Deixar o carro em casa? “Precisamos de muitos e melhores transportes para ter uma alternativa real”

A propósito do Dia Europeu sem Carros, o Azul pediu aos leitores para nos dizerem o que teria de acontecer nas suas vidas para poderem deixar o carro em casa. Recebemos mais de 400 respostas.

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Trânsito ao fim da tarde na Segunda Circular, em Lisboa Rui Gaudêncio

Esta quinta-feira, assinala-se o Dia Europeu sem Carros, em que a União Europeia reforça o alerta para a necessidade de reduzir o tráfego automóvel dentro das cidades, de modo a proteger o planeta e aumentar a qualidade de vida da população. No início desta semana, o PÚBLICO pediu aos seus leitores para nos dizerem aquilo que teria de acontecer (na sua vida pessoal, no trabalho, na região onde vivem...) para poderem deixar o carro em casa. Até à data de publicação deste artigo, tínhamos recebido 408 respostas, quer via Instagram (de onde vieram 386 das 408 respostas), quer via Facebook, quer via e-mail.

Muitos leitores referem que não conseguem abdicar do automóvel sobretudo porque a oferta dos transportes públicos não é satisfatória. As queixas mais comuns incluem os tempos de espera elevados e a escassez de rotas, mas também foram elencados outros motivos. “O trajecto que faço em dez minutos de carro demora 90 se eu for de transportes”, escreve, por exemplo, a leitora Catarina Martins Ferreira.

Ainda sobre os transportes, alguns leitores confessam que, se pudessem suportar financeiramente o uso diário do carro, andariam sempre de automóvel, porque o “mau funcionamento” dos transportes é um factor de stress diário. “Sem soluções, as pessoas recorrem ao carro”, sintetiza a leitora Teresa Alves.

A falta de ciclovias nas zonas pelas quais os leitores habitualmente passam no seu dia-a-dia também foi apontada como um factor que dificulta o acto de deixar o carro em casa. Para outros, o problema reside ou no facto de viverem muito longe do trabalho, ou então no facto de não poderem optar pelo teletrabalho, o que torna o automóvel essencial.

Alguns leitores disseram que só poderiam pensar em abdicar do carro se as cidades estivessem “pensadas para peões e não para carros”. Outros comentaram simplesmente que “nada” faria com que deixassem o automóvel, pois este é, “para muitos no Portugal actual fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, o único meio de transporte”.

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Também fomos contactados por alguns leitores com sentido de humor. Estes disseram-nos que só se tivessem “bicicletas voadoras”, ou então se ficassem “sem carta por causa do álcool”, é que o seu carro deixaria de circular. Recebemos ainda um trotinete é vida.

Abaixo encontram-se alguns dos depoimentos recebidos. Pedimos desculpa por não conseguirmos dar espaço neste artigo a todos os leitores, mas o número de respostas que obtivemos foi muito grande. Muito obrigado a todos pelo contributo (os textos foram ligeiramente editados para efeitos de clareza e concisão).

Carmo Cabral Gouveia (Porto)

Hoje em dia, consigo não ir de carro para o trabalho todos os dias (ao contrário do que vinha a acontecer nos últimos 12 anos) porque consegui mudar de emprego, e para uma instituição perto de casa.

Muitas das situações [de deixar ou não o carro em casa] não são uma opção pessoal. Não foi por mérito meu [que passei a deixar o automóvel parado], teve também que ver com algum factor sorte — misturado com muita vontade de mudança.

E por que é que antes eu não conseguia ir de transportes para Leça da Palmeira, vinda do Porto? Não é longe... Mas não existia um transporte rápido e frequente. Como na maior parte das situações.

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Autocarro da STCP, no Porto Tiago Lopes

Tenho muitas colegas que vêm de Gaia trabalhar para o Porto. O transporte público é inviável, pois precisam de apanhar primeiro um autocarro que apenas passa uma vez ou duas por dia e depois um metro que está sempre absolutamente cheio.

Precisamos de muitos e melhores transportes públicos para ter uma alternativa real. Rápidos e directos. Como na Europa do Norte. E autocarros escolares para as crianças, mesmo nas grandes cidades. Obviamente, [a mobilidade] trata-se de um problema complexo, e ouvir a população é um bom início.

​Teresa Alves (Albufeira)

Vivo no Algarve, a 30 quilómetros do trabalho. Os transportes públicos aqui são uma miséria. Além de termos poucas opções, eles nunca cumprem os horários. Neste momento, ando de transportes públicos devido ao aumento dos combustíveis.

Esta situação tem sido penalizadora porque levanto-me todos os dias às 6h30 para poder sair a tempo de apanhar o autocarro que sai às 8h de Albufeira e chega todos os dias depois das 9h10 a Portimão (entro no trabalho às 9h). O tempo previsto de viagem é 50 minutos, mas leva sempre mais de uma hora.

Na volta, o autocarro deveria sair às 17h45 e nunca sai antes das 18h. Num bom dia, conseguimos chegar a Albufeira às 19h, mas já cheguei depois das 20h (Verão no Algarve e trajecto pela N125).

O comboio também não tem os melhores horários e as estações estão a quilómetros da residência e do trabalho.

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Estação ferroviária de Santa Apolónia, em Lisboa Miguel Manso

Continuaria a usar o carro se o combustível estivesse mais barato, porque a minha qualidade de vida neste momento é zero. O tempo que perco em transportes faz com que tenha pouco tempo para mim, o que é muito penalizador.

Sem soluções, as pessoas recorrem ao carro.

Ricardo Grilo (Carcavelos)

Por que razão haveria de deixar o objecto que mais liberdade me proporciona?

Não vejo qualquer sentido na proposta. Uso transportes públicos e ando de bicicleta, mas nada disto me permite ir até ao topo da serra da Estrela, ou viver a natureza no meio do Alentejo, ou observar e fotografar aves no cabo de São Vicente, ou fazer mil outras actividades em que uso o meu automóvel (híbrido), que as sacrossantas bicicletas e os transportes públicos não substituem.

Deixei de utilizar o comboio para alguns destinos, sobretudo por causa dos encerramentos de linhas (e em muitos casos por causa da questionável substituição das linhas por ciclovias, que custam praticamente o mesmo que os caminhos-de-ferro, mas apenas servem minorias).

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Ciclovia da Avenida Almirante Reis, em Lisboa Nuno Ferreira Santos

Diria que estas campanhas dos “dias sem carros” devem ser feitas não na lógica de combater o automóvel, mas na lógica de apresentar soluções que o complementem de modo eficaz e tentador para os diversos tipos de utilização (na Alemanha, além do programa de reabertura de linhas encerradas, criaram um passe mensal ferroviário que custa nove euros; eis um exemplo proactivo de como se pode convencer as pessoas a usar o comboio).

Mas na nossa realidade já nem falo do passe barato. É tudo bem mais complicado. Basta ver que nem um parque de estacionamento dissuasor existe na maioria das estações da linha de Cascais, e que esta tem agora menos 100 comboios por dia (!) que nos anos 1990. E foram construídas, paralelas à linha, não uma, mas duas auto-estradas (A5 e A16), que praticamente obrigam ao uso do automóvel.

De facto, a ideia do “dia sem carros” em Portugal parece apenas um mero pró-forma no país que gasta 1,5 mil milhões de euros anuais em compensações às concessionárias das auto-estradas — e que parece não ter verbas para reabrir as linhas que encerrou ou repor os comboios diários que circulavam na linha de Cascais (volto a referir esta por ser uma das principais do país e porque conheço bem a sua realidade).​

1,5 mil milhões anuais para estradas e depois dizem querer evitar os carros? Estranho, no mínimo.

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Ponte do Freixo, no Porto Nelson Garrido

​Carla Coelho (Setúbal)

Infelizmente, tenho de usar transportes públicos, que são quase inexistentes na área onde vivo. Os que existem falham horários ou suprimem carreiras (ou então os transportes andam sobrelotados e fico muitas vezes apeada).

Preciso de apanhar três transportes para chegar ao trabalho. Tenho de ir de Setúbal para Lisboa; demoro duas horas e meia a chegar ao trabalho e a maior parte do tempo é tempo perdido dentro do mesmo concelho de Setúbal. Tudo somado, perco no mínimo cinco horas horríveis em transportes!

Quem me dera poder deixar de lado 500 euros por mês para poder ir todos os dias na viatura própria para o trabalho. Demoraria no máximo 40 minutos e não teria stress, nem daria cabo da minha saúde mental. Infelizmente, não posso gastar tanto dinheiro no carro.

As incompetentes câmaras municipais e juntas de freguesia, a incompetente Carris, a incompetente Transportes Metropolitanos de Lisboa, estas são as responsáveis por eu dizer “quem me dera usar carro próprio!”

Joana Miguel (Lisboa)

Partilho a minha mais recente aventura na estação [ferroviária] da Portela de Sintra. Queria ir até à estação do Oriente [Lisboa] e achei que não valia a pena ir de carro porque o comboio seria bom. Enganei-me.

Estivemos (eu e mais de 20 pessoas) uma hora para comprar um cartão e um bilhete. Bilheteira fechada; zero funcionários disponíveis; uma máquina que não vendia cartões e só aceitava moedas; outra máquina que vendia cartões, mas não aceitava nenhum método de pagamento. Os funcionários do comércio da estação dizem que tem estado assim há bastante tempo. A funcionalidade de pedir ajuda nem funcionava nessas máquinas.

A CP desculpa-se, dizendo que o problema é o vandalismo, o mau uso, que somos todos obrigados a ter cartões extra, que dá para comprar o zapping num multibanco (que a estação não tem), que não se pode entrar no comboio sem bilhete. A funcionária com quem falei por telefone dizia que se podia embarcar sem bilhete. Se fosse multada, de quem seria a culpa?

Que vontade temos de andar de transportes em Portugal?

Uma viagem de Tomar a Évora demora três horas de autocarro. Tinha amigos do Minho a viver em Abrantes. Demoravam oito horas para ir a casa visitar a família.

As soluções passam por olhar para outras cidades europeias. Planear algo com cabeça. Boas rotas (usar mais o conceito de rota expresso) fariam a diferença. E, se for mesmo necessário, privatizar. Criar uma empresa que esteja só focada na rede portuguesa de transportes. Ouvir os municípios. Olhar para os transportes públicos como coisa para todos (porque, enquanto se olhar para eles só como coisa para pobre, não haverá investimento). E aí o exemplo tem de vir de cima. Apostar no eléctrico!

António Valmadeiros

O maior factor necessário para poder deixar o carro em casa — e por exemplo utilizar uma bicicleta, num concelho paupérrimo em transportes públicos — seria a existência de infra-estruturas dedicadas, que permitissem o uso seguro da bicicleta e que, idealmente, surgissem complementadas por uma rede de transportes públicos (que permitissem a entrada de bicicletas) para as partes mais longas do trajecto diário. Como acontece nos Países Baixos ou em Londres.

Helena Martins

O preço do combustível já me fez deixar o carro em casa.