Os dias turbulentos da aldeia do Penedo
O Penedo é uma aldeia encaixada na serra de Sintra, em pleno parque natural, com vista para o belo mar da Praia das Maçãs. Nas suas ruas, se o Homem nada fizer, por esta altura do ano crescem papoilas, alfinetes, dentes-de-leão, cardos, espigas e outras gramíneas, e na base dos seus muros de pedra vêem-se as roxas viúvas (raríssimas em qualquer outro lugar) e bocas-de-lobo, fetos e musgos. Não custa nada apanhar um lindo ramalhete de cores vivas, daqueles que se vendem na cidade. Um verdadeiro regalo para os olhos. E também para as abelhas, abelhões, borboletas e outros insectos polinizadores. Aproveitando a boleia dos riachos que descem a serra, e cruzam esta aldeia, encontram-se inúmeros pequenos animais. Quem nunca viu rãs, sapos, tritões, salamandras ou uma cobra-rateira está convidado a vir até aqui. Mas há quem trate toda esta variedade vegetal por igual, pelo nome de “ervas”, e não goste delas. E, portanto, escolhendo teimosamente o momento do seu máximo esplendor, roçadeiras mecânicas cortavam tudo rente ao chão, estragando a festa.
Alguns de nós, mais sensíveis, queixavam-se. No entanto, resignávamo-nos a este compromisso, chamando-o de maldade, e não sabendo ainda a sorte que tínhamos. Como as “ervas” insistem em crescer, e há quem insista em tropeçar nelas, este ano, neste mês de Julho, decidiram pulverizar as ruas com herbicida. Tiveram o cuidado de explicar que é um produto “biológico”. Na verdade, não se limitaram ao traçado tortuoso das ruas da aldeia, mas já lá vamos.
Uma carrinha cheia deste produto “biológico” e homens protegidos dos pés à cabeça, com luvas, botas e viseiras, chegaram logo cedo de manhã. A acompanhar este cortejo, o presidente da Junta de Freguesia de Colares, certamente para assinalar a solenidade oficial do evento. Começaram a aspergir o produto nas ruas, à soleira das portas. Durou dois dias, sob uma onda de calor inédita e sufocante.
A generalidade da população não estava sequer devidamente informada. Os poucos folhetos minúsculos afixados em postes de electricidade não eram suficientes. Houve quem se afastasse a correr à frente dos homens de fatos especiais, ou, mais grave, quem saísse de casa para reclamar e tenha sido agredido, primeiro verbalmente, depois fisicamente (há um processo de queixa instaurado na polícia). Uma família, a mãe grávida e com uma pequena criança em casa, viu a nuvem tóxica entrar casa adentro. A justificação é sempre a mesma: “Estamos a trabalhar, a cumprir ordens.” Com as devidas distâncias da comparação meramente ilustrativa, foi a célebre resposta de Eichmann em Nuremberga.
Não se limitaram, porém, ao perímetro do casario. Trilharam a serra e entraram em estradas com demasiado poucas casas para justificar esta “limpeza”. Subiram até à Quinta da Urca, onde o arvoredo denso marca o limiar da floresta.
Esta decisão tem rostos e nomes perfeitamente identificáveis. Falámos com alguns. Perguntámos, por exemplo, à técnica da Câmara de Sintra, responsável pela aplicação do produto no Penedo, se este era seguro e inofensivo, como o rótulo “biológico” parece indicar. Num encolher de ombros telefónico diz: “É o menos perigoso de que dispomos, mas não é inócuo”, ou seja, “é melhor evitar qualquer exposição ou contacto imediato directo com ele”.
Efectivamente, lendo a ficha técnica do produto, ficamos devidamente informados da elevada toxicidade de substâncias como o ácido pelargónico e da longa lista de perigos e efeitos nocivos (os que se conhecem, porque os outros estão ainda por estudar) para o meio ambiente e para a saúde humana.
Trata-se, por exemplo, de um composto químico com efeitos devastadores permanentes para a vida aquática. A legislação em vigor proíbe a aplicação deste tipo de produtos, por exemplo, junto de hospitais, escolas, lares, jardins e parques urbanos, e apenas recomenda o seu uso quando “comprovadamente não se encontram disponíveis meios e técnicas de controlo alternativas, nomeadamente mecânicas e biológicas”, reservando-a apenas para “situações de perigo fitossanitário que constitua um risco para a agricultura, floresta ou ambientes naturais”. Quando necessária, a aplicação deverá ser cuidadosa, claramente publicitada, fiscalizada e “efectuada preferencialmente nos períodos do dia de menor afluência de pessoas e animais, de modo a evitar o contacto não intencional com as áreas tratadas”.
A mesma técnica responde ao porquê de se recorrer a produtos químicos sabendo os efeitos terríveis que têm para este lugar tão especial. Outro encolher de ombros: “Recebemos algumas queixas por causa das ‘ervas’. Há pessoas que não estão habituadas ao meio rural. É esta a vontade da população.” Não é. É apenas a vontade de alguns. Na sua maioria, aldeões que vivem aqui, mas sempre tiveram o sonho da cidade, que partilham um inconfessado sentimento atávico, um complexo injustificado de inferioridade, de quem desde sempre olhou para o campo como fonte de trabalhos e dificuldades. Quem verdadeiramente aprecia a riqueza deste património fica impávido com o que estamos a deixar para as gerações seguintes. Com esta dificuldade que o Homem tem de aprender a viver com a beleza e a variedade que o circunda, tentando, ao invés, submeter tudo aos seus caprichos do momento. Não vemos, não queremos ver, preferimos não ver. De quem é a culpa desta cegueira? Dos que se obstinam em viver segundo modelos errados do passado, dos que procuram retirar benefícios políticos e económicos imediatos, ou dos que não colocam o seu conhecimento ao serviço do bem de todos?
Escusado será dizer que no dia seguinte, sob o olhar incrédulo dos turistas, não havia uma única cor à vista. Tudo preto. As abelhas voavam sem direcção. Quando nada restar, diremos aos nossos filhos que a culpa é do Sol e das alterações climáticas.