“As escolas ainda estão desalinhadas. Continuam a ensinar a ciência do século XIX”
Sustentabilidade é uma palavra omnipresente nos discursos, mas ainda ausente da formação e da prática. É preciso um ensino mais interdisciplinar, defende o secretário-geral do Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável.
O capitalismo cresceu à custa do planeta Terra, do ambiente, da natureza e das pessoas, e agora resiste em curvar-se à evidência de que tem de mudar de rumo. Pede-se um sistema sustentável, mas ninguém ainda percebeu como o fazer, admite João Wengorovius Meneses, secretário-geral do Business Council for Sustainable Development (BCSD) Portugal – algo que se pode traduzir em português como Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável.
As empresas tentam, as escolas reinventam, mas nem as primeiras nem as segundas estão a fazer o suficiente para que a mudança aconteça. Continua-se a dar demasiada importância ao curto prazo, constata Meneses, que representa um conselho com 140 empresas.
“Há autores a propor reformas ao capitalismo que passam por reformas do ensino”, aponta nesta entrevista em que é convidado a olhar de fora para dentro das escolas. É preciso reformar a formação, que serviria as empresas do século XX mas não as de hoje. E é preciso acordar os cérebros que não conseguem processar a urgência inerente à sustentabilidade.
As escolas estão a ensinar sustentabilidade, sobretudo nos cursos mais caros e de topo, como os MBA?
Temos hoje em dia uma ciência económica que é do século XIX, e temos escolas a formar pessoas para instituições do século XX. As pessoas ainda estão desfasadas no conhecimento que adquirem para gerirem organizações do século XXI. As empresas chegaram agora à maioridade. Antes, tínhamos pouco sentido de responsabilidade pelo espaço à volta, pelas pessoas e pelo planeta. As empresas são um fenómeno recente. Nos últimos 100 anos, aprenderam a ser produtivas, a serem eficientes, a gerar riqueza, a gerar emprego. Só agora são chamadas a gerar valor que não seja só valor económico. As escolas ainda estão desalinhadas. Continuam a ensinar com base numa ciência do século XIX. Em 200 anos, de 1820 até 2020, o PIB per capita aumentou 14 vezes apesar de a população ter crescido sete vezes. Como diz Yuval Noah Harari, temo-nos comportado como serial killers do planeta. Houve uma grande aceleração de bem-estar material, de produção, consumo, mas acompanhada de enormes níveis de extracção e de desperdício. Se as empresas quiserem ser competitivas neste século… [não pode ser] o business as usual do século XX.
Precisamos de repensar o ensino nas escolas de negócios?
Claro. Há autores a propor reformas ao capitalismo que passam por reformas do ensino. Vou dar um exemplo: a ciência económica diz-nos que vamos caminhar para um preço de equilíbrio e um ponto óptimo de geração de valor económico e que, até lá, poderemos ter algumas externalidades negativas. Essas externalidades tipicamente são de natureza social e ambiental. No futuro, que não se sabe qual é, chegaremos a um ponto óptimo – e não se sabe quando –, mas pelo meio o planeta e as pessoas podem sofrer com isso. O que se diz hoje, nas teorias mais emergentes, é que as pessoas e o planeta não podem ser externalidades. Têm de ser consideradas centralidades nessa teoria da ciência económica, não podemos varrê-los para debaixo do tapete. Por outro lado, temos o sistema económico muito apontado para o curto prazo. Os políticos têm de ganhar as próximas eleições, os gestores querem ganhar um bónus anual, os mercados financeiros valorizam as performances do trimestre, do semestre... É tudo muito imediatista (...). Se temos o bónus concentrado no curto prazo, não pode correr bem.
Como é que a sustentabilidade deve entrar no currículo?
Antes de aparecer a economia, apareceu a ecologia. A economia é uma ciência recente que, no fundo, vem teorizar sobre os fluxos económico-financeiros, desligada do tema das pessoas e desligada do tema do ambiente. Ora, há uma série de condicionantes, desde logo ambientais, que põem em causa esta teoria asséptica de fluxos financeiros. A limitação dos recursos é uma questão decisiva. A natureza está em tudo, da casa aos carros, aos gadgets electrónicos, à nossa roupa. Ainda não encontrámos materiais de substituição no planeta Terra para esses ingredientes. Não é só uma questão ética ou filosófica ou de qualidade de vida, é uma questão económica premente. Não é possível produzir mais smartphones a partir do momento em que acabe, por exemplo, o lítio para as baterias.
Toca na própria sobrevivência das empresas.
Exactamente. E do mundo, no limite.
Nessa perspectiva, o que recomendaria às escolas de negócios para encaixar o tema da sustentabilidade?
A sustentabilidade tem de ser sentida. A mudança tem de ser mais estrutural, temos de estar mais próximos da natureza e dos outros, temos de sentir mais empatia por aquilo que nos rodeia, seja o planeta, sejam as pessoas. Estamos muito longe de sentir a natureza no seu estado bruto. As escolas de negócios preocupam-se sobretudo com a dimensão analítica e há uma dimensão também pessoal.
Deixar a sustentabilidade para uma dimensão vivencial não é arriscar a desvalorização de um tema prioritário?
Por essa razão temos depois de ter a dimensão da acção. Estamos muito no nível intermédio dos planos e das estratégias. Temos de ir ao nível do propósito e da imaginação colectiva e sentimento colectivo, que é algo mais subjectivo, mas depois temos de ir às acções concretas. Por exemplo, hoje conseguimos valorar os ecossistemas. Há 150 anos não havia um padrão de contabilização do desempenho económico-financeiro. Agora há e conseguimos analisar as contas de qualquer empresa em qualquer parte do mundo, porque há um padrão universal. A incorporação dos riscos, dependências e impacto ambiental e social das empresas – o relato de informação não-financeira – está agora a dar os primeiros passos. Vamos ter de ser capazes de ter estas métricas (e estamos perto de ter uma métrica universal).
Pelo que diz, o tema climático parece ainda mal coberto pelas escolas e parece que algumas empresas até estão à frente do ensino.
As empresas são chamadas a ter uma responsabilidade maior, mais abrangente. E as que não o fizerem perderão a sua licença para operar e a sua competitividade, por via do cliente, do trabalhador, do regulador e do investidor. Quando estudei marketing, na altura era uma preocupação recente, e o que se dizia era que o marketing tinha de ser um estado de espírito, não era um departamento nem uma estratégia. É exactamente o mesmo com a sustentabilidade: tem de ser um estado de espírito, tem de estar impregnada em tudo.
Harvard tinha um ranking do melhor CEO do mundo e Jeff Bezos ganhava sempre. Há meia dúzia de anos, chamaram uma consultora global sobre sustentabilidade para rever os indicadores porque perceberam que era um tema-chave. Bezos saltou de primeiro para 30.º lugar. O CEO que não percebe este tema conduz a sua empresa a olhar pelo retrovisor.
Diz que a sustentabilidade terá de impregnar tudo. Mas como se chega lá? Mudando currículos, professores?
Com interdisciplinaridade. As escolas de gestão têm resistido muito a colaborações transversais. Estes temas apelam à integração de biólogos, de engenheiros, designers, sociólogos... Os primórdios da gestão fizeram-se com engenheiros. Nos anos 1950 apareceram aqui as ciências sociais e marketing, que disseram “Espera lá, não basta ser eficiente, é preciso servir os desejos dos clientes”. Há aqui uma figura externa, uma figura subjectiva, evolutiva, que temos de acompanhar. E então chegaram as ciências humanas nas empresas: entraram os sociólogos e os psicólogos, porque começou a haver mais competição depois da Segunda Guerra Mundial. De que serve ser eficiente se não sirvo os desejos dos meus clientes? Começámos a ter elementos de subjectividade nas empresas, nomeadamente de ciências humanas para compreender as pessoas que compram. Hoje precisamos de incorporar outras valências. Tem de se analisar o retorno económico dos projectos, mas também os riscos e dependências ambientais. Não é só clima, nem é só emissões. Como é que eu faço isso? Os gestores de crédito nos bancos e os analistas de risco não têm estas competências. Nós temos de ser capazes de ter empresas mais pluridisciplinares e escolas de gestão, por consequência, mais pluridisciplinares nas abordagens. As competências de que se precisa para gerir empresas do futuro são diferentes das competências de que se precisava para gerir empresas do século XX.
Como olha para este fenómeno de haver tantos cursos e até MBA focados na sustentabilidade?
A oferta começa a ser muito variada e o próprio mercado escolherá as melhores. Não podemos analisar fluxos financeiros desligados das condicionantes da limitação de recursos naturais, não é possível! Fruto das alterações climáticas, Portugal tem dois sectores em sério risco até 2050: o agro-alimentar e o turismo. Não é possível gerir de forma competente uma empresa ou um sistema económico se se ignorarem estas condicionantes. Não se trata só de ter uma adesão poética, afectiva, sentimental e de ter um projecto de humanidade mais equilibrado. É, de facto, preciso ter e conhecer estudos de caso. Nós vemos isso: mesmo os mercados financeiros pagam um prémio às empresas mais sustentáveis.
Hoje nenhuma empresa pode dizer que está fora da transformação digital se quiser ser competitiva. Com a sustentabilidade está a passar-se exactamente o mesmo: nenhuma empresa no futuro vai poder dizer “Eu estou fora desse tipo de preocupações”, porque vai perder a sua licença para operar e porque vai haver uma erosão enorme da sua competitividade.
Reconhece que essa transição está a ser lenta?
Reconheço. Tendemos a concentrar-nos no imediato e, no imediato, estamos sempre reféns de múltiplas crises. Neste momento, temos uma guerra na Europa, uma inflação, a subida de taxas de juro, temos crises políticas em várias regiões do planeta... O que é normal para a condição humana é preocupar-se com o imediato e não com governar para o longo prazo. A sustentabilidade é uma lógica de longo prazo: é governar para 2030, para 2050. Tendemos a concentrar-nos naquilo que parece ser urgente e não naquilo que é importante. Temos muita dificuldade em acreditar na urgência inerente às alterações climáticas porque o nosso cérebro não consegue processar a urgência da acção. E não processa porque não sente a diferença.