Diz-nos a experiência que, no início da vindima, os enólogos vêem o filme em tons de cinza. A meio, alegram-se porque têm umas coisas boas na adega e, no final das fermentações, é só foguetes porque, afinal de contas, o ano será de grande nível. Um clássico.
Acontece que, este ano, o cenário é diferente. Tão diferente que nem dá para disfarçar. Nalgumas regiões a desgraça está à vista de quem estaciona o carro à beira de uma vinha. Cachos secos, bagos não secos mas pequenos, cachos com uvas que ainda não amadureceram mas com bagos já pobres, perdas consideráveis de produção (se calhar bem superiores às anunciadas estatisticamente) e por aí fora. Pior ainda, as análises laboratoriais revelam desequilíbrios entre os três componentes determinantes para a vida do vinho: açúcar (que está baixo), acidez total (evaporou-se a um ritmo impressionante) e pH, que está a disparar para níveis não vistos há muito. Se olharmos para as tabelas que registam o estado de alguns mostos à entrada das adegas ficamos com a sensação de que estamos perante uma vindima em modo de electrocardiograma.
Um viticultor que descarregava uvas à entrada de uma adega no Douro confessou-nos que nunca tinha visto nada igual: “Vim trazer este Tinto Cão para um rosé. As uvas até estão com bom aspecto, mas, em matéria de doçura, acidez e peso, é uma desgraça”. No Alentejo, Duarte de Deus, da Torre de Palma, relata-nos que, embora as perdas no Alvarinho tenham sido de 20 por cento, no Arinto – casta determinante para os brancos de uma região quente –, “as quebras serão de 50 por cento”.
Mais abaixo, em Reguengos, olhamos para algumas vinhas e vemos cachos bonitos, luzidios e sem podridão, mas dizem-nos que têm de fazer uma paragem na vindima “para ver se o grau aumenta”. Descendo, na Vidigueira, um enólogo com muita experiência garante-nos que “as perdas este ano serão à volta dos 30 por cento”, sendo que, mais preocupante, é a perda de ácido málico. “Por regra, o ácido málico está entre os 2 e os 3 gramas por litro de vinho. Este ano está abaixo de 1 grama, de maneira não me venham cá falar em ano épico”.
Virando o carro para Oeste encontramos o senhor Apolónia em Vila de Frades, curvado sobre uma cana a fazer de bordão por causa dos males da coluna, mas feliz a contemplar uma vinha que plantou há 42 anos (na região é uma vinha velhíssima). Meio minuto depois dos bons dias a conversa corre como se nos conhecêssemos dos bancos da escola. A vinha com dois hectares não só é velha como nos parece uma Babel de castas. Umas conhecemos, outras, nem fazemos a mínima ideia do que se trata. Nem nós nem o senhor Apolónia. Algumas (90 por cento são brancas e 10 por cento tintas) até nos parecem uva de mesa. E segue-se o seguinte diálogo.
Terroir: Que castas tem aqui nestes dois hectares?
Apolónia: Sei lá. Umas dezenas.
Terroir: Onde foi buscar o material para fazer a vinha?
Apolónia: Por aqui, ao redor, nas vinhas velhas, onde é que havia de ser?
Terroir: Num viveirista, não?
Apolónia: Essa agora! Nada disso. Isso plantavam-se os bravos e depois vinha o Xico Escuro – que já está debaixo do chão – e enxertava com as varas que a agente arranjava por aqui.
Terroir: Mas com tanta variedade?
Apolónia: Pois, porque era isso que dava fama ao vinho daqui. E com uvas tintas pelo meio, por causa do petroleiro [vinho clarete, que resulta de uma fermentação maioritária de uvas brancas mas com uma percentagem de uvas tintas]. Quanto mais castas, melhor é o vinho. Não é como agora que é só uma ou duas na garrafa.
Terroir: Mas a Vidigueira é conhecida pelos vinhos brancos.
Apolónia: Isso foi depois, porque, dantes, era mesmo o petroleiro que valia.
Terroir: Como é que estão as uvas este ano?
Apolónia: Há umas semanas não estavam grande coisa, mas veio uma brandura e mudou tudo.
Terroir: Brandura?! É o tempo mais fresco?
Apolónia: Não é só o tempo mais fresco. É, pela manhã, um orvalho que cai nas folhas e que vem de além [aponta para Oeste]. E isso faz a diferença porque as plantas não bebem água só pelas raízes, bebem também pelas folhas. Tá a perceber?
Terroir: E foi essa brandura que mudou as coisas?
Apolónia: Pode não acreditar, mas é como lhe digo: num dia a vinha estava triste, no outro é esses cachos que está a ver: são menos do que no ano passado, mas estão bonitos.
Na Bairrada, outro relato inusitado, vindo de José Carvalheira, um dos mais reputados enólogos do país: “O que para mim é inédito não é o registo da perda de acidez das uvas nesta fase a poucos dias da vindima, que isso é natural. Inédito mesmo é o facto de, há várias semanas, as uvas ainda estarem verdes – verdes, imagine – e já terem perdido a sua estrutura ácida, em resultado das sucessivas vagas de calor que tivemos. Isso eu nunca tinha visto”.
E é justamente esta questão do ‘nunca se ter visto’ que aflige e condiciona o raciocínio de António Magalhães, o chefe de viticultura do grupo Fladgate Partnership (Taylors, Fonseca, Croft e Krohn). Homem que raciocina a partir do estudo meticuloso de ciclos longos, confessava-nos, numa conversa rápida por telefone: “Falta-me um ano de referência para avaliar o que está a acontecer. Até ao momento não encontrei um ano climático como este”.
E aqui o ano climático não se centra apenas nas vagas de calor sucessivas ou de um conjunto de noites tropicais prolongadas no Douro, mas no histórico que vem de vários meses. “Se a Primavera foi pouco chuvosa, o Inverno já tinha sido incrivelmente seco e as vagas de calor – que fazem parte – foram historicamente muito precoces, factores que obrigaram as plantas a adoptar comportamentos de sobrevivência. E é por isso que digo que estamos perante um ano que passou das marcas”, realça António Magalhães.
Ainda assim, o viticultor que tem uma veia pessimista faz questão de sublinhar que, para o universo do vinho do Porto, e tendo em conta a História, “é precipitado tecer cenários sobre o que vai ser a colheita de 2022”. “É preciso não nos esquecermos dos registos de outros anos no século passado em que as vinhas secaram no Douro – a região até teve de ser abastecida com água do exterior –, mas que depois deram, nesses mesmos anos, vinhos do Porto que ainda hoje fazem correr muita tinta”.
Num registo bem mais optimista temos Jaime Quendera, que é, na Península de Setúbal, o enólogo que mais vinho faz na região. Só na Casa Ermelinda de Freitas e na Cooperativa Agrícola de Santo Isidro de Pegões cuida de 18 milhões de litros por ano (no total, com outras consultorias o seu valor chega ao 25 milhões de litros).
Jaime não esconde que há castas que foram muito afectadas pelo escaldão, em particular a Moscatel e até a Chardonnay, mas depois leva-nos a diferentes vinhas para mostrar como estão perfeitos os cachos de Fernão Pires e de Castelão. E quando o provocamos dizendo que uma coisa é o aspecto da uva e outra é o resultado das avaliações das colheitas de bagos (amostragem e avaliação de mosto de uma determinada parcela para se decidir qual será o dia perfeito para a vindima), o enólogo mostra-nos os registos laboratoriais dos últimos dias. De facto, quando, para o Fernão Pires, vemos registos de 12,8 por cento de álcool provável, 5,85 gramas de acidez total e um pH de 3,37 ou, para um Moscatel Roxo fornecido por esse iconoclasta que é o Octávio Machado, coisas como 17 por cento de álcool, 6,45 gramas de acidez total e 3,62 de pH, não se pode dizer que as coisas estejam assim tão mal.
O enólogo que aos 52 anos já leva 28 vindimas não está muito ralado porque, “apesar das perdas, a heterogeneidade da região, a existência de água no subsolo e a presença de muita vinha velha são factores que permitem gerir os danos.”
Na região mais a Norte do país, António Luís Cerdeira, da Quinta do Soalheiro, só está preocupado com um eventual risco de chuvas em Setembro, “caso contrário os nossos relatórios apontam para mostos equilibrados. Esta semana, a média de 130 mil litros de Alvarinho que apanhamos foi de 12,4 % de álcool, acidez total de 8,4 gramas por litro e pH de 3.2”.
Se os factores climáticos afectam todos os produtores por igual, a Quinta de Soalheiro desenvolveu há muitos anos uma cultura organizacional que permite, via clube de produtores, controlar de perto o trabalho dos fornecedores de uvas. “Nós não pagamos por níveis de álcool, nós pagamos por qualidade dos mostos que pretendemos, o que é diferente e implica um cuidado redobrado nas vinhas. E este ano vamos subir 10 por cento o valor pago pelas uvas. Vamos pagar Alvarinho a 1,10 euros o quilo”.
Por outro lado, continua o enólogo: “A nossa estratégia de plantar vinhas maior altitude está absolutamente correcta face às alterações climáticas. Não apenas por termos vinhos mais frescos dessas zonas mais altas, mas pelo facto de, com as uvas do vale – com mais álcool e estrutura –, podermos equilibrar os lotes na adega”.
Independentemente da narrativa de cada enólogo – dos pessimistas e daqueles para quem está sempre tudo bem quando isso não é verdade –, só daqui a algum tempo se perceberá a colheita de 2022 em toda a sua dimensão. Uma coisa é certa, se as vindimas fossem iguais de ano para ano, tudo isto seria uma pasmaceira.