O Dia da Terra e a perspectiva dos media
No primeiro Dia da Terra, em 1970, os canais televisivos norte-americanos não hesitaram em se posicionar sobre as notícias do dia. A CBS News produziu um especial intitulado “Dia da Terra, uma questão de sobrevivência”, que abriu o noticiário da noite com o biólogo Barry Commoner dizendo a uma multidão: “Este planeta está ameaçado de destruição… Estamos numa crise de sobrevivência.” O pivô Walter Cronkite reiterou o tema, declarando que este é um “dia único na história americana, dedicado à humanidade em busca da própria sobrevivência”. A ABC News atribuiu o seguinte título a uma reportagem especial: “Dia da Terra: Um SOS para sobrevivência.” A primeira frase do pivô Frank Reynolds foi para congratular os activistas por se manifestarem, valorizando o facto de “milhões de americanos” terem dado “o primeiro passo para a sobrevivência”.
A CBS e a ABC dedicaram praticamente toda a emissão à cobertura do Dia da Terra, com correspondentes a enfatizar os flagelos da poluição do ar e da água em reportagens a partir de Nova Iorque, Boston, Washington, Chicago, Denver, Albuquerque e St. Louis. A cobertura da NBC foi menos extensa, mas apresentou um item que, visto com a vantagem do tempo, parece assustadoramente presciente. O pivô Frank Blair afirmou que “um cientista do governo” havia dito a colegas da União Geofísica Americana que “a poluição excessiva, caso não fosse controlada, poderia aquecer a Terra num prazo de 200 anos a ponto de criar um efeito estufa, derreter a calota de gelo do Árctico e inundar vastas áreas do planeta”.
Na época, a televisão aproximava-se do auge em termos de capacidade de influência da opinião pública. Dessa forma, quando os telejornais deram tanta atenção ao Dia da Terra e deixaram tão claro o apoio ao combate à poluição, os efeitos foram profundos. Richard Nixon, que ainda não ia a meio do primeiro mandato como Presidente dos Estados Unidos, entendeu o recado. As memórias dos principais assessores da Casa Branca indicaram, mais tarde, que a expressão da opinião pública no Dia da Terra – algumas fontes estimam que 20 milhões de pessoas participaram, uma multidão que atraiu apoiantes de todos os segmentos sociais, e não apenas radicais de cabelos compridos – convenceu Nixon de que, para garantir a reeleição em 1972, seria necessário retirar aos adversários a questão ambiental. Nixon criou rapidamente a Agência de Protecção Ambiental e assinou a Lei do Ar Limpo, a Lei da Água Limpa e outras leis que até hoje figuram entre as legislações ambientais mais fortes do planeta.
O que nos traz a este Dia da Terra. Segundo todos os relatórios científicos, a crise ambiental que os activistas temiam há mais de 50 anos é hoje muito mais terrível. E necessidade de agir de forma rápida é ainda mais urgente. E, no entanto, aqueles pivôs televisivos dos anos 70, postos de lado como anacronismos na era digital em que vivemos, estavam em vários aspectos à frente dos jornalistas de hoje. Imagine cada uma das três grandes redes televisivas dos Estados Unidos a abrir os noticiários com o mais recente relatório do IPCC (sigla em inglês do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas), a passar no ecrã manchetes como “Uma questão de sobrevivência” e, depois, a passar a emissão inteira a explicar o problema e explorar soluções.
É trágico que, até muito recentemente, a cobertura mediática dada à crise climática tenha recuado em todos os parâmetros concebíveis em comparação ao que se fazia há meio século: menos urgência, menos espaço, menos tempo de antena. O facto de os jornalistas estarem finalmente a dar ao clima a atenção devida diz mais sobre o estado do tempo do que sobre o compromisso dos media em narrar a actualidade. Como o congressista democrata Jamie Raskin disse numa entrevista publicada recentemente por membros da iniciativa Covering Climate Now: “Se fôssemos mais inteligentes como animais, os seres humanos estariam em nada além das mudanças climáticas.”
Uma parte significativa do problema está no facto de os jornalistas terem a sensação – mais uma vez, até muito recentemente – de que uma cobertura assertiva da crise climática é uma espécie de activismo, e que dar voz aos activistas que pressionam por mudanças é tomar partido. Mas quando recuamos no tempo e assistimos à cobertura noticiosa dos anos 70, não encontramos qualquer hesitação nos pivôs muito sóbrios da época. “Aja ou morra”, foi como Cronkite resumiu a mensagem daquele primeiro Dia da Terra. Imagine ler esta mesma manchete hoje nas páginas de notícias do The New York Times.
Estas reportagens feitas no primeiro Dia da Terra ilustram um velho truísmo do jornalismo: toda cobertura noticiosa tem um ponto de vista. Cada notícia, cada homepage, cada programa televisivo ou radiofónico reflecte uma perspectiva, ainda que implicitamente. Este ângulo é definido por quais assuntos são cobertos e quais não são; que factos são apresentados e quais não são; que vozes são citadas e quais não são. Rigor e justiça continuam sendo essenciais para o jornalismo honesto, mas não há como fugir a uma perspectiva. “Numa batalha por factos, numa batalha pela verdade, o jornalismo é activismo”, disse a jornalista filipina Maria Ressa, ganhadora do Prémio Nobel [da Paz], que foi repetidamente perseguida e até presa pela sua decisão de narrar fidedignamente a realidade do seu país.
Narrar os factos a partir de uma perspectiva tem um lugar antigo na história do jornalismo. Os repórteres que narravam as mentiras sobre quantas pessoas morriam na guerra no Vietname estavam a narrar com um ponto de vista, assim como as câmaras de TV que documentavam o movimento pelos direitos civis. Mais recentemente, a cobertura da guerra na Ucrânia apresentou a invasão da Rússia como um acto brutal e injustificado que inclui ataques de propósito a civis. A cobertura noticiosa da covid também retratou a pandemia como uma emergência de saúde pública que exige vacinas, máscaras e distanciamento físico para ser superada.
Neste Dia da Terra, as redacções em todo o mundo devem cobrir a crise climática com esse mesmo olhar e atenção. Se adoptar uma perspectiva é algo inevitável no jornalismo, que o ponto de vista escolhido seja aquele que pode nos ajudar a travar a ameaça catastrófica que paira sobre o planeta onde habitamos. Esta não deve ser uma escolha difícil de fazer, seja para jornalistas ou qualquer outra pessoa.
Este artigo integra a série “Climate & Democracy” da iniciativa Covering Climate Now, uma colaboração jornalística global – da qual o jornal PÚBLICO faz parte – que visa reforçar a cobertura noticiosa sobre a crise climática.