Concurso "jornalistas em rede"
Na terra de Guterres nasceu a reportagem vencedora, feita por duas alunas do 8.º ano
Maria Carolina Encarnação e Sara Filipa Cruz são as autoras do trabalho distinguido no concurso, aberto à participação de estudantes do 3.º ciclo do ensino básico.
A levar “Abril” do Fundão para o mundo. A herança e o legado de António Guterres
A história do “mensageiro da paz” que em 2022, um dia após mais um aniversário da Revolução dos Cravos em Portugal, se cruzou com Vladimir Putin para abordar o conflito ucraniano.
Reportagem de Maria Carolina Encarnação e Sara Filipa Cruz
8.º ano, turma B, Agrupamento de Escolas do Fundão
António Guterres nasceu em Lisboa no ano de 1949. As suas raízes encontram-se, porém, bem no interior de Portugal, mais propriamente nas Donas, freguesia do concelho do Fundão, onde viveu com os avós maternos parte significativa dos seus primeiros anos. Os pais faziam questão que assim fosse. Para Vítor Dias, seu amigo de infância, este facto acabou por marcar a vida do agora Secretário-Geral da ONU, permitindo que “bebesse os valores dos beirões, mas, sobretudo, da sua família”. O avô foi presidente da Junta de Freguesia das Donas. A ele se deve, em parte, a edificação do apeadeiro da CP na aldeia. Conforme reconhece Pedro Silveira, responsável pelas visitas guiadas à Casa de Memórias António Guterres, “ele nasceu numa família abastada e com muitos privilégios”, mas foi no Fundão que se confrontou com o país real, cinzento e rural, onde as “crianças da idade dele, com quem brincava, andavam descalças, passavam fome e não iam à escola, o que o angustiava...”. Apesar desta condição miserável, não faltavam um domingo que fosse às obrigações religiosas, como era habitual naquela época. A casa dos avós de António Guterres situava-se mesmo em frente à Igreja Paroquial das Donas. Da proximidade física à ligação espiritual foi um passo. Como era da praxe, “tínhamos de ir à missa ao domingo e rezar o terço no mês de Maria”, refere Vítor Dias. Para este amigo, foi assim que “nasceu aquela religiosidade dele.”
Com 6 anos, o menino Toni, como era carinhosamente conhecido, também se destacava junto do pároco local. Desempenhava as funções de acólito e lia na missa. De acordo com Pedro Silveira, os locais “tinham um gosto ainda maior só para o ouvir ler. Na altura comentava-se pela aldeia que ele era uma criança em ponto adulto.” A avó materna terá sido uma das responsáveis pelo desenvolvimento de hábitos de leitura, uma vez que fazia questão de que o neto “fosse ter com uma professora que vivia perto”. Foi assim que o menino Toni aprendeu a ler antes mesmo de ter idade para frequentar a escola primária. “Com 3 ou 4 anos já sabia escrever o nome dele”, adianta Vítor Dias. Todo este ambiente fomentar-lhe-ia, desde tenra idade, o interesse pelo conhecimento.
A universidade da rua
O percurso escolar foi, com naturalidade, marcado pelo sucesso. Terminou o Liceu Camões, em Lisboa, com uma média de 18 valores, tendo recebido o Prémio Nacional dos Liceus. Concluiu, depois, a licenciatura de Engenharia Eletrotécnica, com média de 19 valores, o que equivale a uma das melhores médias registadas na história do Instituto Superior Técnico. Este sucesso académico foi resultado de muito estudo. Colegas de curso revelaram que durante as “férias, enquanto a maior parte deles se divertia, ele estudava a parte da matéria que ia dar a seguir”, como relatou Pedro Silveira. Saiu do Técnico com algumas vivências um pouco fora do comum. Conseguiu causar um curto-circuito ao fazer uma experiência eletrotécnica. De acordo com o seu amigo Vítor Dias, “já na infância, tinha muito jeito e curiosidade para tentar arranjar aparelhos”.
No Ensino Superior manteve-se à margem das intensas lutas estudantis em prol da liberdade. Preferiu dedicar-se às causas sociais. Tornou-se membro da Associação da Juventude Universitária Católica e do Grupo da Luz, onde fortaleceu a sua ligação aos princípios do catolicismo e aos valores sociais e humanitários. Cruzou-se com o Padre Vítor Melícias no seio da pobreza dos bairros de lata. Com ele promoveu “acampamentos para crianças desfavorecidas”, refere Pedro Silveira. Foi lá que conheceu Luísa, por quem se apaixonou. Casaram-se em 1972, numa cerimónia celebrada pelo padre que viria a tornar-se um dos grandes amigos de todas as horas. Vítor Dias destaca a beleza e a personalidade da esposa de Guterres. “Ela veio para o Hospital do Fundão” quando era comum os médicos irem para a periferia.
Na antecâmera da Revolução dos Cravos, António Guterres deixou-se seduzir pela política, aderindo ao Partido Socialista. Acabou por desempenhar funções legislativas logo após 1974. Entre 1995 e 2002 foi Primeiro-Ministro. Nunca cortou laços com as suas raízes. De 1979 a 1995 exerceu o cargo de presidente da Assembleia Municipal do Fundão. Destacou-se “na defesa da Universidade da Beira Interior e do Regadio da Cova da Beira”, refere Paulo Silveira, militante socialista que se cruzou com António Guterres na concelhia do Fundão. Neste momento, como Secretário Geral das Nações Unidas, tem revelado uma “visão prospetiva” e “uma liderança ativa e corajosa, atenta aos problemas do futuro que os governantes não querem aceitar”. Em 2022, um dia após mais um aniversário da Revolução dos Cravos em Portugal, cruzou-se com Vladimir Putin para abordar o conflito ucraniano.
Apesar da distância física, António Guterres continua presente na vida das gentes fundanenses. Num gesto de amizade para com as suas origens, doou à autarquia cerca de 70 artefactos recebidos, enquanto Primeiro-Ministro, de homólogos dos quatro cantos do mundo. De entre estes, destaca- se a Bandeira Portuguesa entregue por Xanana Gusmão. Conforme sugere Pedro Silveira, todos estes objetos podem ser visitados na Casa das Memórias António Guterres, espaço com o potencial turístico que permite enaltecer e defender os valores de Abril, da liberdade, do humanismo e da solidariedade. O próprio Fundão, capital da cereja, tem-se reinventado, abraçando as causas defendidas pelo menino “Toni”. Conforme advogam Paulo Silveira e Vítor Dias, “por ele não havia países... apenas pessoas”. O Fundão respeita, assim e agora, o seu legado, assumindo-se como uma “Terra de Acolhimento” que procura defender aqueles que mais precisam, nos quais se incluem cerca de 700 migrantes de diversas latitudes.
["Jornalistas em Rede" é uma iniciativa do PÚBLICO na Escola e da Rede de Bibliotecas Escolares (RBE). Em junho será anunciado o vencedor na categoria de entrevista.]