Água, vinho e pedra dura
Entre o xisto e o granito, percurso para um fim-de-semana marcado pelo chão que se pisa – nos vinhos, no prato, nas vistas, nos recantos com sabor a descoberta. E nos sítios para dar um mergulho quando o calor aperta –, nos arredores de Penafiel.
Os comentários eram desencorajadores. A avó dizia-lhe que nem que a vinha desse “uma pipa por cepa” o investimento seria amortizado. O avô era mais taxativo: “Nunca vais ter vinho nesta quinta.” Daniel Rocha, que ali cresceu a sonhar ser dono desta encosta maciça de granito, fez ouvidos moucos e seguiu em frente com o seu projecto. O nome parecia destiná-lo a isso.
Daniel esteve para chamar-se Monforte, uma vénia à aldeia transmontana onde nasceu. O pai bem que gostava do nome – lembrava-lhe robustez, carácter, firmeza, tudo bons atributos – mas não foi aceite no registo. A palavra, essa andou sempre a trabalhar na cabeça de Daniel e, quando em 2014 se tornou dono destes 100 hectares de chão rochoso, decidiu usá-lo para baptizar a quinta de onde iria arrancar os seus vinhos. O monte onde assentam hoje as vinhas deu-lhe muita luta a transformar em patamares de solo cultivável. É quase poético que alguém com essa teimosia de vencer a montanha tenha por apelido Rocha.
O desenho das vinhas da Quinta de Monforte obedeceu a um plano bem delineado à partida: produzir vinhos com teor alcoólico, acidez equilibrada e mineralidade, enfim, “vinhos mais frescos e apelativos”, resume o enólogo Francisco Gonçalves. A intervenção humana, profunda na fase de transformação da paisagem, permite agora uma actuação mais minimal – “mas sem sermos puristas”, ressalva Francisco –, com a vinha em modo de produção integrada. “Sou anti-medicamentos, só tomo em último caso”, explica Daniel. “E aqui defendo a mesma postura.” A sustentar os socalcos de vinha estão os blocos de granito que foram levantados deste chão. Observar a quantidade de pedra que foi movida é coisa que impressiona.
O terreiro da casa principal da quinta também foi, em parte, pavimentado com o granito aqui extraído. Daí admira-se a cascata de vinhas que se estende encosta abaixo, com Penafiel à espreita ao fundo. A piscina oferece um excelente ponto de contemplação – e fará a cobiça de qualquer visitante num dia de calor –, porém está limitada ao uso da família, que tomou residência na velha casa que Daniel resgatou de meio século de abandono. A sala de provas fica num anexo contíguo, de olhos na mesma cascata de vinhas.
Sobre a mesa, queijos, charcutaria regional e uma amostra do portefólio da Quinta de Monforte – e da visão que Daniel e Francisco partilham sobre a vocação dos vinhos da região. Ambos convergem na ideia de grandes brancos, gastronómicos e com potencial de guarda, e acerca do futuro da casta tinta vinhão. O entrada de gama Escolha, de loureiro e alvarinho, denota certa reverência ao estilo tradicional, com ligeiro gás para agradar a um público fidelizado à textura com “agulha”, no entanto aponta já à longevidade. O monocasta Loureiro demonstra a vocação para os tais “grandes brancos”. E o vinhão, por seu lado, surge em duas declinações que deixam patente o atrevimento de Daniel e Francisco de fazer diferente com o que têm. Primeiro, um surpreendente rosé, depois um tinto “polido”, ambos demonstrativos do lugar que a casta associada a vinhos rústicos pode ter à mesa – e como embaixadora da região. A fermentar, está ainda o projecto de “domar” a azal e a padeiro de Basto. É caso para repensar o sentido de uma velha expressão: Deste chão que, contra todos os vaticínios, deu uvas, só se podem esperar mais boas surpresas.
Uma cidade levantada
Caso o queijo e os enchidos não cheguem como substância, pode-se mudar de mesa – sem abrir mão do vinho nem da panorâmica. O restaurante Cidade À Vista fica meia dúzia de quilómetros adiante, também debruçado sobre Penafiel (não há vestígio de publicidade enganosa no nome), e a carta de vinhos, um gordo dossier com fichas detalhadas para cada referência, inclui vários rótulos da Quinta de Monforte, para pôr à prova, por exemplo, com bacalhau frito, polvo grelhado ou, por marcação, cabrito assado. Comida de tradição, trabalhada com competência e servida em dose abundante.
Com Penafiel tão perto, seria uma pena não descer a encosta ao seu encontro, mais não seja para o proverbial passeio para esmoer o almoço. O centro histórico é compacto e a isso se presta – e mais ainda se prestaria com uma reorganização do trânsito automóvel. Num percurso sem trajecto rígido, deixa-se o carro junto do santuário do Sameiro, cujo jardim romântico tem boas sombras para aliviar dias de canícula, e desce-se daí até à Rua Alfredo Pereira, de olho atento às marcas da passagem dos grandes da literatura mundial pelo festival Escritaria, com a eventual paragem para o café com um docinho na pastelaria Alvorada, diante da Câmara Municipal e da Igreja da Misericórdia. Num passeio ao acaso, aqui e ali espreitam vistas dos montes em redor, privilégio da situação geográfica da cidade, que se levanta do chão como uma atalaia, numa colina sobranceira aos vales do Sousa e do Cavalum.
Vinhos carimbados pelo solo
Sem tirar os olhos do chão, sobe-se até à Quinta da Aveleda. O seu nome está associado, sobretudo, à produção em larga escala e a sucessos de vendas como Casal Garcia ou Fonte, mas o desvio de 10 minutos desde o centro de Penafiel tem outro motivo. Motivos, aliás. Sigamos a ordem natural das coisas: a visita nunca pode deixar de incluir os magníficos jardins da quinta, que tanto fazem lembrar o País das Maravilhas como as aldeias hobbits do imaginário de Tolkien – e há cestos de piquenique disponíveis para quem quiser tirar máximo partido de toda esta envolvente verde.
Passando da luz para a penumbra, os sentidos são depois tomados por outro perfume. Maria Manuel Ferreira, responsável de relações públicas da Aveleda, abre a porta da Adega Velha, onde estagiam as aguardentes da casa, e o aroma é inebriante, mesmo para quem não morra de amores por destilados. “É a parte dos anjos”, explica. A expressão faz parte do léxico de adega, refere-se à evaporação – que, acrescenta Maria, corresponderá a algo como “oito por cento por ano”. As aguardentes que ali repousam, a mais antiga com 42 anos, têm origem apenas em uvas de vinhão, azal tinto, espadeiro e borraçal – a produção de castas tintas da Aveleda. O que motiva a questão: e não produzem vinhos tintos? Resposta curta e incisiva: “Somos bons a fazer brancos.” Vamos, então, ao que nos traz realmente aqui.
A veia experimental é um dos motivos de interesse dos vinhos da Aveleda. Sobretudo, as gamas Parcelas e Solos, que exploram a forma como o chão deixa o seu “carimbo” no vinho. Na série Parcelas, a cada vindima é escolhida “a parcela de alvarinho e a de loureiro que mais se destacam”, introduz Maria. Das duas edições já lançadas, o figurino manteve-se: Parcela do Roseiral no alvarinho, Parcela do Convento no loureiro. Aguardemos pela colheita de 2020, para perceber se o padrão se repete.
A série Solos tem outro ponto de partida curioso: a mesma casta, o mesmo ano, porém proveniente de solos diferentes. As uvas são de alvarinho, umas criadas em chão de granito, típico da região, outras em xisto, algo menos comum. Enquanto o primeiro resulta mais mineral, fresco e directo, o segundo revela maior elegância, untuosidade e fruta madura. Prová-los lado a lado é toda uma lição sobre a importância do terroir.
Do xisto nasceu uma preciosidade
O xisto sobressai, numa região de granito. E não é só no copo. Seguindo o rasto do vinho, descobre-se, 14 quilómetros a sudoeste da Aveleda, junto à vinha onde nasce o Solos de Xisto, uma aldeia preservada que é uma verdadeira preciosidade. Quintandona não é propriamente um segredo, mas percorrer pela primeira vez as suas ruas de casinhas empedradas tem o gosto de descoberta.
A aldeia nasceu da mesma montanha que a tal vinha. Os habitantes socorreram-se do material que tinham mais à mão: xisto nas paredes, granito nas cantarias, lousa em alguns telhados. Numa primeira passagem, parece quase ali posta de propósito, a fazer de cenário, tal a minúcia de vasos floridos, espigueiros recuperados, roupa nos estendais. Mas Quintandona é mais do que apenas fotogenia. Tem um centro cultural, uma festa anual com comidas e jogos tradicionais (a Festa do Caldo, em Setembro) e duas moradas que importa afixar em qualquer mapa de exploração da região: o winebar Casa da Viúva e o turismo rural Valxisto.
A Casa da Viúva não deixa de saber a achado, num sítio recatado como Quintandona, mas é já um fenómeno de popularidade, construída ao longo dos dez anos que leva ao serviço da descoberta de vinhos – e das comidas que lhes fazem justiça. A meia centena de lugares na esplanada, acrescida de outros tantos (talvez mais) no interior, comprova essa popularidade. Aqui fica, portanto, um aviso amigo: vir ao fim-de-semana sem marcação pode ser um tremendo erro de subestimação.
À mesa, manda o vinho. Há comida, claro, amiga do convívio, muita de comer à mão, mas tudo parece pensado para não fazer frente ao que está no copo. Aqui vem-se, sobretudo, com vontade para descobrir vinhos, inclusive para ter boas surpresas – diz Paulo Sousa, um dos três sócios da Casa da Viúva, “95% dos clientes deixa-nos escolher que vinhos ir inserindo ao longo da refeição”.
Paulo é de Lagares, logo ali ao lado, e lembra-se de Quintandona antes da grande intervenção que a pôs como se vê hoje. “Não havia saneamento, nem chão de paralelos”, recorda. Quando percebeu a amplitude do projecto, decidiu fazer parte. Trabalhava na hotelaria, tinha a paixão pelos vinhos e, um dia, numa viagem a Espanha, a ideia de um wine bar fez “clique”. “Tirando os meus dois sócios, toda a gente dizia que éramos malucos”, conta. Começou com uma casinha pequena, que é hoje o coração do bar, e daí cresceu lentamente: no espaço ocupado e na garrafeira, que hoje lista mais de 450 referências – entre elas 26 da região. “Estamos a pensar em reduzir”, admite. “Focar mais no nicho, nos pequenos produtores.”
A empreitada à mesa pode incluir peixinhos da horta, sardinha braseada em pão frito com puré de pimentos, ovos rotos, uns tenríssimos nuggets de polvo, costeletão de novilho e terminar num denso abade de Priscos, com diferentes vinhos a ditar o compasso. É natural, portanto – aconselhável, até –, não ir longe depois de tudo isto. Caso se queira chamar “casa” a Quintandona por uma noite, é uma agradável caminhada por ruas de pedra até à Casa Valxisto.
Na casa de campo que Ana Oliveira abriu em 2013, adormece-se sob o embalo das rãs, acorda-se com o chilrear dos pássaros por saudação. Nas novas suites que acabaram de estrear, debruçadas sobre a pequena vinha de loureiro e trajadura, o dia amanhece com vários tons de verde.
Na propriedade de 5 hectares, além da tal vinha, cujas uvas são comidas ou feitas sumo, há várias árvores de fruto, horta e um pomar de mirtileiros. Tanto nos pequenos-almoços como nas refeições que servem por encomenda, há sempre qualquer coisa levantada deste chão: o sumo de laranja, a marmelada de mirtilo para barrar nas torradas que acompanham o café, a couve-coração da sopa, a fruta da época para a sobremesa. Essa ligação à terra é uma das razões de ser do Valxisto.
Ana é natural de Carrazeda de Ansiães, mas foi aqui, na terra do marido, que encontrou o seu lugar. “Apaixonei-me logo por este sítio, pela vista, pelo pôr-do-sol”, lembra. Começaram com oito quartos, de decoração elegante que não perde o sentido ao meio rural em redor, a que somaram agora as duas suites, num edifício novo, ambas com varanda e vista desimpedida, salamandra, banheira panorâmica e áreas generosas. A compor o bouquet, um espigueiro recuperado e feito sala de tratamentos de spa, e uma piscina com vista para luminosos finais de tarde.
Água para temperar o caminho
A piscina da Casa Valxisto é um bálsamo para dias de calor. Mas a região tem também a sua conta de sítios para estender a toalha à sombra ou mergulhar em águas temperadas pelo sol. Para oriente, em menos de 30 minutos se chega às margens do Tâmega, quer no Parque Fluvial de Luzim quer no de Boelhe, que não levam o nome de “praia fluvial” por não terem nadador-salvador de serviço. A idêntica distância, no sentido oposto, fica a praia de Melres, 200 metros de areal à beira-Douro, com bons acessos, estacionamento e a vila logo ao lado, com utilidades como cafés, minimercado e marina ali à mão. Na curva do rio a montante, fica a praia da Moreira, menos dotada nas infra-estruturas mas com sombras de sobra.
Quem chegar com vontade de um pouco de aventura pode continuar ao longo da N108 – uma marginal do Douro entre Porto e Régua que, por si só, vale uma viagem – até Rio Mau e, a partir do Parque de Lazer, seguir o trilho da linha de água que dá nome à aldeia. O caminho, entre paredes rochosas, é acompanhado por pegos e pequenas quedas de água fria, dois quilómetros de marcha pelo leito de pés ocasionalmente molhados. À chegada, a “piscina” de Poço Negro serve de recompensa – mais compensadora se se evitar sábados, domingos e feriados.
A N108 guarda uma última paragem neste roteiro, também ela com sabor a recompensa, em Sebolido. À parte da vista sobre o Douro – ainda melhor do cimo da vizinha Serra da Boneca, no miradouro ou no baloiço panorâmico, que parecem ali postos para brilhar no Instagram –, a terra não é particularmente cativante numa passagem de raspão. Reserva, porém, uma bem-vinda surpresa para quem se faz à estrada com vontade de descobrir pérolas escondidas.
Deixa-se a N108 atrás das indicações para o Cais de Cancelos, sempre a descer, por uma viela empedrada que parece ir dar a lado nenhum. A rua termina no Douro, e é aí mesmo que fica o Sirga Wine Bistro, com a sala e a esplanada quase debruçadas sobre a água.
Ambos os espaços são convidativos, marcados pelo uso de madeiras e de ardósia, decoração de gosto apurado e mobiliário pensado para o conforto, para pousar sem ficar de olho no relógio. Tudo isto tem mão de Vasco Carvalho, o proprietário, cuja principal actividade é a produção de mobiliário para hotelaria, na sua empresa sediada em Santo Tirso. No portefólio, tem vários hotéis e restaurantes que são referências, e uma colaboração regular com o designer Paulo Lobo, que também deu a sua opinião sobre o projecto do Sirga. “Isto acaba por ser um showroom da fábrica”, brinca Vasco, com seriedade.
Para um sítio especial, duas cartas especiais: a de vinhos, construída aos poucos por Ricardo Nogueira, um entusiasta do vinho e da região que assume também a frente de sala, e a de cozinha, pratos criativos e sazonais com ponto de partida nos sabores tradicionais e pensados para se pedir vários e colocar ao centro da mesa, em jeito de mesa convivial. Ficam de exemplo o tártaro de novilho com picle caseiro, waffle de especiarias e creme de alho assado, e o salmão curado em fatia de brioche e laranja. A pedido, Rodrigo tratará do casamento vínico.
É fácil que, a dada altura, ganhe força a vontade de ir ficando, a pairar entre o Douro, a mesa e o que vai no copo. Aqui fica, portanto, outra boa notícia: o Sirga faz parte de outro projecto de Vasco Carvalho, o Dourwin, empreendimento de turismo rural que está a recuperar várias casas nesta encosta, já com algumas suites disponíveis. Por vezes, não arredar pé é a melhor parte da viagem.