É fundamental não baixar a ambição nos compromissos para o oceano
Na véspera da Conferência das Nações Unidas dedicada ao oceano, co-organizado por Portugal e pelo Quénia em Lisboa, não é demais lembrar que o aquecimento global, o maior flagelo do nosso tempo, foi previsto, anunciado e explicado por oceanógrafos desde, pelo menos, os anos 50. Se antes da era industrial, o oceano era na realidade uma fonte líquida de dióxido de carbono, o facto é que as crescentes concentrações atmosféricas deste gás de estufa, impulsionadas pelas emissões antropogénicas, forçaram o oceano a absorver este gás. Neste processo, o oceano, principal regulador do clima global, perdeu o equilíbrio e enfraqueceu: aqueceu, acidificou, desoxigenou.
É por isso que as acções, as soluções e as reformas que ajudem a mitigar estes processos, ainda que nunca venham a reverter a situação, vão abrandar ou parar o excesso de dióxido de carbono e o calor extra com que o oceano tem estado a lidar. A experiência extrema – referida num artigo do oceanógrafo americano Roger Revelle, publicado em 1957, como a “experiência geofísica em larga escala de um tipo que não poderia ter acontecido no passado nem ser reproduzida no futuro”, que resultou da devolução “à atmosfera e aos oceanos do carbono orgânico concentrado armazenado em rochas sedimentares ao longo de centenas de milhões de anos” – tem de parar!
Na conferência sobre oceano em Lisboa, onde se vai trabalhar, em particular, no âmbito do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 14 da Agenda 2030 das Nações Unidas, as questões da adaptação e da gestão no contexto das consequências das mudanças climáticas atravessará certamente todos os debates e diálogos interactivos. E é importante que assim seja. O papel vital do oceano no cenário do clima só recentemente começou a ter o reconhecimento político e social que lhe é devido. Lembremos que na Conferência do Clima em Paris de 2015 (a COP21), o articulado do acordo foi praticamente silencioso no que diz respeito ao oceano, mas povoado de referências às florestas terrestres. Na COP26, em Glasgow, o papel do oceano foi finalmente erguido e melhor incorporado no articulado da decisão final.
Na minha opinião, para este progresso contribuíram certamente a evidência científica baseada em dados (que alguns políticos de “relevo” se esforçaram por ludibriar criando realidades paralelas associadas a um misto de ignorância e criminalidade política), mas contribuiu também a mobilização da sociedade quando visualizou a poluição do ambiente marinho.
Por ironia, a “crise” dos plásticos e a sua invasão do ambiente marinho teve um efeito colateral benéfico. O facto de muitos deles flutuarem criou um aumento do interesse e apelo à acção imediata por parte da sociedade para a salvaguarda do oceano, por vezes mais emocional do que racional, mas ainda assim uma janela, que se transformou numa oportunidade para denunciar e mobilizar relativamente a outros aspectos mais salientes do stress a que o oceano está a ser sujeito. Sem a atenção dos plásticos, o oceano continuaria mais tempo opaco às prioridades políticas.
A boa governação requer complexidade e atenção redobrada. Hoje não se trata apenas de promover o conhecimento científico e de o transcrever para a decisão política. Em democracia não há decisões políticas sem autorização social. Na conferência de Lisboa os eventos paralelos que envolvem a sociedade são numerosos e, espero, fortemente mobilizadores.
As tarefas pela frente são complexas. O cumprimento dos objectivos e das metas para o sucesso da Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável estão atrasados.
Nos dois últimos anos o cenário geopolítico global sofreu impactos significativos, primeiro com a pandemia que assolou o planeta, e agora com a guerra na Ucrânia, conduzida pelo Governo do Kremlin. Desta guerra emergem urgências humanitárias, energéticas, económicas, alimentares de carácter global que vão perdurar e certamente acentuar retrocessos nos avanços, já de si lentos, nos diálogos diplomáticos para o combate global às mudanças climáticas e pela salvaguarda do oceano saudável e produtivo.
Um dos objectivos da conferência de Lisboa é o de consolidar os compromissos voluntários dos Estados para a boa governação global do oceano baseada nos objectivos e metas do ODS 14.
Infelizmente, após dois anos de atraso devido à pandemia, a guerra na Europa de Leste criou um mundo mais polarizado e o progresso para os compromissos voluntários de consenso alargado mais longe do que sonhámos para a urgência que temos. Há risco de os diálogos interactivos serem marcados por ausências, ou até clivagens e desavenças desacertadas. Neste contexto, é fundamental não baixar a ambição de nações individuais que se querem continuar a comprometer. Se não se encontrar a união que se ambicionava até há apenas uns meses, e provavelmente não a teremos, deixemos o progresso fazer-se por partes, com a sensibilidade adequada, sem fazer rebentar o terreno minado em que as Nações Unidas caminham.
As complexas vertentes e vicissitudes desta guerra estão a trazer à luz da sociedade a rede de acomodações políticas, financeiras e económicas que continuam a vingar sem vergonha e sem penalização no contexto das negociatas no comércio das energias fósseis. Julgo que deste contexto sairá uma sociedade mais informada da necessidade de cortar com estas dependências e investir na independência energética e na aposta nas energias limpas e renováveis.