Quando Meera Sanghani-Jorgensen estava na casa dos 30 anos começou a discutir a possibilidade de ter filhos com o marido. Ambos queriam ter filhos, mas Sanghani-Jorgensen não conseguia afastar a sensação de que, ao dar à luz, poderia estar a fazer algo de mau para a Terra.
"Queria ter um filho, mas também estava a olhar para o planeta e a pensar: 'Bem, que tipo de futuro teremos se houver mais do mesmo? " Pensou nas fraldas, nas prendas e decorações de festas de aniversário, nos brinquedos, e nos milhares de milhões de toneladas de emissões de carbono que aquecem o planeta todos os anos. Sentiu-se sobrecarregada pelo consumo dos seus filhos antes mesmo de estes nascerem.
Após muita pesquisa, Sanghani-Jorgensen e o seu marido decidiram que ter um único filho poderia satisfazer os seus desejos sem sobrecarregar um mundo em sobreaquecimento. "Fazia questão em ter apenas um filho", lembra.
O marido de Meera morreu em 2012. Sanghani-Jorgensen admite que considerou ter um segundo filho muitas vezes, nos anos seguintes ao nascimento da sua filha. "A minha reserva tem sido exactamente uma preocupação ambiental", diz. A sua filha tem agora 13 anos. Jorgensen não está sozinha. Junta-se a uma geração de pessoas que vivem nos EUA e noutros países ricos preocupados com a forma como ter filhos pode agravar o rápido aquecimento do planeta.
O movimento não é muito grande, mas tem vindo a conquistar atenção. De acordo com um inquérito de 2021 do Pew Research Center realizado a adultos sem filhos, 5% dos que citaram uma razão específica para não ter filhos disseram que foi devido às "alterações climáticas/ ao ambiente". Foram feitos vários ensaios sobre este tema; grupos de activistas e redes de apoio à volta deste propósito formaram-se e depois acabaram dissolvidos.
Numa carta dirigida aos investidores no ano passado, os analistas da Morgan Stanley observaram que o "movimento para não ter filhos devido a receios sobre as alterações climáticas está a crescer e a afectar as taxas de fertilidade mais rapidamente do que qualquer tendência anterior no campo do declínio da fertilidade".
No entanto, a investigação sobre a questão tem uma história surpreendente, e algumas dessas conclusões podem já estar desactualizadas.
No mesmo ano em que nasceu a filha de Sanghani-Jorgensen, dois cientistas da Universidade do Estado do Oregon publicaram um artigo que estima que cada criança nascida nos EUA acrescenta milhares de toneladas de dióxido de carbono ao "legado de carbono" da vida dos seus pais. Estas descobertas foram depois recuperadas numa revisão bibliográfica de 2017 por dois cientistas da área da sustentabilidade, que calcularam que a opção de não ter uma criança reduziria as emissões em cerca de 60 toneladas métricas por ano, uma quantidade que anulava positivamente as outras acções possíveis (viver sem carro: 2,4 toneladas de emissões evitadas; não fazer um voo transatlântico: 1,6 toneladas). O artigo suscitou muita atenção nos media — até à data, já foi descarregado mais de 850 mil vezes.
"Quer salvar o planeta? Tenha menos filhos", anunciava um título no Guardian. "A ciência prova que as crianças são más para a Terra", concluía outro título, desta vez, no NBC News.
Contudo, nos últimos anos, alguns especialistas em clima questionaram a ciência subjacente a estes cálculos. Outros simplesmente rejeitam a ideia de que os pais tenham de sentir-se responsáveis pelas emissões de gases com efeito de estufa dos seus filhos.
Pegadas
Há, sem dúvida, consequências ambientais em ter filhos. Mas a questão de ter filhos num mundo em aquecimento começou a passar do medo sobre o que as crianças farão ao clima para o medo sobre o que o clima lhes fará.
Desde o período que antecedeu a Revolução Industrial, o planeta aqueceu quase 1,2 graus Celsius (ou 2,1 graus Fahrenheit), graças aos combustíveis fósseis que a humanidade descobriu e queimou, enviando uma camada pesada de dióxido de carbono para a atmosfera. Ao mesmo tempo, a população mundial tem continuado a crescer. Em 1960, havia 3 mil milhões de pessoas vivas, um facto que alimentou o medo de sermos confrontados com fomes a nível mundial. No mês passado, a população mundial atingiu os 8 mil milhões de pessoas.
As preocupações sobre a população têm uma história amarga: escritores e pensadores têm alertado para o crescimento desenfreado da população durante centenas de anos — frequentemente envolvidos em ideias marginais sobre esterilização forçada e eugenia de pessoas que vivem em países em desenvolvimento. Mas na última década, as preocupações têm sido mais individuais, pessoais, e enraizadas no consumo e responsabilidade ocidentais.
A partir de 2020, o americano médio tinha uma pegada de carbono — calculada dividindo as emissões do país pelo seu número de habitantes — de cerca de 14 toneladas métricas de CO2 por ano, uma das mais elevadas do mundo [segundo o Banco Mundial, Portugal emitiu 4,84 toneladas métricas de dióxido de carbono (CO2) per capita em 2018].
Matthew Schneider-Mayerson, professor de Inglês no Colby College, que está a escrever um livro sobre reprodução e alterações climáticas, entrevistou muitos americanos preocupados em ter filhos numa era de alterações climáticas. Schneider-Mayerson descobriu que a maioria dos seus participantes estava "muito" ou "extremamente" preocupada com a questão da pegada de carbono no momento de decidir ter outro filho. "Acrescentar outro americano ao problema não é um acto moralmente neutro", respondeu um dos inquiridos.
"Quaisquer crianças que tenhamos nas partes desenvolvidas do mundo serão incrivelmente caras do ponto de vista ambiental", disse Travis Rieder, um bioético da Universidade Johns Hopkins que defendeu uma mudança para famílias mais pequenas. "E poderão continuar a ter filhos que também consumam mais do que a sua quota-parte justa".
Mas os dados científicos sobre o impacto na pegada de carbono de ter filhos são ainda escassos. Até à data, o artigo de 2009 de dois cientistas da Universidade Estatal do Oregon é a única investigação académica original sobre esta questão. E esse artigo adoptou uma abordagem invulgar. Numa tentativa de quantificar todas as potenciais emissões futuras de carbono de uma criança, os investigadores assumiram que a mãe e o pai eram cada um responsável por metade das emissões do seu futuro filho, um quarto das emissões do seu neto, um oitavo das emissões do seu bisneto, e assim sucessivamente até ao ano 2400 — ou até à extinção da linha familiar.
Essa suposição resultou em estimativas muito elevadas para o impacto de carbono de ter um filho. Segundo o estudo, ter um filho num país desenvolvido como a Rússia, os EUA ou o Japão, resultaria em cerca de 60 toneladas métricas por ano em emissões de CO2 — uma quantidade equivalente a colocar 13 carros a gasolina na estrada durante um ano. Quando estes números foram comparados com outras acções individuais sobre o clima, no estudo de 2017, pareciam ainda mais acentuados.
Ter ou não ter
Essa ideia — de que ter menos um filho é o passo mais importante para a redução do carbono — passou para a sociedade. Schneider-Mayerson diz que muitos dos indivíduos preocupados com o clima que abordou estavam familiarizados com o estudo de 2009, ou pelo menos com a sua descoberta central; alguns até o citaram como o motivo que os levou a decidir não ter filhos.
Mas vários peritos defenderam uma abordagem diferente para avaliar a contribuição de ter um filho para as alterações climáticas.
Em primeiro lugar, como salienta Schneider-Mayerson, o estudo de 2009 torna a geração actual responsável pelas emissões centenas de anos no futuro; por essa lógica, as crianças nascidas hoje não são responsáveis por nenhuma das suas emissões de carbono — nem os seus filhos ou netos. "É o problema da dupla contagem", disse ele. "Isto sugere que uma pessoa não é responsável pelas suas emissões se os seus pais optaram por o ter — o que não parece apropriado".
Além disso, a estimativa central do estudo sobre o "legado de carbono" de ter um filho pressupõe também que o mundo não faria nenhum progresso na transição da economia dos combustíveis fósseis de 2009 para 2400. "É muito grave a esse respeito", disse Zeke Hausfather, o principal autor da investigação climática na empresa Stripe, que contribuiu para relatórios anteriores do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas da ONU. "Não só assume que não descarbonizamos durante a vida da criança, mas também que não descarbonizamos durante a vida dos seus filhos, ou dos filhos dos seus filhos". (Os autores do estudo de 2009 recusaram-se a ser entrevistados para este trabalho).
E a realidade é que as pegadas de carbono de pessoas que vivem em países ricos já começaram a mudar. Segundo a análise da empresa de energia e economia Rhodium Group realizada para o The Washington Post, um americano nascido em 1950 será, ao longo da sua vida, responsável, em média, por 19 toneladas métricas de CO2 por ano. Essa pessoa terá passado a maior parte da sua vida a utilizar a energia fornecida pelo carvão e outros combustíveis fósseis e a conduzir carros com grandes consumos de combustível. Por outro lado, mesmo que os EUA não aprovem nenhuma nova política climática até 2100, uma criança nascida hoje terá uma pegada média de carbono de cerca de metade da dos seus avós: isto porque a energia renovável ficou mais barata, e o gás natural substituiu em grande parte o carvão.
O que fazer com os números
Kimberly Nicholas, professora de ciências da sustentabilidade na Universidade de Lund e uma das autoras da revisão bibliográfica de 2017, diz que ainda acredita que é razoável rastrear as emissões de uma criança através de múltiplas gerações. "Penso que é uma comparação justa", afirma. No entanto, a investigadora defende que a decisão de ter uma criança não deve resumir-se à pegada de carbono. "Os números são os números", diz. "Mas o que se faz com eles — e como influenciam uma tomada de decisão — depende de cada pessoa."
Se os EUA alcançarem os seus objectivos climáticos — ou seja, se conseguirem reduzir as emissões para metade até 2030 e para zero até 2050 — o quadro parece ainda mais diferente. Nesse caso, uma criança nascida hoje teria uma pegada de carbono média ao longo da sua vida de cerca de 2,8 toneladas por ano, não muito longe de um residente no Brasil actualmente. Sob esse cenário, ter menos uma criança começa a ter o mesmo impacto da opção de viver sem carros ou de evitar um voo transatlântico — significativo, mas nem sequer próximo da acção individual mais importante que se pode tomar. (Esta estimativa não inclui as emissões provenientes do exterior dos Estados Unidos, como o dióxido de carbono libertado para produzir bens que os americanos importam. Mas se as actuais importações e exportações fossem tidas em conta, as emissões dos EUA seriam apenas cerca de 6% mais elevadas).
A questão central, refere Hausfather num email, é que os humanos não causam emissões de carbono — são os combustíveis fósseis que as causam. Um planeta com apenas 4 mil milhões de pessoas mas um sistema energético ainda ligado ao petróleo, gás natural e carvão, continuaria a emitir mais carbono do que o planeta poderia suportar (ou seja, qualquer quantidade em excesso do que pode ser absorvido pelos oceanos e pela terra).
E vamos ter de lidar com as alterações climáticas nas próximas décadas. De acordo com um estudo do Proceedings of the National Academy of Sciences, mesmo uma política mundial draconiana de uma só criança, instituída hoje, resultaria ainda em cerca de 7 mil milhões de pessoas no ano 2100. Menos do que a actual estimativa da ONU de 11 mil milhões, talvez, mas ainda o suficiente para queimar uma grande quantidade de combustíveis fósseis.
Por outro lado, se os países descarbonizarem ao mudarem para energia limpa, "não importa quantas pessoas estejam no planeta", conclui Hausfather. "Resume-se a isso: quanta esperança tem que a sociedade possa resolver este problema?'"
Rieder, bioético, argumenta que embora a decisão de ter uma família mais pequena não vá inverter o problema das alterações climáticas, ainda pode ser uma decisão eticamente correcta. "Qualquer um de nós tem uma boa razão moral para ser parte da solução, não parte do problema — mesmo quando a sua parte é infinitamente pequena." Ao mesmo tempo, as alterações climáticas são apenas um segmento dos problemas ambientais do mundo — embora o mais existencial. A população humana também invade a vida selvagem, ocupa terra, e mil outras coisas que pesam muito sobre a Terra. "Poderemos até ser neutros em carbono dentro de algumas gerações", arrisca o investigador, acrescentando: "Mas o que acontece com o consumo alimentar e as necessidades de água potável?"
O potencial de perigo e felicidade
Algumas mulheres rejeitam o enquadramento de que uma criança é uma pequena bomba de carbono à espera de explodir. Josephine Ferorelli, professora de ioga, e Meghan Kallman, socióloga e senadora estatal de Rhode Island, conheceram-se através de um amigo há quase uma década e uniram-se partilhando as mesmas preocupações sobre as crianças e o aquecimento do planeta. Acabaram por fundar um grupo conhecido como "Futuro concebível", uma rede que organiza convívios em casa para as pessoas discutirem os seus sentimentos sobre este tema.
Parte do seu objectivo agora, dizem elas, é tentar ajudar as mulheres a exprimir — e eventualmente pôr de lado — os seus sentimentos de culpa individual na decisão de ter filhos. Argumentam que os pais não são responsáveis por um problema de todo o sistema. "Espero que quando as pessoas participam nos nossos encontros saiam de lá pelo menos com a sensação de um fardo menos pesado sobre a forma como encaram a questão da 'pegada de carbono'", diz Ferorelli.
Mas o outro lado da equação — a preocupação com o tipo de futuro que as crianças de hoje irão experimentar — é mais difícil de desenredar. A ironia é que mesmo quando a pegada de uma criança nascida no mundo desenvolvido está a diminuir, os impactos das alterações climáticas que essa criança irá experimentar estão a aumentar — e em alguns casos muito mais rapidamente do que os cientistas tinham esperado.
Em todo o mundo já se vêem confrontados com dias cheios de fumo de fogos florestais sufocantes, inundações catastróficas e perigosas ondas de calor. Uma criança nascida hoje provavelmente ainda estará viva em 2100, altura em que o aquecimento poderá já ter duplicado, no pior dos cenários.
Camila Thorndike, uma jovem de 35 anos que vive em Washington, D.C. e é a directora de programas políticos do grupo sem fins lucrativos Rewiring America, começou a pensar na mudança climática e em ter filhos quando estava no oitavo ano. Admite que agora grande parte da sua hesitação em ter um filho está enraizada no medo sobre como será o seu futuro. "É um sentimento que vem do amor pelo meu hipotético filho", diz. "Quero protegê-lo do sofrimento. Não que a vida possa estar livre do sofrimento, mas... que parte das alegrias, paz e bondade que hoje me fazem mais feliz por estar viva estará acessível em 20, 30, 40 anos?"
Outras mulheres acabaram com as relações por causa desta questão. Laurel, 33 anos de Wisconsin, que pediu para ser identificada apenas pelo seu primeiro nome, divorciou-se do seu primeiro marido em parte porque ele queria ter filhos e ela, preocupada com um futuro com mudanças climáticas, não quis. "Com a incerteza do mundo neste momento — não sinto que seja seguro", explica. "Não gostaria de sujeitar os meus filhos a isso." Laurel voltou a casar com um homem que também não quer ter filhos.
Estas preocupações não têm uma resposta fácil. Muitas pessoas, talvez, escolheriam não ter filhos se soubessem com certeza que o aquecimento ao nível da extinção estava mesmo ao virar da esquina. Por outro lado, mais pessoas poderiam escolher ter filhos se soubessem com certeza que os países se reuniriam para acabar com as emissões de gases com efeito de estufa e conseguiam criar uma sociedade mais sustentável. O meio-termo é onde se torna difícil. Será que devíamos ter filhos se acharmos que podem crescer com verões cheios de fumo e com uma subida constante do nível do mar? Será que devíamos ter filhos se acharmos que o mundo desenvolvido, o mundo ocidental, sofrerá perdas mínimas, mas os países em desenvolvimento sofrerão enormemente?
Hausfather, cientista climático, argumenta que o clima é mais um multiplicador de ameaças — algo que tornará muito mais provável uma convulsão política e económica. "Cabe-nos a nós decidir se vamos ter uma paisagem apocalíptica infernal", avisa. "E isso depende de muitos factores, além das alterações climáticas."
Thorndike, que andou para trás e para a frente durante muitos anos sobre a questão de ter ou não filhos, diz que agora tem muita humildade na decisão. "A minha perspectiva mudou tantas vezes ao longo dos últimos 20 anos", lembra. "É uma decisão que ninguém pode tomar por outra pessoa. E eu concedo a mim própria o espaço para essa incerteza."
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post