Posição do Governo sobre mineração em mar profundo tarda, mas não pode falhar
Exmo. Sr. primeiro-ministro,
Dr. António Costa,
A mineração em mar profundo (deep seabed mining) é um assunto que preocupa as nossas organizações e muitos dos nossos concidadãos, não só em Portugal como no resto do mundo. A ainda incipiente maturidade comercial e tecnológica desta atividade não dissipa as nossas preocupações com os impactos ambientais gravíssimos que pode vir a ter no nosso oceano, na sua biodiversidade, no seu potencial como sumidouro de carbono e na capacidade de sustentar as atividades económicas tradicionais, agravadas pela insuficiência de conhecimento científico que permita avaliar e mitigar adequadamente estes impactos.
Há um ano, endereçámos-lhe, a si e aos seus colegas de governo, uma carta semelhante a esta pedindo uma clarificação pública sobre a posição do Governo português relativamente à mineração em mar profundo. Não obtivemos qualquer resposta clarificadora e os desenvolvimentos que observámos desde então agravaram as nossas preocupações.
Portugal tem historicamente assumido um papel de liderança na proteção do oceano, dos quais destacamos apenas três momentos charneira na nossa história recente: 1) a Expo98 foi-lhe dedicada e 1998 assinalou também, por influência portuguesa, o Ano Internacional dos Oceanos, tendo sido ainda por iniciativa portuguesa criada a Comissão Mundial Independente dos Oceanos, que produziu o relatório “O Oceano: Nosso Futuro”; 2) o Governo subscreveu o Leader’s Pledge for Nature e é membro fundador do High Level Panel for a Sustainable Ocean Economy (Oceans Panel), que defende uma abordagem precaucionária à mineração em mar profundo; e 3) Portugal irá acolher no próximo mês a 2.ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano.
Em contraste com este papel de liderança, registamos também três momentos recentes que vão precisamente no sentido contrário: 1) a Lei de Bases do Clima, publicada a 31 de dezembro de 2021, que abre a porta à regulamentação “ambiental” da atividade de mineração em mar profundo no seu artigo 46.º, ao invés de adotar uma moratória ou mesmo proibir a atividade; 2) a Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030, que também contempla a mineração em mar profundo; e finalmente 3) o Plano de Recuperação e Resiliência, que inclui, no projeto “Desenvolvimento do Cluster do Mar dos Açores”, a investigação e desenvolvimento na área dos recursos minerais marinhos, uma forma indireta – mas não necessariamente mais inócua – de abrir a porta à mineração em mar profundo. Esta visão tem sido pública e amplamente defendida por António Costa Silva [actual ministro do Economia e do Mar], inclusivamente no que se refere à possível futura exploração de hidrocarbonetos em Portugal, entretanto proibida no artigo 45.º da Lei de Bases do Clima.
Face a estes sinais contraditórios, o que podem os cidadãos e as organizações da sociedade civil concluir? Que o Governo quer apostar na mineração em mar profundo? Ou que quer proteger este bem público de uma atividade destrutiva, ainda não experimentada em escala comercial e com impactos ambientais potencialmente muito significativos?
Uma tomada de posição clara e pública da parte do Governo português é premente também por, em junho de 2021, ter sido desencadeada na Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos a chamada “regra dos dois anos” que dá à Autoridade esse período para a elaboração de todos os regulamentos relevantes para a exploração. Caso tal não aconteça, a Autoridade aprovará provisoriamente o plano de trabalho do estado membro proponente com base em quaisquer regulamentos em vigor na altura. O tempo urge e a clarificação é necessária para que todos compreendamos qual o caminho que se pretende seguir. Na ausência de tal clarificação, que esperamos ter lugar antes de a Conferência das Nações Unidas começar a 27 de junho próximo, partilhamos a nossa posição conjunta sobre mineração em mar profundo, esperando inspirá-lo a partilhá-la connosco.
As organizações signatárias desta carta defendem uma moratória imediata à mineração em mar profundo, tanto em águas internacionais como em águas sob soberania e jurisdição nacionais, a não ser que e até que:
- Os riscos ambientais, sociais e económicos sejam inteiramente compreendidos;
- Se demonstre claramente que a mineração em mar profundo pode ser gerida de forma a assegurar a proteção efetiva do ambiente marinho e a prevenir a perda de biodiversidade;
- Quando relevante, haja um enquadramento adequado para respeitar o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas e para assegurar o consentimento das comunidades potencialmente afetadas;
- Fontes alternativas para a produção responsável e uso de metais também encontrados no mar profundo tenham sido totalmente exploradas e aplicadas, tais como a redução da procura de metais primários, a transformação para uma economia circular e eficiente em recursos, e a mineração terrestre responsável;
- Mecanismos de consulta pública tenham sido estabelecidos e haja um amplo e informado apoio público à mineração em mar profundo, que tem de cumprir a obrigação de beneficiar a Humanidade como um todo.
- Os estados membros reformem a estrutura e funcionamento da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, para assegurar um processo regulatório e de tomada de decisão transparente, responsabilizável, inclusivo e ambientalmente responsável.
Esperamos assim encorajar V. Exa. e o seu Governo a definir decisivamente a sua posição sobre a mineração em mar profundo, em consonância com as atuais responsabilidades acrescidas do nosso país no palco internacional enquanto país anfitrião e coorganizador da 2.ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano.
Atualização: no dia 27 de maio, o gabinete do primeiro-ministro enviou uma resposta à carta, na qual agradecia a missiva das ONG, sem qualquer outro tipo de consideração. Parece ficar assim confirmada a falta de interesse por parte do Governo de se posicionar relativamente à mineração em mar profundo.
Signatários
Alexandra Azevedo, presidente da direcção nacional da Quercus
Ângela Morgado, directora executiva da ANP
WWF
Domingos Leitão, director executivo da SPEA
Gonçalo Carvalho, coordenador executivo da Sciaena
João Dias Coelho, presidente da comissão executiva do GEOTA
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico