Brasil ouve especialista português para articular ações contra as drogas

Desafios vão da polarização política à dimensão continental do país. Ministros do Supremo e outras autoridades brasileiras ouviram o doutor João Goulão, referência mundial no assunto.

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Para o doutor Joao Goulão, presidente do ICAD, o estigma é um grande obstáculo para as políticas de enfrentamento das drogas. "Ao tratar usuários como criminosos, afastamos essas pessoas dos cuidados de que precisam", diz Miguel Manso
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A luta contra as drogas no Brasil enfrenta uma encruzilhada desafiadora. Para o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a polarização política pode dificultar os avanços necessários, mas o tema é de tamanha relevância que não pode ser prejudicado por disputas ideológicas. "É um assunto que exige seriedade e um consenso baseado em evidências científicas. Precisamos olhar para experiências bem-sucedidas, como a de Portugal, e construir soluções adaptadas à nossa realidade", afirma.

O Brasil deu recentemente um passo importante ao descriminalizar o uso pessoal de maconha em quantidades inferiores a 40 gramas, mas especialistas apontam que a mudança precisa ser complementada por políticas públicas integradas. Foi nesse contexto que o presidente do Instituto dos Comportamentos Aditivos e Dependências (ICAD), doutor João Castel-Branco Goulão, referência mundial na abordagem de dependências e idealizador da política portuguesa de descriminalização das drogas, foi ao Brasil para compartilhar sua experiência e colaborar com o STF, o Ministério da Justiça e outros órgãos.

Em entrevista ao PÚBLICO Brasil, Goulão explica que a política portuguesa, implementada em 2001, baseia-se em uma abordagem integrada, que prioriza a saúde pública e a inclusão social. "A descriminalização em Portugal não significa a legalização. O uso de drogas continua proibido, mas foi retirado do âmbito criminal e tratado como uma questão de saúde. Criamos as comissões para a dissuasão da toxicodependência, que avaliam as necessidades dos usuários e os encaminham para tratamento ou outras medidas de apoio", diz.

Goulão destaca que o sucesso do modelo português depende de uma estrutura robusta de saúde pública e do envolvimento de equipes multidisciplinares. "São profissionais da saúde, psicólogos, assistentes sociais, que trabalham em conjunto para oferecer alternativas reais aos usuários. É um sistema que promove a redução de danos, o tratamento e a reinserção social",ressalta.

Dimensão do Brasil

O ministro Gilmar Mendes reconhece a relevância desse modelo e aponta a necessidade de adaptá-lo à realidade brasileira. "O Brasil é um país continental, com mais de 220 milhões de habitantes. Implementar algo semelhante ao modelo português exigirá coordenação entre União, estados e municípios. Felizmente, temos o SUS como uma estrutura integrada, que pode ser fundamental nesse processo", destaca.

A secretária Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad), Marta Machado, também está empenhada em levar adiante essa agenda. Segundo o ministro Gilmar Mendes, Marta visitará Portugal no próximo mês para conhecer de perto as iniciativas de saúde pública ligadas ao combate às drogas. "A troca de experiências é essencial para adaptarmos soluções que já deram certo a um contexto tão desafiador quanto o nosso", comenta.

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Para o Ministro Gilmar Mendes, do STF, como uma estrutura integrada, o SUS pode ser fundamental na política de enfrentamento das drogas Nuno Ferreira Santos

Além das reuniões com ministros do STF e com o Ministério da Justiça, Goulão participou de debates com a Senad e técnicos de várias universidades brasileiras. O especialista enfatiza que a adoção de uma abordagem integrada não apenas reduz o estigma associado ao uso de drogas, mas também facilita o acesso dos usuários ao sistema de saúde. "O estigma é um grande obstáculo. Ao tratar usuários como criminosos, afastamos essas pessoas dos cuidados de que precisam", alerta.

Experiência portuguesa

Outro ponto de destaque é o impacto positivo da política portuguesa nos indicadores de saúde e segurança pública. Em Portugal, as mortes por overdose e as infecções pelo HIV relacionadas ao uso de drogas caíram drasticamente após a implementação do modelo criado por Goulão. "Esses resultados reforçam a importância de tratar o problema como uma questão de saúde pública e não apenas de repressão policial", ressalta o médico.

A iniciativa brasileira de buscar inspiração no modelo português marca uma mudança de paradigma no enfrentamento ao problema das drogas. Apesar dos desafios políticos e estruturais, há um consenso crescente entre especialistas e autoridades de que soluções baseadas na saúde e na inclusão social são mais eficazes. "É um trabalho de longo prazo, mas necessário. O Brasil tem muito a aprender com Portugal, mas também tem potencial para construir um modelo próprio, adaptado à sua realidade", diz Goulão.

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