É um genuíno sentimento de utilidade, diz. O fazer mais, muito mais do que apenas um vinho. Não outro vinho, não mais uma garrafa demasiado próxima, à parte das suas variações e particularidades, a todas as outras dessa região. António Maçanita sente-se vivo, útil, é a desbravar caminho. A recuperar castas da história, a dizer não aos impossíveis.
Foi assim com os vinhos vulcânicos da Azores Wine Company – projecto já sedimentado, onde o caminho passa por manter a qualidade dos vinhos, e melhorar o restaurante e o hotel. É assim no Porto Santo, onde a Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões tem dado (uma nova) vida às castas Listrão e Caracol. Uvas secundarizadas, esquecidas, marginalizadas no mapa vínico do arquipélago, onde as castas que fazem os Madeira, o Sercial, o Boal, o Verdelho, o Terrantez, a Malvasia ou a Tinta Negra continuam a dominar a geografia das ilhas.
É nestes pequenos grandes projectos, insiste Maçanita, que vale o combate. “Chegar aqui e pegar nestas vinhas, e voltar a fazer vinho com elas, como era feito. É quase como repor a história natural”, resume ao Terroir, falando da “sensação de utilidade” por estar a fazer vinho ali, contribuindo para aquela comunidade. “É um gozo especial. Não se tem isto a fazer um vinho numa grande região vinícola”, explica, exemplificando com a subida do preço da uva depois de o projecto ter chegado à ilha dourada. “Começamos por pagar dois euros [por quilo], no ano seguinte subiu para 2,5 euros e agora deverá andar nos três euros. Isto tem impacto positivo na vida das pessoas.”
Depois dos vinhos Listrão dos Profetas e Listrão dos Profetas – Vinho da Corda, ambos colheita de 2020, e do Caracol dos Profetas, no ano seguinte, a Profetas e Villões vai apresentar este ano uma quarta referência: Caracol dos Profetas – Fazendas de Areia 2022. Maçanita não desvenda muito do que será este vinho, apenas que é fruto de vinhas que crescem na areia. “Aqui no Porto Santo [e na ilha da Madeira, também] utilizam este termo, ‘fazenda’, para pequenas parcelas de terra, que neste caso estão mesmo sobre a areia”, diz sem pormenorizar sobre o que será este novo vinho. “Sempre que chegamos a um sítio novo, primeiro vamos aprender e depois vemos como podemos contribuir. Ainda estamos na fase da descoberta.”
As perspectivas são boas, e Maçanita não disfarça o entusiasmo pela forma como os vinhos da Profetas e Villões têm sido acolhidos pela crítica. O Listrão dos Profetas 2020 e o Listrão dos Profetas – Vinho da Corda 2020 receberam em Fevereiro deste ano 94 e 95 pontos Robert Parker da revista norte-americana Wine Advocate, que nunca pontuou um branco português acima desse número. Um mês depois, foi a jornalista e crítica de vinhos Jancis Robinson a premiar os dois brancos do Porto Santo: o Listrão dos Profetas 2020 obteve 17,5 pontos em 20 e o Listrão dos Profetas – Vinho da Corda 2020 mereceu 19. Nunca antes um vinho de mesa madeirense tinha recebido tamanho reconhecimento, num arquipélago em que o panorama dos vinhos é praticamente monopolizado pelos fortificados. A Master of Wine britânica deu ainda 18 pontos a outro Listrão, um Madeira da Blandy's de 1977.
Vinhos que sabem a um sítio diferente
“As pessoas olham para estas pontuações e têm a tentação de pensar que são dadas pelo meu nome, mas não é verdade. Os meus vinhos do Alentejo não tiveram essas pontuações”, nota o enólogo, entusiasmando-se: “É extremamente gratificante e recompensador quando ouvimos um geek de vinhos exclamar: What a f***! Como é que eu nunca bebi isto?!” E tem sido assim, assegura, com estes Profetas, produzidos a partir de vinhas com 80 anos. “Sabem a um sítio diferente. A nada que tenho sido feito antes”.
As produções têm sido pequenas. Do Listrão dos Profetas 2020 foram produzidas 1300 garrafas, vendidas a 49,5 euros (preço recomendado), do Listrão dos Profetas – Vinho da Corda 2020 foram engarrafadas 450 unidades (51,3 euros), que praticamente desapareceram do mercado, e do Caracol dos Profetas 2021 saíram 4000 garrafas (19,5 euros).
Estas dimensões não escondem as dificuldades logísticas e técnicas, e também a desconfiança com que Maçanita e Nuno Faria, sócio deste projecto, encontraram no Porto Santo. “O senhor Cardina, uma pessoa bastante conhecida na ilha, foi quem nos abriu portas, permitindo que utilizássemos as uvas das suas vinhas com mais de 80 anos”, conta o enólogo, acrescentando: “Quando começámos a pagar as uvas, os produtores ficaram como que surpreendidos. Olhavam para nós como uma espécie de malucos”.
Para as vindimas, Maçanita levou equipas do Alentejo e dos Açores para ajudar (filho de pai açoriano e mãe alentejana, o enólogo faz vinhos em quatro regiões, Douro incluído). As uvas foram transportadas de barco para adegas na Madeira, onde se iniciou a fermentação. Estar no Porto Santo, nos Açores, no Alentejo... dá a António Maçanita uma “visão holística” dos problemas, e da forma que cada lugar encontra para os enfrentar. Nos Açores, é o mar, o sal e as tempestades. No Porto Santo é a crónica falta de água. “Chove metade do que [chove] em Évora. Cada uva é uma conquista”, diz, recordando as histórias que foi ouvindo durante a vindima. “As pessoas contavam que quando chovia, mesmo que fosse de madrugada, levantavam-se para ir aproveitar água para as vinhas”, conta o enólogo que tem passado algum tempo nas ilhas Canárias, onde a casta Listrão (Listan Blanco) é bastante popular. “Aprecio muito o perfil dos vinhos de Canárias, e [isso] tem ajudado no Porto Santo.”
A história da Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões – um nome que remete para as alcunhas trocadas pelos habitantes das duas ilhas (vilões para os madeirenses e profetas para os porto-santenses) – já é conhecida. Durante o primeiro confinamento, Nuno Faria, sócio do 100 Maneiras, ficou no Porto Santo, e comentou com o amigo Maçanita o “encantamento” que sentia pelas tradicionais vinhas rasteiras, protegidas do vento por muros de pedra pintada de branco. “Pensamos logo em fazer um vinho ali, e aqui estamos.”