Um aluno plantou um “oásis” de biodiversidade dentro da escola. Agora, não resta quase nada

Guilherme Ramos, 17 anos, passou os últimos dois anos a recuperar um espaço verde na sua escola secundária.

No início do ano lectivo, encontrou-o praticamente destruído após uma limpeza intensiva do espaço, sem aviso prévio.

Guilherme, para quem o activismo é “pôr as mãos na terra”, fala de uma geração desligada da natureza, em que a escola podia ser o elo de ligação.

Guilherme Ramos passou os últimos dois anos a recuperar um espaço verde na sua escola secundária. No início do ano lectivo, encontrou-o destruído. O jovem de 17 anos, para quem o activismo é “pôr as mãos na terra”, fala de uma geração desligada da natureza, em que a escola podia ser o elo de ligação.

Há dois anos, quando Guilherme Ramos entrou pela primeira vez na Escola Secundária D. Pedro V, em Lisboa, lançou-se sozinho numa ronda pelos espaços verdes da escola. Estavam todos “estragados”, recorda, referindo-se à pobreza em termos de vegetação. Mas nas traseiras do pavilhão desportivo, Guilherme encontrou algo diferente.

“Era um espaço ao abandono, mas não tinha tantas Oxalis pes-caprae”, explica, referindo-se às plantas invasoras conhecidas como azedas ou trevos amarelos. “Levantei uma tábua e vi uma quantidade absurda de espécies. O que é que se passa neste sítio?”, pensou. “Nem pensar que vou deixar isto perder-se!” Nos dois anos que se seguiram, Guilherme foi um aluno com uma missão: restaurar a fauna e a flora de um espaço triangular de 455m2 e transformá-lo numa sala de aula ao ar livre.

Este ano, Guilherme regressou à escola uma semana antes do arranque das aulas do curso profissional de Gestão e Programação de Sistemas Informáticos. “Estava à espera de encontrar mais animais, uma data de plantas em flor”, diz. Em vez disso, encontrou um corte intensivo do que ali havia.

Fotografia tirada por Guilherme Ramos um ano após o início de intervenção no espaço. DR
Imagem do início de Setembro, registada pelo aluno, mostra o corte do que ali havia. O Público não conseguiu chegar à falar com a direcção da escola. DR
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Fotografia tirada por Guilherme Ramos um ano após o início de intervenção no espaço. DR

“Um trabalho de dois anos que já não existe. Havia abrigos destruídos, tudo o que havia no lago encontrava-se morto”, explica. “Até plantas protegidas por lei foram cortadas”, diz, referindo-se à gilbardeira, um arbusto relativamente comum nas florestas mas cuja colheita na natureza está proibida na Europa, pela Directiva Habitats.

“Vi plantas que deveriam estar em flor este ano cortadas no chão, com uma semana ou duas de corte. Cebola albarrã, pulicária, suspiros-roxos.” Este seria o ano em que o projecto de conservação de biodiversidade autóctone se iria consolidar, abrindo a visitas a outras escolas e organizações. Guilherme tentou perceber o que aconteceu junto da direcção da escola, mas sem sucesso.

Até à data de publicação desta reportagem, o PÚBLICO não conseguiu estabelecer qualquer contacto com o estabelecimento de ensino. O pai de Guilherme endereçou uma carta ao director, à Direcção-Geral de Educação e ao Departamento de Ambiente da Câmara Municipal de Lisboa. Até hoje, não sabem quem limpou a área daquela forma, nem porquê. “O espaço estava organizado, algumas árvores estavam crescidas. Alguém chegou com uma roçadora e…”, conta o pai, Eduardo Ramos.

Guilherme mostra a área do espaço verde que recuperou e identificou mais de 360 espécies de animais Imagem e edição: Vera Moutinho

Guilherme mostra-nos dezenas de fotografias do espaço antes deste mês de Setembro: nelas é visível vegetação diversa, organizada por áreas de plantação, um pequeno caminho de pedras. Existia até um pequeno lago, abastecido por um reservatório de 200 litros, colocado estrategicamente junto a uma zona com sombreamento, para o tornar mais resistente a períodos de grande calor. No total, Guilherme terá investido do seu bolso cerca de 200 euros na recuperação daquele espaço verde: “Em vez de gastar dinheiro num videojogo, gastei num tanque de água, na estrutura para fazer um lago, em pedras.”

Poderia o que havia ali ter simplesmente secado durante o mês de Agosto? “Não faz sentido o espaço estar naquele estado porque secou. Onde estão as plantas secas?”, questiona Guilherme. “Pelas fotografias percebe-se que houve intervenção humana”, acrescenta David Avelar, biólogo e investigador em adaptação e alterações climáticas na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). Para o pai, Eduardo, cabia à escola a responsabilidade pela preservação daquele espaço. “Podiam mostrar às crianças — não num quadro, não num slide —, olhem, reparem, tem este cheiro, é importante para este insecto sobreviver. Nós dependemos directamente da natureza, mas os jovens não sabem isso”, lamenta.

Um activismo de “pôr as mãos na terra"

Ao longo dos dois anos de projecto, Guilherme conseguiu mobilizar professores e colegas, sobretudo na fase inicial de limpeza do espaço. “Desenterrou-se um Alcatel (telemóvel), pedaços de uma sanita, pacotes de embalagens. Estava ‘intragável’”, recorda.

Apresentou à direcção da escola um plano detalhado de recuperação do espaço. “Não foram muito cooperativos, mas nunca disseram que não”, conta. “Arranjei colegas, sensibilizei-os, fiz trinta por uma linha. Cheguei a dar aulas com uma semente, por exemplo.” Marcou-o o dia em que percebeu, por exemplo, que metade da turma não sabia o que era um pinhão. “Levei uma caixa de pinhões, descasquei um e um colega perguntou: ‘Mas isso come-se?’”

A “limpeza” do espaço deixou a comunidade escolar surpreendida. “Fiquei extremamente desagradado porque os jovens empenharam-se”, refere Luís Pires, professor de Português e director de turma de Guilherme no ano lectivo passado. Chegou a falar com o director de curso da área deles para saber mais, mas não obteve resposta. “Projectos como este vão ao encontro do que o próprio Ministério da Educação quer. No sentido de os miúdos não só aprenderem de forma desgarrada, mas apoiá-los de forma concreta”, explica Luís Pires.

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Guilherme Ramos, 17 anos, acredita que reconectar os jovens com a natureza representará um "ponto de viragem" na sustentabilidade do planeta Vera Moutinho/PÚBLICO

Conseguir aguçar a curiosidade dos colegas de escola para a importância de plantas e insectos em todo o ecossistema foi uma das grandes vitórias de Guilherme. Por norma, vê jovens da sua idade com os olhos presos aos ecrãs dos telemóveis, desligados da natureza e do ambiente à sua volta. “Não sou uma pessoa social”, confessa, “costumo ficar no meu cantinho a fazer”.

O activismo que conhece é o de “pôr as mãos na terra” e passar conhecimento. “Tentar fazer com que as pessoas se liguem mais na natureza é o que tem de se fazer para o ponto de viragem.”

Foi isso que aconteceu com Mirissa da Silva, 17 anos, colega de turma de Guilherme. “Aprendi a dar valor à natureza. Eu não fazia isso”, conta. “Não havia outro lugar onde eu tivesse esse incentivo, foi neste projecto da escola”, confessa. “Fiquei triste porque o Guilherme lutou muito para construir aquele espaço. Quando saíamos mais cedo, ele ia para lá sozinho, dava o máximo para ter o projecto feito.”

“Foram dois anos de muito trabalho”, insiste o pai de Guilherme. “Ele chegou a casa encharcado, queimado do sol, sujo. Desde muito jovem que vê o filho dar uma atenção desmedida ao mundo natural que o rodeia: “Os olhos dele são incríveis, vêem coisas que eu não vejo, só com uma lupa.” Mas nem sempre isso foi positivo. Noutras escolas, foi muitas vezes o “esquisito, o estranho”, que chegou a ser “achincalhado” por ter explicado que o que havia nas pedras da praia eram algas e não musgo.

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Guilherme Ramos tem passado os dias a recuperar o que foi destruído. Na imagem, plantas que transporta para colocar no projecto a que se dedicou nos últimos dois anos Vera Moutinho/PÚBLICO

Na Escola Secundária D. Pedro V, Guilherme começava a sentir-se valorizado. O antigo director de turma destaca o espírito de liderança do aluno, que dava “palestras sobre animais, plantas e ecossistemas”. Na acta de uma reunião final de conselho de turma ficou até registado um louvor à turma e a Guilherme pelo empenho no projecto de conservação.

“Há alunos que acabam por ter um insucesso escolar porque não se sentem bem. Parece que só existe Português, Física, ou Matemática e se calhar até podíamos ter excelentes biólogos. A escola não puxa vocações”, nota Eduardo Ramos. “Aquilo de que muita gente às vezes tem medo eu transformo em curiosidade. Não sei o que é, vamos tentar descobrir”, diz Guilherme.

Um “visionário não entendido”

A par da recuperação do espaço físico, Guilherme criou a ACEV — Associação de Conservação dos Espaços Verdes, que, apesar de ainda não estar constituída formalmente, já tem trabalho feito: 181 espécies de flora autóctone listadas no projecto de conservação e mais de 360 espécies de animais identificadas e partilhadas na plataforma iNaturalist, que reúne registos de uma comunidade de mais de um milhão de cientistas e naturalistas.

O gato que Guilherme e colegas baptizaram de Pantufa também tinha um papel na recuperação e sustentabilidade do espaço verde: "Este e outros dois gatos que frequentam o projecto com regularidade são de extrema importância para o terreno, havendo dezenas de espécies que dependem directa e indirectamente das suas fezes" DR
Fotografia tirada em Setembro DR
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O gato que Guilherme e colegas baptizaram de Pantufa também tinha um papel na recuperação e sustentabilidade do espaço verde: "Este e outros dois gatos que frequentam o projecto com regularidade são de extrema importância para o terreno, havendo dezenas de espécies que dependem directa e indirectamente das suas fezes" DR

No ano passado identificou mesmo uma nova espécie de insecto para a fauna portuguesa, a Nemausus sordidatus. O feito ficou registado num artigo científico que escreveu em parceria com o curador de entomologia do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto.

“Este ano, possivelmente, conseguiríamos chegar às 600 espécies”, diz Guilherme, desolado com o cenário que agora tem à frente. A frustração levou-o a detalhar os estragos num minucioso relatório, que na altura enviou à prima Sandra Antunes, bióloga especializada em ecologia. “Estação 1.1, Secção C: Vegetação totalmente cortada, cobertura vegetal raspada; Estação 1.2: Destruição de flora rara, com ecologia muito específica e dos locais adjacentes.”

“Precisamos desesperadamente destes pequenos espaços verdes”, defende Sandra Antunes. “Para o nosso bem-estar e por causa das alterações climáticas. Dependemos da biodiversidade, os insectos proporcionam serviços do ecossistema valiosos, que se tivéssemos de os pagar… Como a polinização”, explica. “Na China já há pessoas com pincéis a polinizar plantas. Não é isto que queremos.”

“Aquela escola destruiu um local de aprendizagem”, diz-nos o biólogo David Avelar. “É um contributo gratuito e voluntário de um jovem que não está a ser valorizado. Há escolas que pagam para ter este tipo de projectos.”

David Avelar foi um dos fundadores da Horta da Faculdade de Ciências e coordena o projecto FCULresta, uma minifloresta urbana que substituiu um relvado no espaço da faculdade. É ele quem nos fala de um movimento educativo que tem ganhado força na Europa, o Inquiry-Based Science Education, que privilegia a experiência directa como base da aprendizagem da ciência.

E a procura é muita, afirma David Avelar, que recebe na FCUL vários pedidos de apoio a projectos de promoção de espaços verdes e biodiversidade em contexto escolar. “Não conseguimos dar resposta a todos.” No projecto de Guilherme, diz o investigador, “foi o aluno que o fez de forma autónoma, sem saber que o estava a fazer de uma forma tão avançada. O Guilherme é um visionário não entendido”.

“A escola é um local de aprendizagem, ponto”, assevera Guilherme. “Mas é para aprender sobre tudo.” Fala em “luto” quando se refere ao que perdeu. “Foi um bocado de mim que se foi, ficou um buraco que não sei como se enche.” No dicionário não encontra palavras que descrevam o que sente.

No dia em que viu o espaço destruído telefonou à mãe, mas não conseguiu falar. As últimas semanas têm sido passadas a “recuperar um projecto de recuperação”, a fazer novas plantações, a reconstruir o pequeno lago que servia plantas e animais, a controlar plantas invasoras que entretanto apareceram.

Quando as aulas começaram, os colegas apressaram-se a tirar fotografias com o telemóvel. “Não queriam acreditar”, conta Guilherme. “Ao início era uma zona destruída, ficou uma zona agradável para se estar, bonito, com diversidade de plantas e insectos. Estava a ficar bué giro”, diz Mirissa. “Dava orgulho saber que fiz parte disso.”