Se as crianças estiverem lá fora, o que é que elas vão aprender?
Há cada vez mais escolas e projectos educativos voltados para a natureza, onde as “paredes” das salas são árvores, parques, florestas. Lá fora, a curiosidade é o motor para aprender. Brincar é a maior tarefa. Uma ideia subversiva ou que se prepara para revolucionar as escolas?
Entramos na mata da Quinta das Conchas, em Lisboa, e tentamos encontrar as crianças entre o arvoredo. Na verdade, estamos à procura de uma escola: mas aqui não há paredes, nem portas, nem salas. Nem campainha. Há quem corra, leia histórias, brinque com paus, água e terra. Aproximamo-nos de Marta, 25 anos, uma das educadoras da Escola Lá Fora, que junta pequenos troncos a uma corda. Em breve, será uma escada, pendurada numa árvore de grande porte.
“Queremos potenciar o desenvolvimento motor, mas também o risco, que é algo que valorizamos muito aqui”, explica-nos. “O desafio melhora a auto-estima. Há quem só suba um degrau, outros já chegam lá mais acima”, conta. Cada um a seu tempo, ao seu ritmo.
Salvador, de três anos, não quer tentar trepar a escada. Chegou à escola este ano, ainda está a adaptar-se. As primeiras semanas correram bem, mas no dia em que visitamos a escola a mãe opta por terminar o dia mais cedo: “Amanhã voltamos com novas energias, pode ser Salvador?”
Margarida Costa escolheu esta escola para os filhos depois de “uma série de adaptações frustradas noutras escolas”. Procurou uma alternativa “em que os miúdos não estejam entre quatro paredes. Com regras, mas acima de tudo liberdade. “Acho que lhes vai dar mais saúde, melhorar o sistema imunitário, mais felicidade, porque as crianças se sentem acolhidas e respeitadas”, diz.
A Escola Lá Fora, a funcionar desde 2020, segue o modelo Forest School, que surgiu na Escandinávia, nos anos 50. Valoriza-se o brincar na natureza e uma aprendizagem focada na observação e colaboração entre adultos e crianças, onde se promove a exploração e a descoberta. Um modelo que tem crescido em Portugal, sobretudo no pós-pandemia.
Aqui, recebem-se crianças desde bebés (através das sessões Bebés Lá Fora) até à idade pré-escolar. As crianças dos três aos seis anos podem ficar na escola das 8h30 às 18h30 e todas as actividades são feitas no exterior, incluindo as refeições e as sestas. A casa de banho também está a dois passos, junto a uma árvore: uma pequena sanita de plástico portátil.
“Há rotinas”, explica Ana Galvão, directora pedagógica da Escola Lá Fora. Mas acima de tudo liberdade. “Se estivermos com as crianças lá fora, o que eles querem aprender? Acontece naturalmente”, diz. “Não preciso de ter uma cartilha para eles aprenderem.” No final de 2019, Ana Galvão e Ana Passos e Sousa abandonaram o emprego numa creche para criar a Escola Lá Fora. No espaço da mata da Quinta das Conchas, cedido pela Câmara Municipal de Lisboa, encontraram a sala ao ar livre que procuravam e a pandemia acabaria por impulsionar a procura dos pais por ofertas como esta.
O Ministério da Educação ainda não reconhece oficialmente o modelo da Escola da Floresta: “Teríamos de ter uma infra-estrutura ao lado da mata com todas as salas necessárias”, explica Ana Galvão. Teriam de construir salas, para depois estarem fora delas? “Sim, o exterior não é visto como local de aprendizagem.”
Pais não se revêem na escola tradicional
Há dez anos, quando Magda Ferro e Mónica Franco criaram o Movimento Bloom, havia projectos pontuais que buscavam a ligação à natureza como método de ensino. Nessa altura, começaram com a metodologia lúdico-criativa flow learning, a que foram juntando outras filosofias, como a forest school. Hoje, Magda vê proliferar dezenas de playgroups, actividades, escolas, em que o objectivo é reconectar os mais novos com o mundo natural e basear aí um modelo de aprendizagem menos rígido. “É a força da procura. Os pais não se revêem na escola tradicional”, explica a coordenadora da Escola da Floresta do Movimento Bloom.
“Temos um sistema educativo ainda muito formalizado, muito estruturado com as cadeiras e com as mesas”, afirma Vera Malhão, bióloga marinha e especialista em ensino outdoor e no modelo forest school. “O professor é o líder, transmite a informação. Não damos voz à criança.”
Vera Malhão está a terminar o doutoramento em Educação Outdoor. Durante dez anos formou professores na Escola de Educação Maria Ulrich e hoje divide o seu tempo entre actividades de ensino ao ar livre na zona da grande Lisboa e o Rogil, no Algarve. Durante algum tempo, acalentou o sonho de ter uma escola na natureza, mas esbarrou na burocracia.
“Pensei então em ir até às escolas”. Quando chega a uma sala de aula ou a um recreio, carregada de folhas, pedras e pigmentos naturais, espera que a curiosidade das crianças entre em acção. Mas muitas dizem que não se podem sujar, se não os pais ralham. “Crianças que dizem que não podem sujar os ténis, que não sabem subir a uma árvore, que estranham a brincadeira livre”, conta Vera Malhão.
Na serra de Sintra, Magda Ferro, directora da Escola da Floresta do Movimento Bloom, recebe muitos alunos de escolas públicas de Sintra que nunca tinham brincado numa floresta. “Crianças que tocam nas árvores, brincam à chuva… é uma descoberta incrível para milhares de crianças”. Com a Câmara Municipal de Sintra e de Cascais tem trabalhado num programa para as escolas “formais” terem acesso às aprendizagens da escola da floresta. Algo que vai para além de uma visita de estudo. “São oito sessões, distribuídas ao longo de dois meses, o tempo mínimo para trabalhar o que é importante”, explica Magda Ferro. “Não é só a consciência ambiental: é a saúde, o desenvolvimento motor, as competências socioemocionais.”
É preciso mudar a linguagem da educação ambiental, diz Vera Malhão, para educação para a sustentabilidade. “Porque a sustentabilidade sou eu, o ambiente comigo, e eu com todos, não é?”, diz Vera Malhão. “Só protegemos aquilo de que gostamos.”
Para Magda Ferro, estamos “numa fase de reconhecimento de algo muito simples: a natureza é a melhor sala de aula”. Há um movimento que cresce, também entre professores, defende. “A escola dita formal também está a pensar sobre si própria. Não podem só pensar em atingir metas curriculares”, diz. “E isso já faz parte de documentos estratégicos. Há resistências, claro, mas têm a ver com desconhecimento”, acredita.
Um dia de aulas ao ar livre
Para incentivar a aprendizagem ao ar livre, na natureza, o Movimento Bloom dinamiza desde 2018 em Portugal o Dia de Aulas ao Ar Livre. Uma campanha que surgiu em 2012, em Londres, e que ganhou escala global. No próximo dia 3 de Novembro, assinala-se em Portugal mais um dia de aulas ao ar livre, e para já contam com 285 escolas inscritas, abrangendo mais de 34 mil alunos.
“Os professores relatam em termos percentuais muito significativos o aumento da capacidade de resolver problemas, de trabalhar em equipa, das capacidades motoras. É palpável, não é retórica”, explica Magda Ferro. A campanha é apoiada pela Direcção-Geral de Educação e pela Associação Nacional de Professores. “É o reconhecimento de que este é um caminho informal muito importante.”
Ana Galvão, que integra o Movimento de Aprendizagem ao Ar livre, que junta profissionais de educação, especialistas em desenvolvimento na infância e famílias, vai mais longe: “É importante regularmos estas escolas, para que se cumpram as regras de segurança, pedagógicas, e de qualidade.” Na Escola Lá Fora, têm crianças em lista de espera. Mas o objectivo será chegar a famílias com menores rendimentos. É nesse sentido que esperam em breve poderem constituir como uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) e terem mensalidades ajustadas aos rendimentos dos pais.
Para Magda Ferro, é importante deixar a semente em todas as escolas, em todos os professores. No Movimento Bloom facultam ferramentas que podem ser usadas em qualquer contexto fora de aula, nem que seja num recreio. Mas esse espaço, na grande maioria revestido a cimento, também precisa de uma revolução.
“(As crianças) estão sempre dentro da sala. Quando vão para o recreio, aquela energia toda explode. Se quebrarmos isso, e começarmos a sair para o recreio também para o Estudo do Meio, para ler um livro, para jogos matemáticos, seja o que for, essa explosão e essa ‘falta de controlo’ deixa de existir’, acredita Vera Malhão. “A autonomia pedagógica nas escolas vem desde 2014, mas a legislação para os edifícios é 1996. Ou seja, não acompanhou”, explica.
Antes de fundar a Escola Lá Fora, Ana Galvão e Ana Passos e Sousa, tiveram justamente num recreio um dos desafios mais difíceis das suas vidas profissionais. Foram as promotoras de retirar o piso que cobria o recreio da creche onde trabalhavam, e substituí-lo por terra. As brincadeiras passaram a ser muito mais variadas e até os conflitos entre crianças diminuíram. Mas o processo de adaptação dos pais foi mais difícil.
“Acusaram-nos de pôr em causa a dignidade da criança. Foi preciso muita confiança de que estávamos a fazer a coisa certa.” Depois veio-se a constatar os benefícios. “A natureza traz-nos uma motivação para a aprendizagem inata”, remata.