Educação para os media
Os cem anos (ou talvez mais) dos jornais escolares
No início dos anos 20, Célestin Freinet deu um impulso decisivo à feitura de jornais por crianças, nas salas de aula. Em Portugal, teve logo seguidores. Mas os periódicos escolares são mais antigos.
O início do verão de 1994 na vila da Lousã aqueceu com um escândalo. Num jornal escolar feito por alunos do 10.º ano da secundária local, no âmbito de um projeto pedagógico, surgem relatos das primeiras experiência sexuais de alguns adolescentes. “Já estive ao pé de uma senhora que diz que é pior que as revistas pornográficas. Agora, eu não sei, porque não li”, dizia uma mulher ao jornalista televisivo que ali se deslocara para cobrir o caso. Não se falava de outra coisa. A associação de pais denunciava o que considerava um atentado ao pudor e um “incentivo ao desvio de menores”, exigindo o apuramento de responsabilidades.
A direção do estabelecimento assumia ter autorizado a edição, embora admitisse “precipitação”. “Tentei suspender a divulgação do jornal, só que não era possível, porque as fotocopiadoras são um processo multiplicativo muito rápido”, desculpava-se o presidente do conselho diretivo. Uma nova versão, censurada, do jornal havia já sido distribuída, “mas as cópias da versão original estão já espalhadas por todo o país”, dizia a reportagem.
Passados 28 anos, o episódio — com relatos provavelmente inventados, o mais polémico dos quais assinado com o nome de uma aluna que afinal não existia — fará rir muita gente, ajudando a dar conta do contexto social da época e do local. Mas também levanta questões essenciais na discussão sobre o que pode e deve ser um jornal escolar. Na verdade, o caso vai ao âmago e, de alguma forma, testa os limites da metodologia na qual, em grande medida, se tem baseado, ao longo do último século, o processo de elaboração deste instrumento educativo. Ou seja, aquela que defende que a vontade do aluno é o principal elemento do processo de aprendizagem.
Não se deve ao professor Célestin Freinet (1896 -1966) a criação do jornal escolar, ao contrário do que é correntemente veiculado. Mas o pedagogo francês, um dos principais cultores do movimento de renovação educativa a que se convencionou chamar “Escola Moderna” – que tinha como missão romper com os modelos tradicionais herdados do século XIX —, foi o seu maior divulgador. Os princípios da liberdade e da autonomia individual dos alunos, assentes em conceitos ideológicos libertários, nortearam o chamado “método Freinet”, iniciado em França no início dos anos 20 d0 século passado e disseminado pelo mundo.
Tipógrafo na sala de aula
Guião para uma pedagogia eminentemente prática, em que a experiência e a realização de trabalhos pelos alunos norteiam o processo de aprendizagem, por oposição a um ensino centrado na memorização de lições, tal método serviu-se, entre outros, de instrumentos como a correspondência entre escolas, as aulas-passeio e os jornais escolares. “A democracia de amanhã é preparada na democracia da escola”, defendia o educador. A introdução do tipógrafo na sala de aula, com o qual os alunos faziam os seus jornais, revelou-se revolucionária. Ao professor cabia o papel de monitorizar a feitura dos periódicos e o nem sempre linear processo de aprendizagem.
“O projecto de Freinet desenvolve esta ideia notável de que escrevemos para comunicar e, na escola, isso também deve acontecer. Não deve ser apenas para o professor corrigir ou ficar nos cadernos de apontamentos, mas para aprendermos a comunicar uns com os outros”, postula Manuel Pinto, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, para quem os jornais escolares devem ser, por definição, elementos de celebração da liberdade de expressão e “tribuna de expressão e informação dos direitos dos mais novos”.
Manuel Pinto sabe bem do que fala. Foi ele o responsável pela criação do projecto PÚBLICO na Escola, em 1989, quando o jornal ainda estava em processo de conceção – começaria a ser publicado em março de 1990 —, e seu coordenador durante quase uma década e meia. Nesse período, deparou-se com as mais variadas situações. Entre elas a de jornais censurados, ou quase, por “gente que tinha receio de criar casos”. Mas isso, frisa, foi algo residual quando comparado com o ambiente de grande liberdade que sempre se respirou no projeto.
Houve até um caso, na vila do Sabugal, distrito da Guarda, em que o jornal escolar assumiu uma preponderância invulgar, extravasando as paredes do estabelecimento. “Os miúdos começaram também a trazer histórias das suas aldeias e a publicá-las e era assim que as pessoas ficavam a par do que se passava no município. Embora algumas das histórias até fossem algo ingénuas, o jornal passou a ser visto como a melhor forma de saber o que acontecia no concelho”, rememora. A missão comunitária no seu pleno.
Esse era, no fundo, um excelente exemplo do que o docente e investigador sempre destacou como um dos princípios orientadores deste género de meio de comunicação. “Deve ter notícias e distinguir factos das opiniões”, diz Manuel Pinto. Ou seja, o mesmo que para qualquer órgão informativo. E ainda mais outro: “O jornal escolar deve ter o protagonismo dos alunos, não deve ser uma espécie de montra encapotada dos professores.”
Pressupostos que correspondiam ao defendido por Freinet e que o académico português tentou aplicar um pouco por todo o país, no que foi um processo grandemente inovador, até pela ambição territorial e grau de exigência associado a um título de referência.
Logo que o projecto patrocinado pelo PÚBLICO foi anunciado, recorda, gerou-se uma enorme expectativa entre a comunidade educativa. “As escola pelavam-se por participar”, diz o investigador. Numa fase inicial, o PÚBLICO na Escola cingiu-se a cinco estabelecimentos em Lisboa e outros tantos no Porto. A expansão nacional veio logo a seguir.
Mas os jornais escolares estavam longe de ser novidade em Portugal. Manuel Pinto lembra que já existiam durante o Estado Novo, embora com um espetro de ação e de liberdade característicos do regime ditatorial. Ou seja, pouco ou nenhum. O que havia eram os jornais que, no fundo, funcionavam como órgãos com caráter corporativo e institucional, ecoando o discurso oficial em detrimento de darem voz aos alunos. Em justa medida do que sucedia no resto da sociedade.
Coerente com esse embutimento cívico, o regime de Salazar havia suprimido, no seu início, algumas das experiências pedagógicas progressistas, entre as quais as provindas dos ensinamentos de Freinet. Os métodos do pedagogo francês começaram a encontrar eco em Portugal, ainda na década de 1920, através de um grupo de professores e investigadores da área educativa da zona de Coimbra.
Entre eles estava Álvaro Viana de Lemos (1881-1972), que veio a publicar, em 1930, a brochura “A Imprensa e a gravura na escola elementar: poderosos auxiliares do ensino”. Terão sido Lemos e os seus colegas os responsáveis pela dinamização dos primeiros jornais escolares no país. Seguindo os ensinamentos do seu mentor, introduziram o tipógrafo na sala de aula.
A razão primeira para, em 1923, Célestin Freneit trazer aquele dispositivo para a escola onde dava aulas, em Le Bar-sur-Loup (Alpes Marítimos), foi muito prática. Sofrendo de graves insuficiências pulmonares, devido a ferimentos resultantes da exposição a gases tóxicos nas trincheiras da I Guerra Mundial, onde combatera, via-se impossibilitado de falar por longos períodos aos seus alunos. Com o tipógrafo, passou a imprimir “textos livres” em que professava as suas ideias sobre a sociedade e a educação, mas também os jornais da classe, nos quais as crianças compunham trabalhos e os editavam, para depois os discutirem com os colegas. A conveniência revelou-se revolucionária.
Experiências prévias
A partir daí, e da publicação do livro A imprensa na escola (1925), o movimento dos jornais escolares, a par com as ideias renovadoras trazidas pela “Escola Moderna”, ganhou um assinalável ímpeto internacional. A ponto de muitos creditarem a Freneit a sua criação. Quase poderia dizer-se que essa informação corresponde à verdade. Mas não é bem assim. O que ele fez foi insuflar de vida uma ferramenta que já vinha sendo usada em França, sobretudo nos meios mais cosmopolitas e progressistas, ao longo do século XIX. “Já havia experiências prévias, sobretudo a partir do Iluminismo e do momento em que se começa a olhar para a criança não apenas como uma cópia em miniatura do adulto”, refere Manuel Pinto.
Com efeito, e ainda no século XVIII, o historiador e educador Charles Rollin (1661-1741) defendia o uso da tipografia na escola como “um meio privilegiado de difundir as ideias ou de dar a conhecer os problemas particulares” dos alunos, mas também de os manter ocupados a trabalhar em simultâneo em temas diferentes. No século seguinte, a prática foi ganhando adeptos e teve no professor Paul Robin (1837-1912) um grande entusiasta, ao inseri-la nas práticas de “pedagogia libertária” por si professadas. O mesmo acontecendo, um pouco mais tarde, com o médico e pedagogo polaco Janusz Korczak (1878-1942), através da “gazeta escolar”.