Foi dado um passo histórico na COP27, ao ser aprovado um acordo para um fundo para financiar perdas e danos causados pelos efeitos das alterações climáticas nos países “particularmente vulneráveis” – ainda que todo o processo para o criar e financiar esteja em aberto. Mas, por outro lado, a Cimeira do Clima das Nações Unidas em Sharm el-Sheikh, no Egipto, que terminou já na manhã deste domingo (foi a terceira mais longa de todas, segundo uma contagem do blogue Carbon Brief), não foi capaz de aprovar um novo compromisso para a redução das emissões de gases com efeito de estufa, que a ciência diz ser necessário, para que seja possível limitar o aquecimento global do planeta a 1,5 graus.
“É essencial haver um fundo para as perdas e danos – mas não é a resposta, se a crise climática fizer desaparecer do mapa um pequeno Estado insular ou transformar todo um país africano num deserto. O mundo ainda precisa de dar um salto de gigante na ambição climática”, afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.
“Sejamos claros: o nosso planeta ainda está no serviço de urgência. Temos de reduzir drasticamente as emissões agora – e este assunto não foi abordado pela COP27”, concluiu Guterres.
Foi uma vitória o facto de esta ter sido a primeira Cimeira do Clima em que a questão das perdas e danos foi aceite como um tema oficial da agenda – apesar de se falar nele há três décadas, as nações mais ricas, e que são também responsáveis pela maior quantidade de emissões de gases de efeito de estufa na atmosfera, resistiam a discutir o assunto, por receio de serem responsabilizadas pelos desastres relacionados com as alterações climáticas. E mais importante foi ter terminado com um acordo que lança as bases para este fundo.
O acordo estipula a nomeação de uma comissão que vai explorar quais os países que poderão beneficiar, e quais os possíveis doadores – os bancos de desenvolvimento multilaterais e as agências das Nações Unidas são especificamente nomeados –, com a perspectiva de que haja decisões a tomar na COP28, no ano que vem, nos Emirados Árabes Unidos. Por ora, não tem qualquer dotação financeira.
Ainda assim, Sherry Rehman, ministra das Alterações Climáticas do Paquistão, afectado por inundações gigantescas relacionadas com o aquecimento global, classificou como “histórico” este acordo. “Não se trata de aceitar caridade. É um pagamento para podermos investir nos nossos futuros, e para que haja justiça climática”, afirmou, citada pela Reuters. Rehman liderou as negociações pelo chamado “grupo G77+China”, o dos países em desenvolvimento, que neste momento é presidido pelo Paquistão.
Não se reduziram emissões
Mas, realçou o vice-presidente executivo da Comissão Europeia, Frans Timmermans, chefe da missão europeia em Sharm el-Sheikh, a conferência ficou aquém das expectativas. “Peço-vos que reconheçam, quando saírem desta sala, que não empreendemos todas as acções que podíamos na questão das perdas e danos. Devíamos ter feito muito mais, os cidadãos esperavam muito mais de nós. Isso significava: reduzir mais rapidamente as emissões”, afirmou.
Apesar de a declaração final mencionar, pelo primeira vez, a necessidade de compreender melhor “os pontos de não-retorno” causados pelo impacto das alterações climáticas no gelo dos pólos, este documento não satisfez, porque a UE e outros países pediam um texto que expressasse a necessidade de reduzir mais as emissoões de gases com efeito de estufa. Queria ainda que se dissesse que é preciso avançar para a progressiva redução ou abandono de todos os combustíveis fósseis. “Esta é uma década decisiva, mas o que temos à nossa frente não é suficiente para representar um passo em frente para as pessoas e para o planeta. As nossas conversações perderam impulso. Demasiados países não estão prontos hoje a avançar mais na luta contra a crise climática”, disse Timmermans.
A União Europeia e outros países queriam que estas duas condições ficassem claras no documento final, e isso não aconteceu. “A falta de progresso no abandono progressivo dos combustíveis fósseis mostra a hipocrisia dos governos dos países ricos e o seu blá-blá acerca de manter a subida da temperatura abaixo de 1,5 graus. Temos de aumentar ainda mais a nossa luta – nos nossos países e nas arenas internacionais”, disse Lidy Nacpil, do Movimento dos Povos Asiáticos sobre a Dívida e o Desenvolvimento, citada pelo Guardian.
“Temos a lamentar aquilo que não foi conseguido em termos de redução das emissões de gases com efeito de estufa”, explica Francisco Ferreira, líder da associação ambientalista Zero, a partir de Sharm el-Sheikh. Por um lado, é repetido o compromisso assumido na COP26, em Glasgow, no ano passado, de tentarmos não ter um aquecimento global superior a 1,5 graus (em relação aos valores antes da Revolução Industrial), como diz o Acordo de Paris. “Mas era preciso ficar claro que isso passa por terminarmos o uso dos combustíveis fósseis, e que o pico das emissões de gases com efeito de estufa fosse atingido até 2025”, explica. Neste momento, o planeta já aqueceu 1,1 graus.
“Enfrentamos um dilema moral. Este acordo não é suficiente na mitigação [redução de emissões]. Mas o que fazemos? Viramos as costas e matamos um fundo pelo qual os países vulneráveis têm lutado tanto, durante décadas? E matamos a oportunidade que nos dá de ter uma conversa sobre expandir as fontes de financiamento? De abrir um novo capítulo sobre perdas e danos e criar um novo método para aumentar a solidariedade? Não. Isso teria sido um grande erro e uma oportunidade perdida”, afirmou Timmermans, para justificar o apoio da UE ao acordo de perdas e danos, ainda que não sejam satisfeitas as exigências que a Europa tinha apresentado.
Corroer o limite de 1,5 graus
“Aquilo a que assistimos no decorrer da COP27 foi uma tentativa de corroer a confiança neste limite [1,5 graus], apontando antes para o limite de dois graus que está igualmente previsto no Acordo de Paris”, dizem num comunicado conjunto a Zero e da Oikos, duas organizações da sociedade civil portuguesa que estiveram presentes em Sharm el-Sheikh. “Os mais recentes relatórios mostram-nos que estamos num caminho que está completamente desenquadrado deste objectivo. Contudo, ainda é possível cumprir o 1,5ºC, que não é um objectivo, é um limite (que não deve ser ultrapassado)”.
Mas países como a China e a Índia têm tentado promover a ideia de que “objectivo real do Acordo de Paris seria limitar o aumento de temperatura a 2ºC, sendo então possível cumprir o acordo, se se alterasse a meta”, dizem a Zero e a Oikos. “Esta é uma tentativa verdadeiramente nefasta de justificar e prolongar a aposta em combustíveis fósseis e era, portanto, vital que se orientassem os esforços de mitigação no sentido de cumprir com o 1,5ºC”, afirmam.
O que transpirou das negociações é que países produtores de gás e petróleo, como a Rússia ou a Arábia Saudita, se opuseram determinantemente a que a declaração final tivesse alguma menção ao “abandono progressivo de todos os combustíveis fósseis”. O que ficou foi a mesma linguagem usada em Glasgow, “redução progressiva do carvão” e dos subsídios para os combustíveis fósseis.
“É mais do que frustrante ver passos que já deviam ter sido dados há muito tempo na mitigação [redução de emissões] e abandono progressivo de combustíveis fósseis serem obstruídas por um determinado número de grandes emissores e produtores de petróleo”, comentou a ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock, numa declaração citada pela Reuters.
Houve muitas críticas à forma como a presidência egípcia da COP27 conduziu as negociações. A Zero e a Oikos ecoam-nas. Lamentam “a falta de liderança, transparência e preparação da presidência egípcia, que apresentou o primeiro esboço de um texto de decisão incipiente, pouco ambicioso e excessivamente tardio, que não reflectiu a urgência da acção e atrasou em demasia o processo negocial, com documentos a serem revelados sem espaço para análise e concertação das partes e da sociedade civil. As negociações políticas que se seguiram foram pautadas por clivagens acentuadas entre países, sobretudo numa lógica de cisão entre o Norte e Sul Globais”, afirmam.
A declaração final menciona ainda “energia de baixas emissões” – algo que muitos temem que abra as portas ao uso crescente do gás natural, que é também um combustível fóssil, com emissões de dióxido de carbono e metano, um gás com um efeito de estufa ainda mais potente. “Não rompe completamente com a declaração de Glasgow, mas não aumenta em nada a ambição”, disse o ministro do Clima da Noruega, Espen Barth Eide.
“O incumprimento destas premissas significa que todo o financiamento climático corresponde a dinheiro que pode abrandar um pouco a nossa velocidade, mas mantém-nos na ‘auto-estrada do inferno’”, a expressão usada por António Guterres na abertura da COP27 e que foi repetida por muitos, afirmam a Zero e a Oikos. “É fundamental que se aproveite o ímpeto criado em torno da justiça climática, direccionando agora a luta para a tarefa árdua de garantir melhores resultados nestas frentes na COP28 nos Emirados Árabes Unidos”, dizem.