um juvenil ou pode ser um adulto em plumagem nupcial”, acrescenta.

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Os colhereiros reconhecem-se pelo bico que termina em forma de colher Manfred Temme

Na lagoa observam-se também patos-trombeteiros (Anas clypeata), a marraquinha (Anas crecca), uma espécie de pato que aparece durante o Inverno, e dois pernilongos (Himantopus himantopus), que, com as suas pernas finas e compridas, se passeiam na lagoa. Mais perto de nós, o ornitólogo amador identifica uma petinha-dos-prados (Anthus pratensis) em cima de um montículo de terra e galhos. A pequena ave mistura-se com os tons castanhos à volta.

Mas o movimento, no céu, também não pára. “Vai ali uma galinha-d’água”, aponta Luís Santos.

“Dizem que as aves se sentem incomodadas pelo barulho da cidade. É totalmente falso. Sentem-se protegidas”, defende por sua vez Anabela Blofeld. “As aves vêm aqui dormir e qualquer pessoa pode comprovar isso”, acrescenta, mostrando-nos várias fotografias e vídeos obtidos ali na lagoa onde se podem observar diversas espécies.

Uma narceja-comum visita aquela zona húmida Manfred Temme
Uma garça-branca visita aquela zona húmida Manfred Temme
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Uma narceja-comum visita aquela zona húmida Manfred Temme

As zonas húmidas são habitats que foram diminuindo à medida que foram sendo transformados em salinas, arrozais, ou foram sendo urbanizados. “As zonas húmidas são sempre raras”, afirma Domingos Leitão, director executivo da SPEA, biólogo e um dos directores científicos do estudo da Almargem.

Só por serem uma zona húmida, as Alagoas Brancas “têm um imenso valor natural à escala local e regional”, explica ao PÚBLICO, dias depois. No entanto, a sua importância ultrapassa esse nível geográfico. “Para uma ou duas espécies, até tem importância internacional. Mas mesmo que não tivesse, aquela zona húmida tem importância e tem de ser mantida”, defende o especialista.

No contexto português, uma das espécies que Domingos Leitão refere é a garça-boieira, que nos últimos sete anos teve um declínio no território nacional de 75%, mostra o relatório O Estado das Aves em Portugal (2022), produzido pela SPEA. Segundo o estudo da Almargem, 1% da população portuguesa desta ave estará concentrada nas Alagoas Brancas.

O terreno “tem uma comunidade de aves que é relativamente grande ao longo do ano – com a excepção dos meses de Verão –, o que é extraordinário para uma área daquela dimensão”, assegura o biólogo. Por isso, “o espaço deve ser restaurado e protegido” defende.

Para Domingos Leitão, é cada vez mais importante que as pessoas tenham acesso e contacto com espaços naturais. “Há serviços de saúde pelo mundo fora a recomendarem visitas a áreas naturais. Nos dias de hoje, estar a destruir uma zona natural às portas de uma cidade… Não consigo perceber”, diz, referindo-se com perplexidade à actuação da câmara municipal. “Todo este processo é estarrecedor, havendo informação, população alerta, autonomia financeira [da câmara], estamos numa situação destas.”

Aves, “this way”

Saímos daquele esconderijo e caminhamos por um terreno mais à frente até desembocarmos por uma outra rua. A caminhada é feita longe das lagoas para não incomodar as aves. Anabela Blofeld vai contando algumas peripécias do caso. “Já houve três ou quatro opções de mudar a lagoa para outro lado. Mas mudar o loteamento, não”, diz a activista. “Depois diziam às aves, ‘this way’”, acrescenta, com humor, fazendo um gesto com o braço imitando uma seta imaginária, que ajudaria as aves a descobrirem a nova localização das lagoas.

Perguntamos-lhe qual é o desejo do movimento de cidadãos. “Que esta zona seja salvaguardada, protegida e, como diz o estudo da Almargem, faça parte da Convenção de Ramsar, que é das zonas húmidas”, responde.

O processo iniciado pelo PAN com a providência cautelar também vai nesse sentido. “A nossa acção visa a protecção da biodiversidade no seu todo e não apenas a anulação do acto que conferiu o alvará”, explicou Inês de Sousa Real, ao PÚBLICO, dias depois. “Esperamos que o tribunal esteja do lado certo, que é do lado dos animais e da biodiversidade.”

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Anabela Blofeld faz parte do movimento de cidadãos Salvar as Alagoas Brancas Guillermo Vidal

Segundo Inês de Sousa Real, o facto de certos animais poderem ter sido enterrados durante os trabalhos feitos no terreno confere “uma violação” da lei portuguesa. O cágado-de-carapaça-estriada, existente nas Alagoas Brancas, faz parte da lista de espécies de fauna estritamente protegidas, de acordo com a Convenção de Berna, pela protecção da vida selvagem e dos habitats naturais da Europa.

“A Convenção de Berna protege o cágado-de-carapaça-estriada e confere uma protecção jurídica que não está a acontecer”, alerta a deputada. “Há aqui uma protecção que não pode ser ignorada pelo Estado português.” Além desta espécie, também o cágado-mediterrânico e a rã-de-focinho-pontiagudo fazem parte da lista de espécies animais "de interesse da comunidade que exigem uma protecção rigorosa”, lê-se no Anexo B-IV, do Decreto-Lei n.º 140/99, que apresenta o diploma onde se transpõe para a ordem jurídica interna as directivas Aves e Habitats da União Europeia.

Inês de Sousa Real refere que aquela é uma zona húmida, rara naquela região, onde existe uma “vasta biodiversidade”. Além disso, tem um papel importante como zona de alagamento. Estes últimos fenómenos “de cheias deviam fazer-nos ver o valor ecológico que têm as zonas húmidas, pelas suas capacidades de retenção de águas”, argumenta. “É muito estranho que uma câmara em vez de preservar um património único à cidade venha pôr em causa o direito das gerações actuais e futuras.”

Ao fim do dia é comum avistarem-se íbis-pretos que vão passar a noite nas Alagoas Brancas Manfred Temme
Ao fim do dia é comum avistarem-se íbis-pretos que vão passar a noite nas Alagoas Brancas Manfred Temme
Ao fim do dia é comum avistarem-se íbis-pretos que vão passar a noite nas Alagoas Brancas Manfred Temme
Ao fim do dia é comum avistarem-se íbis-pretos que vão passar a noite nas Alagoas Brancas Manfred Temme
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Ao fim do dia é comum avistarem-se íbis-pretos que vão passar a noite nas Alagoas Brancas Manfred Temme

Para a parlamentar, o argumento avançado pela câmara de que teria de pagar uma grande indemnização à Edifícios Atlântico, S.A., caso a empresa fosse impedida de construir ali, não tem em conta os riscos de longo prazo. Estando numa zona propícia a alagamentos, se o edificado que for construído for alagado algures no futuro “o custo [dos estragos] vai ser muito maior”, alerta a porta-voz do PAN. A nível da Assembleia da República, já foi aprovado o requerimento avançado pelo PAN para a audição do ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, o presidente da Câmara Municipal de Lagoa e o ICNF sobre o tema das Alagoas Brancas na Comissão de Ambiente e Energia.

Por outro lado, há legislação que permite alterar os planos de urbanização, dando margem à câmara para bloquear a construção nas Alagoas Brancas sem ter de pagar uma indemnização, alega Rui Amores, advogado responsável por ter colocado a primeira providência cautelar. “Sempre que houver uma alteração das circunstâncias que não eram conhecidas à data da aprovação do plano de urbanização, a câmara pode tomar a iniciativa para fazer uma alteração”, explica ao PÚBLICO, referindo-se ao artigo 115.º do Decreto-Lei 80/2015, que revê o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial.

No caso das Alagoas Brancas, “à data do Plano de Urbanização não havia o conhecimento da mais-valia ecológica do local”, recorda o advogado. “A partir do momento que existe o estudo da Almargem, a câmara deveria dizer ao promotor que há uma situação nova, que vão revogar o Plano de Urbanização e que já não se pode construir ali.” Em relação à indemnização, o advogado argumenta que “o direito à indemnização caduca num espaço de três anos após o Plano de Urbanização”, de acordo com o artigo 171.º do mesmo decreto.

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Uma placa numa casa junto dos terrenos Guillermo Vidal

Além disso, no mesmo artigo, prevê-se a exclusão da indemnização quando as características do solo apresentam “riscos para as pessoas e bens”, lê-se naquele decreto-lei. “Independentemente do dever de indemnizar, a Câmara Municipal de Lagoa tem o dever de suspender parcialmente o Plano de Urbanização, não só pelo valor ambiental, mas essencialmente pelo perigo que constitui construir naquela zona”, conclui o advogado.

Mas a Câmara de Lagoa parece ter pouca vontade de mudar a sua posição. “É importante perceber que existem regras e leis, que o município está obrigado a cumprir e a fazer cumprir”, lê-se num comunicado que o município divulgou recentemente.

O PÚBLICO tentou falar com o presidente da câmara sobre o assunto, assim como com a empresa Edifícios Atlântico, S.A., mas não teve sucesso.

Olhar para o céu

De volta à zona húmida, caminhamos pela Rua de Alagoas Brancas até chegar ao lugar de início: o parque de estacionamento do Aldi. Já é o final da tarde. Manfred Temme espera-nos para conversar.

“O terreno deve ser protegido, pode ter uma gestão positiva”, defende o ornitólogo. “Pode ser uma estação de observação e, se se quiser fazer algum dinheiro, quem vem pode colocar um ou dois euros. Os observadores de aves estão a aumentar aqui no Algarve...”, adianta.

Depois, o biólogo mostra-nos algumas das fotografias das aves que tirou ali, em versão grande, plastificada. Numa delas, estão centenas de íbis-pretas (Plegadis falcinellus), outras habitantes regulares daquele local. Ao fim da tarde, depois de se terem alimentado noutros locais, aquelas aves costumam aparecer em grande número nos céus de Lagoa. A coreografia colectiva que fazem cria uma nuvem escura em movimento, que parece estar sempre à procura de uma nova forma, num maravilhamento sem fim.

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Uma íbis-preta nas Alagoas Brancas Manfred Temme

É por elas que ficamos à espera: no parque de estacionamento, a olhar para as Alagoas Brancas, num momento mais ou menos solene. Um pato atravessa calmamente uma lagoa recém-formada entre os montes de terra à nossa frente. No céu, vão surgindo aves para passarem a noite. “Estão a chegar garças-boieiras, são umas 23”, conta Luís Santos. O canavial, ao longe, vai-se enchendo de pontos brancos. A luz do dia vai desaparecendo. Mas as íbis-pretas não aparecem, pelo menos não hoje.

“Temos conseguido que as pessoas olhem para o céu”, diz Anabela Blofeld, contando uma vitória, apesar da desilusão: “Como é que uma cidade se pode importar mais com um retail park do que com isto?”