Dia 9 de Abril vai ser anunciada a decisão instrutória. Basicamente, o juiz Ivo Rosa vai decidir se o processo segue para julgamento e, se sim, relativamente a que arguidos e por que crimes. O caso pode ser arquivado para todos ou só para alguns arguidos e prosseguir para outros. O ex-primeiro-ministro José Sócrates pode, por exemplo, ser julgado por fraude fiscal e branqueamento de capitais, mas ver cair as acusações de corrupção.
Especial
Guia simples para quem se perdeu no processo da Operação Marquês
A investigação ao ex-primeiro-ministro José Sócrates começou em Julho de 2013 e resultou, em Novembro de 2017, numa acusação com mais de 4000 páginas. As diligências de instrução arrancaram há mais de dois anos e na próxima sexta-feira vai ficar-se a saber se os 28 arguidos do caso vão a julgamento e, se sim, em que termos. O PÚBLICO tenta responder às dúvidas de quem já se perdeu neste processo.
O que vai ser decidido na próxima sexta-feira?
A decisão do juiz Ivo Rosa é definitiva?
Se o juiz de instrução se limitar a confirmar a acusação, o seu despacho é irrecorrível. Mas se este validar umas partes e outras não, pode haver recurso pelo menos por parte do Ministério Público. As defesas tem as hipóteses de recurso limitadas, mas podem sempre invocar nulidades. Várias decisões tomadas por Ivo Rosa ao longo da instrução, nomeadamente uma alteração não-substancial dos factos que constam da acusação, apontam para que o juiz não vá confirmar a acusação como um todo, o que significa que a decisão final sobre quem irá a julgamento e por que crimes deverá ficar na mão de juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.
Como surgiu esta investigação?
Formalmente, o inquérito que ficou conhecido como Operação Marquês e no qual José Sócrates é a figura central foi aberto em Julho de 2013, na sequência de uma comunicação bancária da Caixa Geral de Depósitos ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), no âmbito da legislação de prevenção de branqueamento de capitais. Porém, os primeiros volumes do processo permitem perceber que a investigação começou no processo Monte Branco (iniciado em 2011), no qual foram detectados vários movimentos avultados em nome de Carlos Santos Silva, amigo de longa data de José Sócrates e, na tese do Ministério Público, seu testa-de-ferro, que chegou a ser escutado no âmbito do Monte Branco.
Porque é que este processo ficou conhecido como Operação Marquês?
É comum quando as autoridades lançam uma grande operação de buscas e detenções usarem um nome de código. Operação Marquês foi o nome escolhido para o conjunto de diligências que culminaram na detenção de quatro pessoas. Primeiro, o empresário Carlos Santos Silva; um colaborador deste, o advogado Gonçalo Trindade; o então motorista de Sócrates, João Perna e o ex-primeiro-ministro. O nome terá sido escolhido devido à proximidade da então residência de José Sócrates, um apartamento no edifício Heron Castilho, na rua Braamcamp, a umas dezenas de metros da praça do Marquês de Pombal.
Quem são as figuras centrais da Operação Marquês?
Este processo conta actualmente com 28 arguidos (19 pessoas e nove empresas). A figura central é José Sócrates, mas no rol de acusados há outros nomes sonantes, como o antigo banqueiro Ricardo Salgado, os ex-gestores da PT Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, além do ex-ministro socialista Armando Vara ou do antigo vice-presidente do grupo Lena.
Quem liderou a investigação? Quantas pessoas estiveram envolvidas?
O procurador Rosário Teixeira foi sempre o titular do inquérito e o coordenador da equipa de magistrados que trabalhou no caso, que chegou a ter dez procuradores. O despacho final do inquérito, um documento com mais de 4000 páginas, é assinado por sete magistrados, quase todos do DCIAP. Rosário Teixeira, que se incompatibilizou há uns anos com a Polícia Judiciária, trabalhou, neste caso e noutros, com uma equipa da Direcção de Finanças de Braga, chefiada pelo inspector tributário Paulo Silva, em quem foi delegada a investigação. A equipa chegou a ter 22 inspectores da Autoridade Tributária.
Que juízes já intervieram no processo?
O juiz de instrução que acompanhou toda a investigação foi Carlos Alexandre. Foi ele que emitiu mandados de busca, autorizou e fiscalizou escutas telefónicas e aplicou as primeiras medidas de coacção. Decretou, por exemplo, a prisão preventiva de José Sócrates, do seu alegado testa-de-ferro Carlos Santos Silva, do então motorista João Perna, do então vice-presidente do Grupo Lena Joaquim Barroca e do ex-ministro socialista Armando Vara. Quando o processo seguiu para a instrução, uma fase facultativa que foi solicitada por 19 dos 28 arguidos – na qual se pretende decidir se o caso segue ou não para julgamento e, se sim, em que termos – o processo foi novamente distribuído por sorteio electrónico. O sistema informático seleccionou o juiz Ivo Rosa, que acompanha o caso desde Setembro de 2018. Pouco depois, Carlos Alexandre faz umas declarações à RTP sobre o sorteio da Operação Marquês, sugerindo uma eventual viciação. “Há uma aleatoriedade que pode ser maior ou menor consoante o número de processos de diferença que exista entre mais do que um juiz”, disse Carlos Alexandre, lançando dúvidas sobre o sistema de sorteio. As afirmações valeram-lhe a abertura de um processo disciplinar, que terminou arquivado.
José Sócrates é acusado exactamente de quê?
Sócrates foi acusado de um total de 31 crimes: três de corrupção passiva, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documento e três de fraude fiscal qualificada. A corrupção é associada a três diferentes actores que terão corrompido o antigo primeiro-ministro: Ricardo Salgado, líder do grupo Espírito Santo; Joaquim Barroca, um dos fundadores do grupo Lena, e os ex-accionistas do empreendimento turístico de Vale do Lobo, no Algarve. A fraude fiscal está relacionada com o facto de o ex-primeiro-ministro não ter declarado como rendimento os tais 34 milhões de euros, fugindo, assim, à cobrança de impostos. O mesmo não aconteceu com Carlos Santos Silva, que transferiu para Portugal, em 2010 e 2011, a esmagadora maioria dos milhões que reuniu na Suíça. Nessa altura, o dinheiro foi declarado por Santos Silva a nível fiscal no âmbito dos Regimes Excepcionais de Regularização Tributária I e II, o que isentaria o visado de qualquer crime fiscal. No entanto, o Ministério Público argumenta que como o dinheiro é, na realidade, de Sócrates, este não pode beneficiar dessa amnistia. O branqueamento de capitais está associado aos esquemas que terão sido montados para dissimular ou esconder a origem ilícita do dinheiro, seja criando contratos fictícios (falsificação de documentos) que davam uma aparente legalidade às verbas, seja pela utilização de intermediários e sociedades offshores que dificultam perceber a origem do dinheiro.
José Sócrates terá recebido quanto?
Directamente e em nome de José Sócrates não foi detectada a recepção de qualquer quantia com origem ilícita. No entanto, o Ministério Público diz na acusação que Sócrates reuniu 34 milhões de euros entre 2006 e 2015, montante que estava disperso por contas controladas pelo primo José Paulo Bernardo Pinto de Sousa e pelo amigo de longa data Carlos Santos Silva. A maioria do dinheiro passou por contas em nome de offshores controladas por Santos Silva, na Suíça, que alegadamente serão de Sócrates e fruto de corrupção. O facto de haver uma conta específica no BES — igualmente em nome de Santos Silva — que era usada pelo empresário para compensar as despesas assumidas em nome de Sócrates a partir de outras contas é um dos argumentos usados pelo Ministério Público. A facilidade com que o ex-primeiro-ministro dispunha das verbas alheias fosse para pagar férias, despesas correntes, ou ter à sua disposição uma casa em Paris; a forma imperativa como pedia dinheiro ao amigo, sempre de forma camuflada como “fotocópias” ou “documentos”, e as inúmeras entregas em dinheiro que terão ocorrido recorrendo, muitas vezes, a intermediários são outros indícios apresentados pelos procuradores para defender que o dinheiro é na realidade de Sócrates. O ex-primeiro-ministro sempre negou ser o dono desse dinheiro, admitindo que recebeu verbas do amigo. Mas insiste que foram meros empréstimos e que uma parte deles já se encontra paga. No entanto, nos primeiros interrogatórios, o ex-primeiro-ministro não foi capaz de contabilizar o valor exacto desses empréstimos.
Sócrates terá sido corrompido três vezes. Segundo o Ministério Público, quem foram os corruptores?
O Ministério Público identifica três grupos de corruptores activos. O antigo presidente do Banco Espírito Santo e líder do grupo com o mesmo nome, Ricardo Salgado, terá pago a esmagadora maioria das “luvas” para que Sócrates favorecesse os interesses daquele universo empresarial (21 milhões). O grupo Lena terá feito chegar a Sócrates, através de diversos esquemas, que envolveram o seu amigo Carlos Santos Silva e uma parte das empresas deste, perto de 11 milhões de euros como contrapartida pela intervenção do ex-primeiro-ministro, enquanto responsável político, no desenvolvimento dos negócios daquele grupo, nomeadamente a construção de casas prefabricadas na Venezuela, as concessões rodoviárias, o projecto do TGV e as obras do Parque Escolar. Por fim, três accionistas do empreendimento turístico de Vale do Lobo, no Algarve, são suspeitos de corromperem Sócrates, através de um cidadão holandês que comprou ali um lote de terreno e transferiu dois milhões de euros para uma conta controlada por Joaquim Barroca, de onde terá saído um milhão para Armando Vara e outro para Carlos Santos Silva. As alegadas “luvas” pretendiam compensar o favorecimento de Vale do Lobo nas condições de obtenção de um empréstimo avultado na Caixa Geral de Depósitos, que permitiu a um conjunto de accionistas comprar o resort.
Como é que Sócrates explica tanto dinheiro?
Como Sócrates nega ser o real dono do dinheiro, remete qualquer explicação sobre o mesmo para o seu amigo Carlos Santos Silva e para os negócios deste empresário, engenheiro civil de formação, que possui várias sociedades ligadas ao sector da construção civil.
Que provas suportam a acusação?
Só a listas das provas que sustentam a acusação tem 40 páginas. Estão arroladas 229 testemunhas, transcritas centenas de escutas e anexos milhares de documentos, como emails, escrituras, cartas e elementos bancários. A estratégia da investigação, que começou numa altura em que a maioria dos crimes já teriam sido cometidos, foi seguir o rasto do dinheiro, a maior parte reunido na Suíça, tentando perceber qual a sua origem. Reconstituir o circuito das verbas foi muitas vezes extremamente difícil, já que foram utilizadas contas de passagem só para despistar o seu rasto. Além disso, as transferências foram sempre feitas para contas de sociedades sediadas em paraísos fiscais, muitas vezes pouco cooperantes com as autoridades judiciais, o que dificultou perceber quem foram os beneficiários do dinheiro. Tal obrigou o Ministério Público a emitir múltiplas cartas rogatórias – um instrumento para pedir oficialmente elementos de prova a entidades estrangeiras –, o que é moroso e não tem sucesso garantido, já que nem sempre as diligências solicitadas são cumpridas. Só depois de reconstituir o circuito do dinheiro, o Ministério Público tentou consolidar as suspeitas sobre o que teria motivado aqueles pagamentos, ou seja, concretizar os alegados actos de corrupção. Tal fez com que algumas linhas de investigação tenham sido afastadas em detrimento de outras que começavam a consolidar-se. Ouviram-se testemunhas, cruzaram-se datas de factos com datas de pagamentos, apreenderam-se muitos documentos, usaram-se escutas telefónicas. No entanto, como é comum neste tipo de crimes (em que nenhuma das partes tem interesse na descoberta da verdade), a prova não é directa, mas indiciária. Ou seja, parte-se de um facto conhecido para inferir outros. Um conjunto de indícios, que isoladamente seriam circunstanciais, são usados para fazer a prova de factos. Só quando os juízes consideram que essa prova, ainda que indirecta, permite afastar a presunção de inocência é que se consegue uma condenação.
Quem são as testemunhas-chave para o Ministério Público?
Não há propriamente testemunhas-chave. Mas os depoimentos de alguns arguidos como do empresário luso-angolano Hélder Bataglia são importantes para o Ministério Público chegar a quem fez pagamentos ao amigo de longa data de Sócrates, Carlos Santos Silva, seu alegado testa-de-ferro. Foram as declarações deste suspeito que permitiram associar o dinheiro que chegou às contas de Santos Silva a Ricardo Salgado, ex-presidente do Banco Espírito Santo e líder do grupo com o mesmo nome. Bataglia contou num interrogatório, em Janeiro de 2017, que Salgado lhe pediu se podia “fazer um favor, porque tinha uns compromissos em que tinha de pagar cerca de 12 milhões de euros”. Questionado sobre se tinha conhecimento de que o destinatário era Santos Silva, o empresário diz que sim. “Ele [Salgado] perguntou-me se conhecia o Carlos Santos Silva e que era para entregar ao Carlos Santos Silva, exactamente”, citou a revista Sábado. O depoimento do empresário Paulo Azevedo, ex-presidente da Sonae (proprietária do PÚBLICO), sobre a dualidade assumida por Sócrates na altura da OPA sobre a PT também é destacada pelo próprio Ministério Público. O antigo ministro das Finanças de Sócrates, Campos e Cunha, que já disse no Parlamento que Sócrates fez pressão para afastar a administração da Caixa Geral de Depósitos presidida por Vítor Martins, foi ouvido pelos investigadores muito antes das primeiras declarações públicas sobre este assunto. Campos e Cunha referiu expressamente que Sócrates lhe sugeriu “os nomes de Santos Ferreira e António Vara”, que acabaram por ser escolhidos após a sua saída. Esta questão é relevante para o alegado pagamento de luvas para favorecer o empreendimento de Vale do Lobo nas condições de um empréstimo de perto de 200 milhões de euros concedido pela Caixa Geral de Depósitos.
O Ministério Público pode juntar factos novos depois de deduzir a acusação?
Não. A acusação é que fixa os factos que são objecto do processo. Podem é, em julgamento, ser apresentadas novas provas que comprovem os factos alegados, mas sempre com a justificação do que motivou a apresentação tardia daquele elemento. No julgamento, o Ministério Público ou o próprio tribunal podem, perante a prova produzida em audiência, pedir uma alteração não-substancial dos factos, alterando, por exemplo, a data de uma reunião ou de uma transferência. Mas se as defesas considerarem que a mudança é determinante, podem opor-se.
Quando é que o julgamento começa?
Nesta fase ainda não é sequer certo que haverá um julgamento. É isso que se irá decidir esta sexta-feira. No entanto, se o juiz Ivo Rosa optar por não confirmar integralmente a acusação, como tudo indica, a decisão instrutória deverá ser alvo de recurso, tanto da parte do Ministério Público como da parte das defesas. E é expectável que essa decisão do Tribunal da Relação de Lisboa demore, pelo menos, um ano. Mas poderá ser necessário mais tempo. Depende do número de recursos apresentados e do conhecimento dos autos da Operação Marquês que os magistrados tiverem. Já foram feitas dezenas de recursos e quase todos os juízes da parte criminal da Relação de Lisboa tiveram contacto com o caso, mas, por vezes, as questões levantadas eram muito específicas e não implicavam um conhecimento profundo do processo.
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