O alvarinho como guia de viagem e companheiro de estrada, entre Monção e Melgaço
A casta mais famosa de Monção e Melgaço nem sempre dominou. É coisa de visionários que lhe viram potencial para grandes vinhos. Hoje são os vinhos que dão fio condutor à exploração o vale do rio Minho
A história tende a lembrar os pioneiros, ainda que de início a inovação seja vista com estranheza e desconfiança. Anselmo Mendes sabe-o bem. Quando começou a fermentar alvarinho em madeira, em 1987, chamaram-lhe louco. Hoje reconhecem-lhe a mestria, ao ponto de lhe darem o epíteto Senhor Alvarinho.
“Acabei o curso de agronomia em Lisboa e comecei logo as minhas primeiras experiências com uvas dos meus pais em fermentação em madeira, o que era uma heresia total”, recorda o produtor e enólogo, natural de Melgaço. Só dez anos depois viria a comprar uma pequena quinta de encosta para desenvolver um projecto em nome próprio, onde nasceu o seu icónico Muros de Melgaço, fruto de uma década a aprimorar a fermentação em barrica, para que não marcasse o vinho, apenas lhe dessa complexidade.
Não tardou até que a inquietude e a curiosidade o fizessem voltar às experiências, primeiro com a curtimenta, e agora mais dedicadas aos vinhos de parcela e ao estudo dos solos, assim como à revitalização das uvas tintas que outrora dominaram o território: o alvarelhão, o pedral, o verdelho tinto.
O alvarinho, casta-estandarte da sub-região de Monção e Melgaço, ocupa a totalidade dos 50 hectares de vinha da sua Quinta da Torre, mas nem sempre foi assim. “Hoje a fama desta região é o alvarinho, mas já foram os vinhos tintos, nos séculos XIV, XV e XVI. Na Guerra dos Cem Anos os ingleses quebraram as relações comerciais com França e foram à procura de um vinho que fosse como o que eles importavam de Bordéus, e encontraram-no aqui. Chamavam-se a esses vinhos parduscos, por terem pouca cor”, conta Anselmo. “A Quinta da Torre era uma das casas onde se produziam também esses vinhos tintos que depois eram exportados para Inglaterra.”
A antiga adega onde eram produzidos estes tintos para os ingleses faz agora parte do circuito de visita da Quinta da Torre, aberta ao enoturismo no ano passado. A antiga casa dos caseiros foi transformada em cinco suítes modernas e aconchegantes, para acolher quem ali queira prolongar a visita. Coisa fácil de se querer, tanto pelos cenários bucólicos da propriedade – o antigo moinho, as levadas, o jardim de camélias, agora a florir, ou o rio Gadanha, a banhar os limites da quinta –, como pelo sossego.
Entrar ali é conhecer o mundo de Anselmo Mendes, o curioso, o sonhador e o criador de vinhos. Sempre foi um apaixonado pelos mistérios da natureza. Em criança, levava horas a fazer o pequeno trajecto desde a casa dos avós até à dos pais, porque ficava a medir o crescimento das plantas que encontrava no caminho “Já metia água numa e noutra não, só para ver a diferença. O que havia por detrás daquilo fascinava-me. Adorava a agricultura, o meu sonho era ser um agricultor mais evoluído”, conta.
No solar com 600 anos, onde existe uma sala de provas privada – a principal situa-se num edifício junto aos espigueiros, por baixo da loja, e tem vista panorâmica sobre as vinhas –, Anselmo instalou o seu futuro laboratório experimental, onde já repousam algumas garrafas para testes. “Não consigo estar sempre a fazer o mesmo”, confessa. “Na verdade, sou um experimentalista sem limite.” A prova está à vista, e o proveito é nosso. Já no início do próximo ano chegarão novidades.
Clássicos que perduram
Maria Hermínia d’Oliveira Paes também não se deixou demover pelas críticas, quando em 1964 decidiu plantar alvarinho em redor do Palácio da Brejoeira, ainda as uvas tintas eram predominantes.
O palacete oitocentista que lhe foi oferecido pelo pai, como presente de aniversário pelos seus 18 anos, acusava já necessidade de manutenção, e a produção de vinho pareceu-lhe uma forma viável de obter rendimento para custear as obras. “Ela percebeu que nesta região se produzia um vinho branco que se guardava e só se abria nas festas”, comenta Cláudia Fernandes, responsável de relações públicas do palácio.
Maria Hermínia viu no alvarinho o potencial de se transformar num produto rentável e não hesitou. “Na altura, foi considerado uma loucura, ainda por cima ela não começou com dois ou três hectares, começou com doze”, nota Cláudia. Na vanguarda muito antes de ali se produzir alvarinho, o palácio recebeu electricidade e telégrafo seis anos antes de toda a região. “Faziam-se excursões à Brejoeira para ver a magia das luzes”, conta.
As visitas ao património são ainda um dos principais chamarizes, e os interiores exuberantes do palácio justificam o interesse. Uma das primeiras salas que faz soar exclamações é o teatro familiar, equipado com cenários diversos e até um fosso de orquestra, e belíssimos tectos trabalhados a estuque. Mas o vinho que Maria Hermínia fez nascer ali é talvez o seu maior legado.
A primeira garrafa de alvarinho Palácio da Brejoeira foi para o mercado em 1974, com o apoio de enologia de Amândio Galhano, e é ainda hoje um ícone da sub-região – há quem defenda que a notoriedade do alvarinho começou aí, com a visão vanguardista da senhora da Brejoeira.
O tamanho da exploração pouco alterou, está hoje nos 18 hectares, de onde se retiram 80 mil garrafas anuais, um número muito aquém da capacidade da vinha, mas justificado pelo facto de apenas usarem a primeira prensagem da uva. O resto é utilizado para fazer aguardente vínica, que envelhece em barricas de madeira na antiga adega, cujos arcos e pilares denunciam ter tido a função primordial de igreja.
“Não fazemos grandes mudanças no nosso vinho, é exactamente o vinho que ela sonhou. Estamos a produzi-lo tal e qual como ela decidiu que ia produzi-lo quando lançou a primeira garrafa. Somos mais conservadores do que propriamente modernistas”, assume Cláudia.
O rótulo transmite isso mesmo, e não deixa dúvidas ao que vamos encontrar: um alvarinho de perfil clássico, elegante, que respeita a identidade da casta, sem artifícios. A consistência desta abordagem mais purista tem garantido ao Palácio da Brejoeira lugar firme entre as dezenas de marcas que surgiram posteriormente.
Depois dos primeiros encepamentos de alvarinho, rapidamente se seguiram outros, motivados pela crescente valorização da casta, cobrindo a paisagem de Monção e Melgaço com essa uva branca. Em 1992, um conjunto de pequenos produtores com necessidade de escoar a sua produção fez nascer a Provam.
Hoje, a adega recebe uvas de mais de 100 hectares de vinha, na sua maioria alvarinho, que origina o Portal do Fidalgo e outras referências que o produtor dá a conhecer na sua recente sala de provas. O espaço acolhe ainda eventos gastronómicos, refeições por reserva e workshops das mais variadas artes e ofícios conjugados com o vinho. As crianças também são bem-vindas e podem acompanhar os adultos numa prova de mosto ou sumos.
A quem de idade sugere-se provar o Portal do Fidalgo 25 anos, uma edição especial, lançada a propósito do 25.º aniversário da marca, feita em homenagem às mulheres da região, que ficaram a cuidar da terra quando os homens emigraram. “Não sabiam fazer brancos e faziam-no como um tinto”, esclarece o enólogo Abel Codesso. É por isso, um alvarinho de curtimenta, com estágio de um ano em barricas de carvalho francês.
Outra estrela da constelação Provam é o espumante Côto de Mamoelas, com 36 meses de estágio e bolha fina e delicada. “Fomos dos primeiros a fazer espumante de alvarinho”, orgulha-se o enólogo, avançando o lançamento de um novo espumante, com oito anos de estágio, previsto para a Páscoa. Felizmente, a espera será breve.
As estrelas, em garrafa
Enquanto aguardamos, continuaremos bem servidos com a lista de espumantes da cervejaria O Conventual, recém-aberta em Melgaço. O paradoxo “espumantes numa cervejaria” é explicado pelo proprietário, Filipe Vieira. Depois do sucesso da sua primeira casa, a Tasquinha da Portela, na aldeia de Paderne, onde dá palco a praticamente todos os produtores da sub-região – a garrafeira contempla mais de 400 vinhos, na sua maioria alvarinhos de Monção e Melgaço, mas também há referências de outras regiões –, quis abrir um espaço diferenciado, daí as cervejas.
Como orgulhoso melgacense que é, porém, não se desprendeu das raízes: eis então os espumantes de alvarinho. Em ambos reconhece um ponto comum: bebem-se em ambiente de celebração e partilha. “Cerveja e espumante para mim é celebrar, é um final de dia com os amigos a comer uns petiscos”, explica.
Os petiscos de que fala chegam à mesa numa bandeja composta por moelas, orelha fumada, bolinhos de bacalhau, ovos com farinheira, salada de grão-de-bico e bacalhau, entre outros sabores tradicionais, que vão variando consoante os produtos disponíveis. Em alternativa, há uma bandeja vegetariana, e outra só do mar. Para um aconchego extra, sugere-se a aveludada sopa de cerveja e, em querendo consistência, o bife de atum em bolo do caco, a francesinha ou o hambúrguer de cachena.
Tudo vai bem com espumante, assegura Filipe, mas as cervejas artesanais também são companhia à altura. Há-as de diversas origens e estilos, e até uma feita a partir de mosto de alvarinho, a Mesmo Boa. A expressão pode também ser aplicada às sobremesas, criação da filha Dina, que acerta em cheio na química dos ingredientes, como comprova o suave e fresco cheesecake de limão-caviar com cerveja St. Bernardus.
Cerveja e espumante são, portanto, os pilares líquidos d’O Conventual. Ainda assim, porque há quem pede, todas as semanas Filipe traz dois alvarinhos da garrafeira da Tasquinha para servir ali. Como dizíamos, as inovações levam tempo a entranhar.
Bacalhau e alvarinho
Foram os desejos dos clientes que fizeram a garrafeira da Adega Sabino ganhar proporções incomuns. “Vinham cá e diziam, ‘Oh Sabino, você devia ter este vinho do Alentejo. Oh Sabino, podias ter este vinho do Douro. Sabino, e este do Dão?’ Pediam e eu mandava vir”, recorda o anfitrião Manuel Augusto Castro, mais conhecido por Manuel Sabino, para admitir: “Os clientes é que me fizeram a garrafeira.”
As garrafas preenchem todas as paredes da casa, em convivência com recortes emoldurados e fotografias, criando um ambiente aconchegante. Manuel não se coíbe de ter vinhos de todo o país, mas exibe com orgulho o traje da Confraria do Alvarinho, da qual é membro. É, afinal, um promotor do vinho e da comida regionais. “Alvarinhos, não tenho das adegas todas porque são muitas e não tenho espaço, mas tenho uma boa selecção”, assegura.
Manuel e a mulher Odete Costa comandam os desígnios da Adega Sabino, instalada em frente à Câmara Municipal de Melgaço, desde 1993, já a casa tinha 50 anos de história. “Os meus avós é que fundaram isto. Começou como uma taberna daquelas com mercearia, onde se vendia o feijão, a farinha e o vinho a granel”, conta. Quando assumiram o espaço, os pais de Manuel começaram a servir petiscos e alguns pratos, elevando o negócio a casa de pasto. “Há sexta-feira acendia-se o fogareiro e fazia-se sardinhas assadas.”
Do receituário de então, ficou o bacalhau à Sabino, frito e servido com farta cebolada e batata frita às rodelas. “Os espanhóis procuram muito o bacalhau”, reconhece, mas também “já se habituaram a outros pratos”, mais populares entre os portugueses, como o cabrito assado ou o naco de vitela. Para facilitar a escolha do que vai no copo, as sugestões da casa vêm descritas na ementa: para acompanhar o cabrito, um espumante de alvarinho, e o bacalhau à Sabino pede um blend de alvarinho e trajadura.
O fiel amigo é também um dos pratos mais procurados da Adega do Sossego, que após dois anos de interregno, reabriu recentemente, com nova gerência. Fábio Sousa, um dos elementos da dupla que reanimou a casa, assumiu o comando da cozinha, onde confecciona o receituário passado pela antiga cozinheira e proprietária, do qual faz parte o bacalhau na brasa, servido com batata cozida, grelos, cebola e um generoso fio de azeite.
Os pratos de época como a lampreia – muito afamada nesta casa – e o sável frito também prometem regressar, a par de outras sugestões que vêm refrescar a carta, de que são exemplo os croquetes de carnes do cozido recheados com queijo da Serra.
Nuno Miguel, o outro rosto da renovada Adega do Sossego, tratou da lista de vinhos, onde continuam a ter lugar seguro o vinho alvarinho e o espumante da casa, ainda produzidos pelo antigo proprietário do restaurante, que começou por ser um café à face da estrada, onde se serviam petiscos e vinho.
Quando os clientes habituais começaram a pedir um lugar mais sossegado para passar os serões, foram encaminhados para a antiga adega da casa – hoje a sala inferior do restaurante, de paredes em pedra e ambiente rústico –, que passou a ser apelidada de Adega do Sossego. E mais uma vez, foram os clientes a fazer a casa.
Conhecer o território
Ainda que apeteça prolongar a refeição no conforto de qualquer uma destas mesas, o muito que a região tem para oferecer impele-nos a continuar o passeio. Um bom ponto de partida, para tomar o pulso à oferta enoturística do concelho de Melgaço e, de caminho, conhecer o centro histórico, é o renovado Solar do Alvarinho. Entrando na muralha da vila, e seguindo pela Rua Direita, não tardamos a encontrar o edifício seiscentista de três arcos que já foi Câmara Municipal, cadeia, tribunal, biblioteca e desde 1997 é a casa do alvarinho de Melgaço.
O espaço, remodelado no ano passado, exibe agora uma disposição mais elegante e ampla. No primeiro piso, em jeito de mezanino, com abertura para o andar inferior, estão representados em expositores todos os 28 produtores de alvarinho do concelho, por ordem de antiguidade – o primeiro a engarrafar foi o Soalheiro, em 1982 –, com informações sobre a história das quintas, as características dos vinhos, e os programas de enoturismo disponíveis, para orientar quem sair dali com vontade de passear pelas vinhas ou entrar numa adega. Há ainda alguns expositores vazios, em antecipação dos projectos que hão-de nascer.
Descendo a escadaria em espiral, desaguamos num espaço híbrido, que é ao mesmo tempo loja com todos os monovarietais de alvarinho produzidos em Melgaço, uma sala de provas onde há sempre dois vinhos em rotação e bar, caso apeteça acompanhar um copo de vinho com broa típica e uma tábua de enchidos e queijos de produção local. Os queijos são da Prados de Melgaço, a única queijaria do concelho, fundada em 2015 por Verónica Solheiro e o marido Marco Sousa, que deixaram a vida na cidade para regressar à terra de origem.
O casal acredita que só com animais tranquilos se consegue leite de qualidade, para fazer o melhor queijo, por isso, para garantir o bem-estar do seu rebanho, têm música relaxante a tocar em permanência no capril, e escovas mecânicas que rodam quando os animais se aproximam para se coçarem. “Quanto mais relaxadas estiverem, mais e melhor vão produzir”, defende Verónica.
O leite destas “cabras felizes” dá origem a variados queijos, frescos e curados, incluindo alguns casamentos com alvarinho, como o camembert (maturado em vinho) e o curado de pimentão (a massa de pimentão vermelho que envolve o queijo é dissolvida em vinho de alvarinho).
Estas sinergias também chegam às adegas, em iniciativas que fortalecem os laços entre diferentes projectos locais. Na Quintas de Melgaço, por exemplo, os queijos da Prados já integram os cabazes de Natal e as tábuas de produtos locais servidas nas provas de vinho, que acontecem na grande sala envidraçada onde repousam os espumantes da casa.
A adega cooperativa, fundada em 1994 por Amadeu Abílio Lopes, emigrante regressado do Brasil com o sonho de unir os produtores de uva do concelho sob o mesmo estandarte, conta com o contributo de 530 pequenos produtores para dar forma ao seu extenso portefólio.
Falando em parcerias que dinamizam a economia local, a adega disponibiliza programas de enoturismo que conjugam as provas dos seus vinhos com actividades de turismo de natureza, como passeios de buggy ou moto-quatro com a Melgaço Whitewater, que também leva os mais aventureiros em descidas de rafting no rio Minho. As pesqueiras, muros rochosos utilizados desde há séculos para a pesca da lampreia, são responsáveis pela formação de rápidos ao longo do rio, tornando-o lugar de eleição para a modalidade, até porque o caudal abundante permite fazê-la durante todo o ano.
Para quem preferir manter os pés fora de água, é igualmente recomendável fazer os Percursos Marginais do Minho, um trilho que começa na muralha de Melgaço e segue encosta abaixo até ao rio, acompanhando os seus contornos até ao Parque das Termas do Peso. O passeio é embalado pelo som do vento na folhagem das árvores que revestem a margem esquerda, e o cenário emoldurado pela vegetação mostra a Galiza, sempre ao nosso lado. Para lá do rio Minho já são outras terras, mas o sonho do alvarinho (ou albariño) continua.
Este artigo foi publicado na edição n.º 14 da revista Singular.
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