Marinheiros imigrantes, o lado invisível das pescas portuguesas
Ao envelhecimento da frota e das tripulações portugueses, soma- se uma dramática falta de mão de obra. Indonésios e guineenses têm evitado que os barcos fiquem em terra, mas as condições não são as melhores. Estará a pesca sustentável anunciada pelo Governo a olhar para quem apanha o peixe?
Ao meio da manhã, no Porto de Peniche, são poucos os barcos que descarregaram peixe. Mas Juan Arrazaba não tem mãos a medir. O peruano de 29 anos orienta os colegas indonésios que içam caixas de peixe do porão do barco para cima da muralha. “Faço de tudo um pouco”, diz, “virar redes, desembarcar o peixe, ajudo na casa das máquinas, faço de contramestre também”. Chegou a Portugal em 2019, está em Peniche há dois meses.
“Trabalhei nos barcos espanhóis do espadarte no Pacífico Sul, ganhei muita experiência. Comecei aos 19 anos, já são dez anos no mar.” Foi lá, em alto-mar, num barco de Vigo, que conheceu a mulher, Bárbara, uma bióloga marinha portuguesa. Casaram o ano passado. Ela, bolseira de investigação na área dos microplásticos da Faculdade de Ciências e Tecnologia, no Monte da Caparica, esteve lá, “na Conferência dos Oceanos, em Lisboa”.
São raros nas embarcações portuguesas os trabalhadores da mesma idade ou mais jovens do que Juan. A média de idades é de 50 anos, um valor acima da média europeia. Olhando para as últimas Estatísticas da Pesca, em 2021, vemos que 55,9% dos pescadores matriculados tinham entre 35 e 54 anos. Apenas 22,7% tinham menos de 34 anos, quase tantos como os pescadores acima dos 55 anos.
Há pouco tempo, o mestre do barco onde Juan trabalha perguntou se podia recrutar mais marinheiros como ele, do Peru. “Não tenho problema nenhum, toda a família é de pescadores”, respondeu Juan. Dentro de dias, chegam dois irmãos e um primo.
“A vida do mar não é fácil”, assegura Maria Sameiro, 49 anos. A armadora de Vila do Conde lava e orienta a pescada que o seu barco apanhou esta madrugada. Nasceu numa família de pescadores, já perdeu um sobrinho para o mar. “Acabando esta geração, vai tudo acabar. Não vão conseguir aguentar o sector.”
Com ela trabalham sete indonésios e dois portugueses, um deles é o mestre da embarcação. Há dez anos teve a primeira experiência com trabalhadores estrangeiros, ucranianos. Há três recrutou os primeiros indonésios, já que os jovens portugueses, esses, “não querem andar ao mar”.
Uma “fonte” de mão-de-obra vinda Indonésia
Nem Maria Sameiro nem o marido, também armador, quiseram que os três filhos seguissem a vida piscatória. O filho mais velho, de 27 anos, licenciou-se recentemente em Medicina, os outros dois também prosseguem o ensino superior. Sem descendência para deixar ao mar, Maria não prevê investir na renovação da sua embarcação. E, por agora, os trabalhadores indonésios asseguram a tripulação.
“São muito educados, bons trabalhadores, bem-mandados”, diz. Três jovens indonésios descarregam peixe de uma carrinha. Não falam português, inglês quase nada. Chegaram há um ano, com contrato de 18 meses. Maria interrompe para lançar um “não arrastem, não arrastem”, aos jovens.
Têm praticamente a idade do seu filho mais velho. É ao armador que cabe o pagamento das viagens (que rondam os 500 euros) e visto de cada trabalhador (cerca de 150 euros). Maria Sameiro garante que esse valor não é descontado ao salário. “Até as roupas, os oleados, as botas, nós damos.” Quando estão no mar, dormem no barco. Em terra, os sete indonésios que emprega vivem numa garagem. “Têm uma garagem grande, as caminhas deles em beliche, roupeiro e casa de banho com chuveiro. No exterior têm a cozinha e outra casa de banho com máquina de lavar roupa”, descreve.
“Encontrámos uma fonte na Indonésia”, diz Manuel Marques. Os últimos quatro anos foram de aprendizagem para a Associação de Armadores de Pesca do Norte (AAPN), com muito “Google tradutor”. Entre os associados empregam cerca de 300 indonésios, mas a Norte haverá cerca de 600, afirma. Manuel é contactado diariamente por agentes na Indonésia que querem enviar jovens trabalhadores, e o número só deverá aumentar. Os armadores ferecem ordenado mínimo, alojamento, alimentação, subsídio de férias. “Daqui a quatro anos estaremos com o dobro de trabalhadores estrangeiros” nas pescas, defende o presidente da AAPN.
Para Juan Arrazaba, é sobretudo a bordo que as condições de trabalho e habitabilidade deixam a desejar. “Há barcos em que a lotação é de oito marinheiros. Mas levam mais. E as condições para dormir não…”, conta, baixando a cabeça, “não tem condições nenhumas”.
Viu barcos onde “pingava óleo em cima do pessoal”, que dormia amontoado debaixo de um tecto de madeira sem qualquer tipo de isolamento. “Não sei como passavam nas vistorias”, afirma, perplexo.
Hoje, trabalha num “bom barquinho”, o Persistente, que se destaca de todos os outros que se acercam da muralha no Porto de Peniche. A operar há menos de um mês, representou um investimento de 750 mil euros, sem recurso a apoios comunitários ou subsídios. Também Juan é um trabalhador imigrante diferente: ao contrário dos restantes, ganha conforme o que o barco trouxer, como os portugueses. “Se pesca for boa, posso ganhar 1800 ou 2000 euros.”
Lá dentro, há um quarto para o mestre e mais dois quartos com beliches na parte de baixo da embarcação. No piso intermédio há uma cozinha, separada da zona de refeições e da casa de banho, que permite também deixar todo o vestuário e calçado de trabalho fora dessas zonas. Há soalho de madeira flutuante, uma televisão, sistema de detecção de incêndio.
Um luxo, e uma excepção, admite Jerónimo Rato, presidente da CAPA – Cooperativa dos Armadores de Pesca Artesanal de Peniche. Na maioria dos barcos “é tudo ao molho e fé em Deus”. Mas diz ser errado colocar a pressão nos armadores. Pagam as multas, mas a realidade não muda. “A pressão tem de ser no Estado”, defende.
99% da frota “não cumpre”
Os problemas estão identificados: envelhecimento da frota e das tripulações, a que se soma uma dramática falta de mão-de-obra. A “vida dura do mar” é feita de sazonalidade e de condições de trabalho que se deterioram com as próprias embarcações.
“Precisamos de modernizar a frota, até para cumprir as convenções europeias e a lei do trabalho”, assegura Jerónimo Rato. “Noventa e nove por cento da frota não cumpre.” Esse seria, acredita, o primeiro passo para atrair jovens para o sector pesqueiro. “A maior parte da frota tem mais de 20 anos, não tem condições de habitabilidade, nem de trabalho, nem de higiene.”
O plano para a próxima década traçado pela Estratégia Nacional para o Mar (ENM2030) tem como ambição “reconverter a pesca nacional num dos sectores mais sustentáveis” do país. Algo que os pescadores não vêem no horizonte.
“Se querem pesca sustentável têm de diminuir as embarcações obsoletas”, defende Manuel Marques. Lança críticas à economia azul da biotecnologia e das energias renováveis que deixa de fora as pescas. Precisam de apoios urgentes, diz, para reestruturar a frota, nomeadamente com motores energeticamente mais eficientes. “O futuro da pesca também é o futuro económico do país.”
Mais apoios para novos barcos e estágios profissionais
Apesar de registar menos pescadores e menos capturas, 2021 revelou-se um ano com mais exportações e uma balança comercial mais equilibrada nas pescas portuguesas, com um valor transaccionado em lota de 268,8 milhões de euros, mais 27% do que o ano anterior.
Por isso, Teresa Coelho, secretária de Estado das Pescas, está “optimista quanto à perspectiva económica do sector”, sem perder de vista, garante, a sustentabilidade dos recursos. Até porque, explica nas respostas enviadas por escrito ao PÚBLICO, mais de 80% das embarcações são costeiras, até dez metros, com uma actividade menos consumidora de recursos energéticos em viagens de menor duração.
Reconhece, no entanto, que a sustentabilidade dos recursos também tem de ser laboral e, para isso, são precisas “melhores condições de trabalho” e melhores salários. Um passo nesse sentido será cumprir a meta aprovada pelo Governo na ENM2030 de renovar 25% da frota activa nacional até 2030. Um valor que fica aquém do reclamado pelas associações do sector, que falam num abate de 50% da frota.
Para atrair mão-de-obra jovem, a secretária de Estado promete incentivar o empreendedorismo, aumentando os apoios para jovens que se queiram lançar ao mar, algo que tem sido motivo de críticas. O Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos (FEAMPA) atribui verbas para apoiar jovens pescadores com menos de 40 anos que registem um navio na frota de pesca da União Europeia pela primeira vez, mas Teresa Coelho reconhece que o incentivo “não é suficientemente encorajador”. O apoio para a primeira aquisição de um navio vai aumentar, garante a secretaria de Estado, para 40% do custo de aquisição e com a possibilidade de pagar estágios profissionais a bordo.
O mundo “invisível” de quem trabalha no mar
Renovar a geração de pescadores, marinheiros e armadores passa também, acredita Jerónimo Rato, por combater o preconceito associado à actividade. “Quem vem parar à pesca é quem não teve hipótese de outro tipo de vida” ou tem uma ligação familiar forte. Para “tapar o buraco”, diz Manuel Marques, só mesmo com estrangeiros. Através da CAPA, Jerónimo “mandou vir” nos últimos três anos 100 guineenses e 60 indonésios. Mas entre os 150 associados da cooperativa dos armadores em Peniche, apenas uma dezena consegue recorrer a esta mão-de-obra. “São os que têm capacidade financeira ou com uma produção que permite assumir as responsabilidades”, explica Jerónimo Rato. Ordenados, habitação e alimentação, a que se soma o custo da viagem e o visto. “A maior parte da frota não consegue, o custo ronda mensalmente 1300 a 1500 euros.”
Em todo o país, o presidente da CAPA acredita que haja cerca de 1000 trabalhadores imigrantes no sector. À semelhança do sector agrícola, é difícil chegar a números exactos sobre o total de trabalhadores imigrantes actualmente no activo na pesca portuguesa.
Quando perguntamos a Timóteo Macedo, da associação Solidariedade Imigrante, se tem recebido pedido de apoio por parte de imigrantes nas pescas, explica que os contactos são esporádicos. “O mundo do mar é um mundo à parte”, diz. “São mais invisíveis, a quantidade de pessoas também é menor. De vez em quando chegam pessoas com os problemas do costume, a documentação, pagamento de salários”, mas muito residual, reconhece.
Também Catarina Oliveira, directora científica do Observatório das Migrações, afirma que se conhece pouca a realidade da mão-de-obra imigrante nas embarcações nacionais. No último relatório Indicadores de Integração de Imigrantes, de 2021, que liderou, encontramos o número de trabalhadores estrangeiros por conta de outrem no grupo profissional GP6, que inclui agricultura, pescas e floresta: 8195, num total de cerca de 210 mil trabalhadores.
Mas a informação, disponibilizada ao Observatório das Migrações pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP) do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, não permite perceber quantos, desses 8195 trabalhadores estrangeiros, estão no sector das pescas.
Catarina Oliveira admite ainda que os números oficiais podem estar longe de fazer um retrato fiel. Há trabalhadores contemplados noutras categorias, outros nem estão registados. As características de trabalho sazonal, com contratos inferiores a um ano, deixam muitos fora do radar desta estatística. Já os trabalhadores que forem alocados via empresas de trabalho temporário estão registados como trabalhadores não qualificados. Empresas pequenas, com menos de dez trabalhadores, não são obrigadas por lei a comunicar os trabalhadores.
O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) registou 661.600 estrangeiros no final de 2020, mais 71.252 do que em 2019. De acordo com o relatório do Observatório das Migrações, ainda que o sector agrícola, pescas e floresta esteja a crescer, a maioria (31%) está listada no grupo profissional “Trabalhadores não qualificados”.
Falta “estimar os marinheiros"
No dia em que visitamos o Porto de Peniche, um pescador reformado, embarcado como observador, sentiu-se mal e caiu ao mar. A bordo seguiam mais dois homens na mesma situação. Jerónimo Rato descreve como os restantes tripulantes tentaram resgatar o colega de imediato, mas o homem acabaria por morrer já em terra. “Ninguém quer saber, mas depois o armador vai ter de vender tudo e viver debaixo da ponte para pagar indemnização à família.”
Se não fossem os reformados, garante Augusto Gomes, mais de metade dos barcos estavam parados. O armador que vive do mar há 45 anos recorda os tempos em que trabalhava dois ou três dias sem ir à cama. “Isto nem se pode dizer”, lança. Também ele não quis para os filhos a dureza da pesca, também ele emprega indonésios. “E estou à espera de mais um.”
A situação desprotegida dos trabalhadores reformados é reconhecida pela secretária de Estado das Pescas, que afirma que é algo “ocasional”, e que a experiência desses homens permite “transmitir conhecimentos”. É nessa janela de oportunidade que embarcam também muitos imigrantes, trabalhando com estatuto de observador. “É aí que muitas empresas se aproveitam e não pagam Segurança Social, não fazem as coisas direitas, e muito pessoal vai-se embora”, revela o peruano Juan Arrazaba.
Para embarcar como marinheiros, os estrangeiros são obrigados a completar o curso de Formação Combinada para Marítimos Estrangeiros, que inclui Segurança Básica e Língua Portuguesa. O número de estrangeiros que passaram pelo Centro de Formação Profissional das Pescas e do Mar (FOR-MAR) tem vindo a aumentar, mas está longe de abranger o universo de trabalhadores imigrantes que hoje se calcula que trabalhem nas embarcações portuguesas. Apesar disso, o ano de 2021 estabeleceu um recorde: de 51 formandos em 2017 passou para 314. A grande maioria dos formandos passou pelo pólo de Matosinhos (147), seguido pela Nazaré (53) e Peniche (36). Os trabalhadores indonésios lideram a lista de nacionalidades representadas, com 227 formandos.
Quando começaram a receber os primeiros imigrantes, recorda Manuel Marques, alguns armadores quiseram “fazer deles escravos”. Garante que hoje são uma minoria e que AAPN os retira imediatamente de uma embarcação perante uma situação de exploração.
“Há barcos como já vi, em Sesimbra por exemplo, que é só trabalho”, relata Juan Arrazaba. “O barco vai para o mar é só trabalho, o barco vem para terra é trabalhar em terra, é só trabalhar, não dão descanso ao pessoal.”
“E depois admiram-se que o pessoal não queira trabalhar. E o pessoal é muito bom para trabalhar. Ninguém gosta que o tratem mal, de ser explorado.” Muitos marinheiros estrangeiros vão-se embora ao fim de alguns meses, regressam ao país de origem ou procuram trabalho noutros países europeus.
Com mais imigrantes a chegar todos os dias, Manuel Marques reuniu-se há poucos dias com a Câmara Municipal de Vila do Conde para tentar garantir alojamento em casas camarárias, pagas pelos armadores. “Se não lhes damos condições, daqui a pouco nem indonésios temos.”
“Falta estimar os marinheiros”, lamenta Juan. “Mas não é só aqui. Em todas as partes do mundo, por sermos estrangeiros, acham que temos de trabalhar mais. Mas não é assim. Trabalhamos de acordo com a maneira como somos tratados.”
Juan esteve dois anos a trabalhar em Sesimbra embarcado como não marítimo. Só recentemente recebeu resposta da Direcção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM) para fazer o exame que lhe deu equivalência à sua carta de marinheiro peruana. Continua, no entanto, à espera de resposta para a equivalência da carta de mestre.
“Se houver um problema no mar, uma fiscalização… Há muitos barcos que ficam encostados porque não têm a lotação completa. A realidade do mar é diferente. O sector da pesca é complicado. É outro mundo.”