Porquê tantos surtos infecciosos no presente século?
O século XXI está a ser fértil em surtos infecciosos. Ainda estamos a viver o seu 22.º ano e já contabilizamos duas pandemias e quatro surtos epidémicos de grande impacto. As pandemias foram as da gripe A H1N1, que percorreu o planeta em 2009-2010, e a da covid-19 que já nos afeta há mais de dois anos e que até ao momento foi responsável por mais de 506 milhões de infeções e de 6,2 milhões de óbitos.
Quanto aos surtos epidémicos, relembremos: a SARS, em 2003, que atingiu 30 países com uma letalidade de 10%; a síndroma respiratória do Médio Oriente (MERS), que fez a sua aparição em 2012, com casos registados em 26 países e com uma letalidade de 34%; o surto provocado pelo vírus do Ébola, na África Ocidental, que se iniciou em 2013, durou três anos, atingiu quase 29.000 pessoas em dez países, com uma impressionante letalidade de 39%, mas que nalgumas zonas chegou a atingir os 90%; o surto de Zika, que teve o seu início em 2013, percorreu 84 países da região do Indo-Pacífico e foi responsável por milhares de casos de microcefalia em recém-nascidos. Os três primeiros impressionam pela sua elevadíssima letalidade, o último pelas suas dramáticas e definitivas consequências.
Perante este recrudescimento de surtos infecciosos urge responder à pergunta: porquê o seu aparecimento e a sua disseminação sob a forma de epidemias e de pandemias? A resposta apesar de complexa é óbvia: por causa da humanidade. A humanidade está a colher os frutos do que semeou, corolário de um modelo de desenvolvimento, de uma demografia e de uma relação com a natureza muito desarmoniosas.
Relativamente ao seu aparecimento, muitos destes surtos infecciosos provêm de animais, são zoonoses (doenças infecciosas dos animais que se transmitem ao ser humano) e, neste contexto, as constantes agressões ambientais que infligimos – como a desflorestação – adquirem um papel determinante. Somos uma espécie que, para suprir as suas necessidades, não hesita em agredir a casa que habita – o planeta. A necessidade premente de se produzirem alimentos para toda a população – as chamadas revoluções agroalimentar e pecuária – leva à substituição do espaço selvagem natural por gigantescas estruturas agrícolas. Todos os anos perdem-se mais de cinco milhões de hectares de floresta a favor das indústrias agroalimentar, pecuária e madeireira, com a consequente destruição e posterior ocupação humana dos nichos ecológicos de muitos animais selvagens, com os quais, por proximidade, passamos a contactar.
Por outro lado, em muitas regiões as populações continuam a alimentar-se desses animais (macacos, civetas, morcegos, pangolins e outros), fora de qualquer controlo sanitário.
Foi o que esteve na base de vários surtos infecciosos conhecidos. Por exemplo, acredita-se que foi isso que esteve na origem da sida, a quarta pandemia do século XX. Segundo esta hipótese o HIV teria tido origem no vírus da imunodeficiência dos símios (SIV), que teria adquirido a capacidade de infetar humanos a partir do consumo da carne destes animais, em África. Tal terá acontecido na década de 40 do século passado.
Do mesmo modo a SARS, de 2003, deverá ter tido origem em civetas – uma espécie de gato selvagem – cuja carne entrou nos hábitos gastronómicos das classes chinesas mais endinheiradas – gastronomia gourmet. Acredita-se que estes animais sejam hospedeiros intermediários dos coronavírus, vírus infetantes naturais dos morcegos e nos quais foram muito recentemente identificados mais de 500 diferentes tipos de coronavírus. A verdade é que civetas e morcegos estavam à venda nos wet markets (mercados que vendem carne, peixe e mariscos frescos) de Guangdong, cidade onde a epidemia se iniciou e em ambos os animais foram encontrados coronavírus geneticamente muito próximos do SARS-CoV-1.
Um outro exemplo: em 2013, na África ocidental, um surto de Ébola começou numa remota aldeia de Meliandou, na Guiné-Conacri, região onde a carne de morcego é uma importante fonte de proteína animal. Estes animais, à medida que a floresta vizinha foi sendo destruída para dar lugar a palmares – o cultivo de óleo de palma é um excelente negócio por estas paragens –, passaram a fazer os seus ninhos junto às habitações locais. Resultado: Emile Ouamouno, uma criança de apenas dois anos contraiu o Ébola (foi o paciente zero), morreu e transmitiu a infeção aos seus familiares, que também morreram, e deu origem a uma das epidemias mais mediáticas do século XXI: dez países atingidos, cinco dos países mais pobres do mundo em estado de sítio, quase 29.000 infeções, 11.300 mortes e ondas de choque a chegarem a todos os continentes, à OMS e à ONU.
Também as alterações climáticas são um fator favorecedor do aparecimento e disseminação de surtos infecciosos. Consequência do nosso modelo de desenvolvimento, muito baseado na queima de combustíveis fósseis, estamos em pleno processo de aquecimento global, e se para os seres humanos tal trará graves inconvenientes, há espécies que irão florescer com um clima mais quente; é o caso dos mosquitos que passarão a ter melhores condições para o seu desenvolvimento e para se expandirem para latitudes até agora pouco favoráveis. Por isso, está previsto o aparecimento de doenças infecciosas transmitidas por mosquitos, como a malária, o dengue ou a febre amarela, em áreas até agora livres dessas doenças ou mesmo o aparecimento de novas doenças transmitidas por estes insetos.
Foi o que aconteceu recentemente no Pacífico, em que uma espécie de mosquito – o Aedes aegypti – deu origem a um surto epidémico que atingiu quase 90 países nas Américas, Ásia e ilhas do Pacífico, ao transmitir um vírus desde há muito conhecido, o Zika.
Este vírus esteve na origem de muitos casos de uma doença neurológica potencialmente fatal – a síndroma de Guilhan Barré – e do nascimento de milhares de crianças com malformações cerebrais, com crânios de dimensões reduzidas – a microcefalia. As mães tinham sido picadas pelo mosquito durante a gravidez e assim infetadas pelo vírus de Zika.
E este é apenas mais um exemplo que podia ser multiplicado por muitos outros, como o aparecimento recente de dengue na ilha da Madeira ou os casos esporádicos de febre do Nilo Ocidental detetados no Algarve. Ambas as doenças são provocadas por vírus transmitidos pela picada dos mosquitos.
Desenvolveremos esta temática num próximo artigo que terá como título “Explicações para esta pandemia e outras que inexoravelmente se seguirão”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico