O Coração Ainda Bate. A luz que não se apaga

Um Natal que podia ser com(o) os outros.

Numa destas noites, preparada para ir dormir, vim à sala e, quando ia apagar a luz, vi que só a árvore de Natal continuava iluminada. Um silêncio, maior do que o próprio silêncio pode descrever, fez-me ficar uns minutos encostada à parede a ver a árvore assim. O meu mundo podia ser por momentos só isto e o que esta imagem conta. O que se diz no silêncio, e que nem sempre cabe em palavras, é de uma imensidão que a cabeça quase não comporta.

Há muitos anos fomos comprar esta árvore. Ainda a minha filha se agarrava às nossas mãos. Mergulhámos num horto cheio de coisas viçosas e outras como esta, fabricada, que se podem guardar e que ganham uma dimensão maior por contarmos com ela. A árvore que se desdobra e todos os anos se monta, e depois se guarda de novo, já nos podia contar. Já podia dizer muito desta família que também ela se desdobrou. Quinze anos depois, a árvore é um álbum de retratos somados. Perdê-la seria perder parte da nossa história.

Há duas décadas que passo o Natal com o pai da minha filha. Esse talvez seja um dos maiores presentes que quero guardar e preservar. No álbum de retratos imaginário estamos lá atrás no tempo ainda sem filha, depois com ela, depois já separados (mas presentes nesta noite), depois já com vidas diferentes (mas todos juntos). Este ano será assim também. E a festa que é só nossa, tão nossa e particular, repete-se: sem luxos, a não ser o maior de todos: continuarmos aqui juntos para contar a nossa história. O que fica depois do amor é ainda este amor, o que junta à mesa os que foram amantes e amados e que continuam a ser um braço, vários braços, muitos ramos desta árvore.

Para lá do que muito se apregoa do que é e pode ser o Natal, do que gostávamos que fosse, sabendo que à mesa muitos mantêm o privilégio, bom era guardar o melhor do amor até quando ele já ganhou novas formas. Era bom que o Natal pudesse ser o lugar onde se institui que o rancor e o azedume que veio com o tempo e com a erosão se diluísse nessa noite e ficasse o resto do ano todo. Que as pessoas pensassem seriamente que (se) se amaram antes não podem ter resumido tudo a um equívoco depois. Os amores não são equívocos se geraram filhos, árvores de Natal, espaços pensados, mesas postas, brindes erguidos, mesmo que mais tarde desfeitos. Nada foi em vão se duas pessoas se uniram e deram lugar a mais uma, a várias, que foram uma família nem que seja apenas na certidão, mas com a certeza do nascimento.

O Natal, que não apaga fogos nem guerras, nem reconstrói vidas dizimadas, podia ser o lugar e o tempo para todos os que, tendo comida e saúde, pensassem que podem voltar a por amor à mesa: uma toalha estendida que escolhe com dedicação os lugares, o guardanapo dobrado, o prato preferido. Um nome que não foi apagado.

Como podemos seguir com as nossas vidas se as pessoas que fizeram parte dela são intencionalmente esquecidas quando um dia estiveram aqui sentadas? Não, o Natal não é isto. O Natal não traz a paz ao mundo, mas pode trazer a paz ao nosso mundo e podemos evocar os que amámos e que não devemos largar, mesmo que a vida se tenha complicado e nos tenha desenhado obstáculos quando antes passeávamos juntos do mesmo lado.

A árvore de Natal é esta luz que não se apaga.

Encostada à parede fico retida neste silêncio que está cheio de boas memórias. E sigo somando mais uma e outra.

A árvore conta-nos. Daqui a uns dias somo-lhe a nostalgia de mais um ano passado, mas com a certeza de que sigo junta com os que amei e todos os que de novo aqui chegam.

O coração ainda bate.

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