Explicações para esta pandemia e outras que inexoravelmente se seguirão
No artigo anterior (Porquê tantos surtos infecciosos no presente século?) vimos que os surtos infecciosos que nos têm afetado estavam intrinsecamente ligados ao comportamento da humanidade: ao seu modelo de desenvolvimento, à sua demografia e à sua má relação com a natureza, realidades muito desarmoniosas e agressivas para com o planeta.
Vimos que criámos condições propícias ao aparecimento de microrganismos capazes de desencadearem surtos infecciosos com potencial pandémico, na sequência de agressões ambientais, como a desflorestação, ou das alterações climáticas que nos estão a conduzir para o aquecimento global.
Por outro lado, criámos, igualmente, condições para a disseminação desses surtos infecciosos que, em muitos casos, aproveitam as condições subjacente para evoluírem para epidemias e pandemias.
A principal causa desta pressão infecciosa tem que ver com a explosão demográfica que se verificou na sequência das diversas revoluções tecnológicas. Estas possibilitaram, entre outros fatores, uma maior disponibilidade de alimentos e um maior acesso a cuidados de saúde (sobretudo, cuidados médicos, vacinas e antibióticos) que motivaram um aumento da esperança de vida e uma redução da mortalidade. Somos, presentemente, mais de 7,9 mil milhões e todos os dias acrescentamos a este número cerca de 180 mil. Atingiremos os oito mil milhões ainda este ano.
Esta facto foi agravado pela alteração da nossa organização demográfica; a migração em massa do campo para a cidade motivou a mudança de um modelo rural por um modelo urbano. Presentemente, mais de metade da população do planeta vive em cidades, que se foram tornando progressivamente mais populosas; atualmente, existem mais de 30 cidades com uma população superior a dez milhões de habitantes – toda a população de Portugal confinada num único espaço urbano! Esta elevada densidade populacional cria as melhores condições para a circulação de vírus respiratórios que se transmitem de pessoa a pessoa e que requerem, pois, proximidade entre elas.
Um outro importante fator é o das viagens e os seres humanos são uma espécie que deve transportar em si “um gene de viajante”. Desde que saímos de África – o nosso continente mãe – há mais de 100.000 anos, viajamos por todo o planeta, ocupando literalmente todos os nichos geográficos e hoje continuamos a viajar, já não a pé como fizemos outrora, mas utilizando meios de transporte cada vez mais rápidos, à boleia dos desenvolvimentos tecnológicos. Nos dias de hoje viajamos sobretudo de avião à velocidade de 900 quilómetros por hora e é a essa velocidade que viajam connosco “os nossos microrganismos”, quer os bons quer os maus. Em 2019 – o ano em que se iniciou a presente pandemia –, de acordo com a ICAO (Organização da Aviação Civil Internacional) o transporte aéreo registou o número incrível de 4.300.000.000 de passageiros, um número superior a metade da população do planeta.
Acontece que muitos desses passageiros viajam infetados, muitas vezes ainda assintomáticos, mas já com capacidade de transmitir a infeção, não só aos restantes passageiros como àqueles com quem se irão cruzando ao longo da sua viagem, iniciando cada um destes uma nova cadeia de transmissão. Foi assim que se disseminou a presente pandemia. Wuhan, cidade onde teve a sua origem, é um entreposto de deslocações nacionais e internacionais com mais de cem voos diários para mais de 70 países.
O avião é um formidável meio de disseminação de uma doença infecciosa provocada por microrganismos respiratórios, seja a gripe, a covid ou a tuberculose. Um passageiro que viaje da Ásia para América em trânsito pela Europa tem a capacidade de disseminar um vírus pandémico por três continentes em menos de 24 horas. Foi o que aconteceu em 2019 com o SARS-CoV-2 e é o que irá acontecer com outros microrganismos semelhantes, no futuro.
Por outro lado, criamos uma nova realidade – a globalização. Esta não deve ser entendida apenas na perspetiva da interligação dos mercados ou da intercomunicação digital. A noção do planeta como uma aldeia global incluiu o contacto físico permanente entre pessoas de origens e culturas diversas; “toda a gente vai a todo o lado” e nessas viagens, para além das novas experiências e conhecimentos que adquirimos, somos transportadores/recetores de todo um mundo microbiológico invisível, do qual a chamada “diarreia do viajante” é a parte mais visível e benigna.
Andrew Orrick, professor emérito de História da Medicina na Universidade de Yale resume bem esta situação, ao afirmar: “As epidemias afetam as sociedades por via de vulnerabilidades específicas que as pessoas criaram através das suas relações com o meio ambiente. Os microrganismos que as provocam são aqueles cuja evolução os adaptou, de modo a preencherem os nichos ecológicos que nós preparámos.”
Já que no futuro será inevitável convivermos com novos microrganismos pandémicos, deveremos ter a inteligência e a capacidade para preparar as estruturas da saúde para os receber. É que desta vez tivemos sorte: o SARS-CoV-2 é um vírus “bonzinho” com uma letalidade a rondar apenas 1,3%. Para a próxima não sabemos. Ainda recentemente tivemos no nosso país vários surtos de gripe aviária provocados pelo vírus influenza H5N1 que, apesar de ser um infetante das aves, já adquiriu a capacidade para infetar seres humanos, e quando o faz tem uma letalidade próxima dos 50%. A OMS considera este vírus um sério candidato a ser o próximo vírus pandémico. Convém, pois, que estejamos atentos.
O autor escreve de acordo com o novo acordo ortográfico