Na conferência do mar, nada como um hambúrguer
Hora do almoço na Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano, em Lisboa. Estômagos roncam, inclusive o meu. Procuro onde comer. Um sinal na parede indica, com uma seta: “Food court”. Saio do Altice Arena, desço as escadas. Há várias roulottes alinhadas ao sol, que está a pino. Chamam-lhes agora food trucks. Penso nas séries de comida da televisão, as imagens reverberam no meu abdómen vazio. Começo a salivar.
Vou à primeira roulotte. Churros, farturas e recheados. Ou seja, fritos. Não. Talvez para a sobremesa. Passo à seguinte. Bifanas, pregos e cachorros. Ou seja, carne. Hoje não me apetece, afinal estamos na conferência dos oceanos. Digo, oceano, pois é assim que devemos dizer. Podemos dividi-lo em Pacífico, Atlântico, Índico e por aí afora. Mas, no fundo, é como uma banheira. Se metemos o pé num lado, os efeitos sentem-se no outro.
Tento a sorte mais à frente. Sandes de leitão, de presunto, charcutaria diversa. Mais carne processada. Eu sei, também é alimento, precisamos de proteína. Mas, bolas, onde está o peixe?
Passo em revista todas as roulottes. Encontro hambúrgueres em abundância. A única a vender comida vegetariana também a embrulha entre duas fatias de pão redondo. Sinto-me numa ditadura alimentar. Mais à frente há uma variante, steakburger – não é bife, não é hambúrguer, são os dois juntos. Uma festa.
Chego ao fim da minha inspeção ao food court. É oficial: não há nada do mar. Nem sardinhas, nem bacalhau. Nem peixe grelhado, nem peixe cozido. Nem polvo, nem caldeirada. Nem uma amêijoa, nem uma sopinha de peixe.
O motivo poderia ser nobre. No Atlântico Nordeste, onde Portugal pesca, 27% da atividade é insustentável, segundo um relatório divulgado na conferência. Na prática, um em cada quatro peixes que comemos devia estar no mar e não no prato. Mas ainda assim sobram três.
A fome aperta, o sol amolece o cérebro. Tenho de comer. Escolho uma sandes de queijo e presunto. O preço é absurdo, o item é enorme. Preciso das duas mãos para equilibrá-lo. Levo-o à boca, dou uma mordida. O pão cede mas com alguma resistência, parece uma esponja ressequida. Submeto-o ao crivo dos dentes, o pedaço se esfarela e se reagrupa numa bola que imediatamente absorve toda a saliva disponível. O presunto está uma pedra de sal, o queijo é uma pasta incaracterística. O palato cola-se à língua, com aquela argamassa pelo meio. Por um momento, temo que vou sufocar. Até estala quando me liberto e volto a respirar. Tento mais duas mordidas, mas à quarta, minha boca está mais seca do que o deserto do Sara.
Enquanto me debato com a sandes, as discussões prosseguem no Altice Arena. Desde segunda-feira que não se pára de falar em blue food. Parece que a comida azul é uma maravilha, algo de novo que virá do mar para alimentar uma população cada vez maior. Mas afinal o que é? Um colega jornalista da Indonésia anda pelos corredores a perguntar. Ninguém sabe. Certamente não é a sandes que está colada ao meu céu da boca. Nem o steakburger, nem as bifanas, nem os churros, nem os cachorros.
O food court da conferência da ONU é um exemplo bem acabado de como palavras e ações tendem a se afastar. Lá dentro fala-se de como salvar o oceano. Cá fora, não há nenhum exemplo gastronómico de como o fazer.
Desculpem, não posso mais com essa sandes. Vai para o lixo. Espero que não o deitem ao mar.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico