II. Transição Energética: “Zonas de sacrifício” da mineração
Periférica em relação aos centros urbanos e marginal aos grandes centros de poder económico, o Barroso é uma das regiões onde a urgência imposta pelas alterações climáticas, mais obviamente, expõe as contradições de uma transição energética que renova uma expansão extractivista. Alicerçada nas políticas europeias sobre recursos críticos, aqui como em outras regiões, o modelo de transição energética proposto acentua desigualdades sociais, assim como injustiças ambientais, climáticas e energéticas. Nestas montanhas, onde subsistem aldeias sem acesso à rede eléctrica, é pedido a comunidades que preservam modos de vida sustentáveis e resilientes que sacrifiquem os seus territórios para fornecer os recursos minerais desta transição energética.
Mais de metade dos actuais contratos de exploração de lítio situa-se na região do Barroso, englobando os concelhos de Boticas e Montalegre no distrito de Vila Real. Aqui, existem sete contratos de exploração e um de prospecção mineira que, em conjunto, cobrem uma área total de 2240 hectares — ou seja, cerca de 2% da região, dos quais 65% têm em vista a exploração de lítio. Não obstante, em 2020, a região norte foi responsável por cerca de 52% da produção nacional de energias renováveis e, em 2021, só o distrito de Vila Real produziu cerca de 9% através de energia eólica e hídrica.
Barroso: o sacrifício de comunidades de baixo impacto
No Largo do Cruzeiro, em Covas do Barroso, encontramos o centro de informação sobre a Mina do Barroso da companhia mineira britânica Savannah Lithium Lda, um projecto com 543 hectares que visa a extracção de lítio a céu aberto. Mesmo em frente, o forno do povo ainda coze o pão todas as semanas e, numa laje à entrada, lê-se uma citação do Miguel Torga onde, referindo o “direito ao pão da fraternidade”, assegura que “o comunitarismo, por estas bandas, não é uma palavra vã”. E é certo, ainda que paire no ar um clima tenso pelo renovar das ameaças que este modo de vida ancestral enfrenta.
Sob o jugo de um alegado “interesse público”, a Mina do Barroso traz a iminência da expropriação de terras comunais, fundamentais na preservação dos modos de vida e economia local da região. O projecto responde agora a um pedido de reformulação do estudo de impacte ambiental que foi considerado insuficiente pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Simultaneamente, esta encontra-se sob investigação pela Convenção de Aarhus, acusada de não disponibilizar informação relevante sobre o projecto à população. Enquanto o processo se desenvolve, a sombra do cruzeiro continua a marcar as horas da torna da água, em que esta é rigorosamente repartida pelas várias famílias da aldeia, desde a hora do sol quente — quando no topo do monte bate o sol na pedra do mesmo nome — até ao anoitecer.
Não é por acaso que esta região foi reconhecida pela UNESCO como Património Agrícola Mundial e, há mesmo quem diga, guarda na complexa simplicidade dos seus modos de vida a memória prática necessária para ultrapassar os grandes desafios ecológicos, climáticos e sociais actuais.
Aqui a gestão comunal das águas complementa a gestão comunal das terras, ambas compreendidas como bens comuns e colectivos, garantindo modos de vida que se opõem e resistem à privatização e sobreexploração de recursos essenciais. O curso de água fresca atravessa a aldeia e, seguindo dias de quatro a cinco horas solares, é encaminhada para os respectivos lameiros e campos de cultivo. De forma semelhante, os terrenos baldios são propriedade comunitária e cobrem cerca de 2000 hectares nesta freguesia, sendo a base da economia local que assegura a subsistência da comunidade através de actividades pecuárias, florestais e apícolas. A gestão dos baldios assenta em decisões colectivas tomadas na assembleia de compartes, composta pela comunidade local. Foi este modo de vida que permitiu persistir no tempo uma identidade cultural que se espelha na paisagem, vinculada a raças autóctones, como o gado barrosão; à floresta de carvalho e castanheiro; aos campos de urze, giesta e rosmaninho; e à biodiversidade rica e única da região.
Um olhar pelas serras: as contradições da transição energética
Entre as serras, um olhar pelo horizonte é marcado pelo topo dos montes contornado por turbinas eólicas, que se iluminam à noite de pontos de luz vermelha. Mais adiante, a luz encadeante da Barragem de Ribeira de Pena, em construção, torna presente o complexo hidroeléctrico do Tâmega. No topo do Castro do Lesenho, uma réplica do guerreiro galaico rodeada por três linhas de muralhas, de onde se avista desde a serra do Gerês ao Marão, guarda à distância a herança cultural deste lugar. No topo da aldeia, desde o Olhar do Guerreiro, a vista da paisagem não deixa dúvidas sobre as profundas contradições de uma transição energética que, assente num modelo corporativo e não popular, reforça os contrastes da região e reacende focos de resistência.
Ao longe avistam-se os parques eólicos da serra do Barroso I, II e III com um total de 26 turbinas (53MW de potência instalada), enquanto a sul temos ainda o parque eólico do Alvão, com 33 turbinas (67MW) e a norte, o parque eólico de Terra Fria com 48 turbinas (96MW) e o parque eólico de Montalegre com 30 turbinas (60MW). A companhia espanhola Iberdrola avançava, há cerca de um ano, mais um investimento de 450 milhões para construção dos parques eólicos de Tâmega Norte e Sul, com um total de 73 turbinas e 453MW de potência instalada, com capacidade de produzir 1150GWh por ano.
Enquanto os montes se cobrem de turbinas eólicas, a subestação de Ribeira de Pena foi ligada à Rede Eléctrica Nacional este ano. Esta faz parte do complexo hidroeléctrico do Tâmega, também a cargo da Iberdrola, que afecta tanto os concelhos de Montalegre e Boticas, como outros nos distritos de Vila Real e Braga, sendo composto pelas barragens do Alto Tâmega (160MW), Daivões (118MW) e Gouvães (880MW). O projecto, que avançou perante a indignação e protesto da população, forçada a abandonar as suas aldeias, terá capacidade para produzir anualmente 1766GWh e prevê-se entrar em funcionamento pleno em 2024. Este soma-se ao complexo hidroeléctrico do Cávado-Rabagão-Homem, construído mais a norte nos anos 50, onde se inclui a Barragem de Venda Nova (90MW), Paradela (54MW) e Alto Rabagão (68MW), que pode produzir anualmente 721GWh. Com capacidade para armazenar 800hm³ de água, este complexo hidroeléctrico é também crucial no abastecimento de água potável de toda a região norte.
Os impactos sociais e ecológicos da mineração
Estas são as chamadas “zonas de sacrifício” de uma transição baseada numa perspectiva tecnocapitalista hegemónica. Mas o que está em causa? A Mina do Barroso, tal como outros projectos de mineração nesta e noutras regiões, enfrenta uma considerável resistência por parte da população local, estando localizada a cerca de 400m da comunidade de Covas do Barroso. As comunidades locais temem os enormes impactos sociais e ambientais que estes projectos terão nos seus meios de subsistência, ameaçando tanto a biodiversidade e a água, como o sector agrícola e o ecoturismo da região.
Os impactos ambientais da mineração variam bastante consoante o tipo de recurso, a toxicidade dos dejetos e o consumo energético da extração. Não obstante, a mineração é a indústria que produz globalmente a maior quantidade de resíduos, podendo causar graves danos ecológicos por vazamento, infiltração ou lixiviação de substâncias tóxicas, ameaçando os ecossistemas e comunidades circundantes. De forma geral, a mineração acarreta impactos ambientais de longo prazo que incluem a destruição de habitats, perda de biodiversidade, emissões de gases e partículas, alteração de bacias hidrográficas, poluição sonora e contaminação do ar, dos solos e da água, tanto à superfície como em lençóis freáticos.
No caso do Barroso, estas ameaças afectam também o abastecimento de água potável de grandes centros urbanos, como Braga e Porto. Apesar das regulamentações ambientais europeias serem apontadas como das melhores a nível mundial, a Europa é o segundo continente com o maior número de incidentes com barragens de rejeitados ou falhas críticas de outras infraestruturas, como ocorreu em Aznalcóllar (1998), Baia Mare e Borşa (2000), Talvivaara (2012) ou Cobre Las Cruces (2019).
De facto, apesar da retórica do “desenvolvimento sustentável” e da “mineração verde” reproduzida tanto pelas companhias mineiras como por representantes do governo, nenhuma das maiores companhias mineiras mundiais tem pontuação suficientemente alta para cumprir as normas sociais e ambientais vigentes. O Índice de Exploração Mineira Responsável de 2020 mostra que mesmo as empresas com melhores desempenhos ficaram consideravelmente aquém das expectativas a todos os níveis, incluindo o bem-estar da comunidade, condições de trabalho e responsabilidade ambiental, mostrando-se incapazes de traduzir na prática os seus compromissos sociais e ambientais.
Além disso, estudos de impacto ambiental ignoram a complexidade dos impactos sociais e ecológicos da mineração. Do ponto de vista social, as promessas de criação de emprego e desenvolvimento económico podem considerar-se infundadas, dado dificilmente colmatarem os impactos negativos sobre a qualidade de vida e economia local. Impactos socioeconómicos incluem o deslocamento forçado das populações locais, a perda de meios de subsistência e ameaças à saúde e bem-estar da comunidade. Um estudo recente em Portugal, realizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra no âmbito do projecto Tropo, aponta também graves injustiças ambientais a nível da distribuição, reconhecimento e processo de implementação destes projectos.
Em particular, sobressai como a distribuição de custos e benefícios acentua desigualdades sociais, prejudicando comunidades rurais economicamente vulneráveis e beneficiando principalmente grandes grupos económicos e populações urbanas. O direito das comunidades locais à informação e participação pública são desprezados, enquanto estas são vítimas ou testemunhas de longos processos de intimidação, coacção, exclusão e estigmatização. Assim, a falta de transparência, aliada à desinformação vinculada por companhias mineiras e órgãos governamentais, perpetua uma irresponsabilidade social assente na violência e na violação de direitos humanos que ameaça a integridade, subsistência e herança cultural das populações afectadas. O desrespeito pelas comunidades locais e seus territórios é evidente e, aliado à consciência das premissas falaciosas em que se baseia esta transição energética, torna clara a necessidade de resistência.
É fundamental promover a participação popular no desenvolvimento de soluções reais para mitigar e reverter a tripla crise climática, ecológica e social que enfrentamos. Possíveis soluções mais justas e resilientes implicam reconhecer uma responsabilidade coletiva sobre a gestão de bens comuns — como o ar, o solo e a água —, assim como o papel fundamental das comunidades locais na conservação destes e outros recursos. Simultaneamente, quaisquer soluções requerem questionar os padrões de produção e consumo da sociedade actual que causaram esta tripla crise em primeiro lugar, redefinindo noções de desenvolvimento e redesenhando sociedades de baixo impacto tanto através de uma distribuição mais igualitária de custos e benefícios, como do reconhecimento e proteção de modos de vida que preservam a integridade da paisagem natural e cultural do país.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico