Quando é que não beber álcool se tornou algo extremista?

Nunca me passaria pela cabeça perguntar a alguém porque é que não fuma, mas toda a gente acha que tenho de ter uma boa explicação para não tomar bebidas alcoólicas.

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"Quando o assunto é o consumo de bebidas alcoólicas, os opostos não se atraem" Ron Lach/pexels
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Há dias, num restaurante de Lisboa, bebi um Riesling 2023 da Kolonne Null, marca de Berlim que produz vinhos não alcoólicos em parceria com casas vinícolas premiadas. Para muitos portugueses que, estranhamente, se orgulham de sermos recordistas mundiais do consumo de vinho per capita, um vinho desalcoolizado pode parecer coisa de totós, mas é uma descoberta maravilhosa para quem não quer ou não pode consumir bebidas alcoólicas. É, desde logo, uma experiência que desafia mitos sobre estes vinhos: não são “sumos de uva”, como afirmam alguns detratores; são vinhos que concluíram a sua fermentação, mas passaram depois por um processo que lhes retira o álcool preservando os aromas. Em sentido contrário aos vinhos tradicionais, é um mercado em crescimento e ainda bem, porque oferece mais uma opção para quem não quer/pode consumir álcool.

É uma boa notícia para solteiros abstémios como eu, porque não é fácil a vida de quem chega a um encontro e não quer beber nada alcoólico. Pede-se uma Coca-Cola Zero ou uma soda orgânica de pequenos produtores como a Why Not ou a Wostok e, não raras vezes, acabamos a ver o desânimo assomar ao rosto da mulher que estamos a conhecer. “Não me acompanhas num vinho? Que pena. Sendo assim também não vou beber.” Com toda a naturalidade, assume-se que beber, uma necessidade humana, é sinónimo de colocar álcool no nosso organismo. Depois vem a pergunta sacramental: “Mas não bebes porquê?”, como se houvesse algo de errado connosco. Nunca me passaria pela cabeça perguntar a alguém porque é que não fuma, mas toda a gente acha que tenho de ter uma boa explicação para não beber. O encontro ainda mal começou e já se tornou constrangedor: ninguém quer sentir que, ainda que indiretamente, está a privar a outra pessoa de algo que lhe é prazeroso.

Aparentemente, quando o assunto é o consumo de bebidas alcoólicas, os opostos não se atraem. Já perdi conta às mulheres que confessaram algum desalento por saberem que eu não bebia álcool, com o argumento de não gostarem de beber sozinhas. Sou talvez ingénuo por pensar que as minhas escolhas pessoais não interferem com a liberdade dos outros, mas esta semana, na minha conta de Instagram, quis levantar um pouco mais o véu sobre este tema. Perguntei às mulheres que me seguem o que é que pode desmotivá-las num homem que não bebe álcool e as respostas foram surpreendentes. Há quem goste de beber um bom vinho e prefira ter com quem o possa partilhar. Quem não queira pedir uma garrafa só para si, como se não houvesse cada vez mais e melhores opções de vinho a copo. Quem tenha receio de ser julgada “por beber um copo a mais” ou ficar menos atraente aos olhos de alguém sóbrio. Quem ache que não beber álcool é “algo extremo”, que “denota muita rigidez”, porque “há bebidas alcoólicas para todos os gostos” (aparentemente, devemos ser flexíveis nas nossas escolhas, mas não ao ponto de querermos beber algo sem álcool…). E há ainda quem considere que um homem que não bebe vinho “vive num patamar de futilidade, típico de uma criança”, mas é preciso dar um desconto a este argumento porque pode ter sido expresso logo depois de um jantar de Natal. Se há coisa que invejo em quem não é abstémio é o álibi perfeito que o álcool oferece para todos os disparates.

Felizmente, houve muito mais gente a expressar admiração por quem resiste à pressão social para consumir bebidas alcoólicas, mas intriga-me como é que chegamos aqui, a este ponto em que beber álcool é a norma? Até quando vai continuar a ser uma droga socialmente tolerada e até promovida, pese embora a elevada taxa de alcoolismo que existe em Portugal e todos os problemas de saúde associados ao seu consumo abusivo? Até quando iremos repetir a mentira de que beber um copo de vinho por dia faz bem à saúde? Até quando nós, abstémios, seremos olhados como bichos raros, “obrigados” a justificar ad nauseam esta bizarria de não consumirmos bebidas alcoólicas?

Deixar de beber álcool foi das decisões mais fáceis que tive de tomar na vida. Estava a estudar Jornalismo em Coimbra e as ressacas tinham-se tornado cada vez mais difíceis. Numa das ocasiões, por altura da Queima das Fitas, estive dois ou três dias sem conseguir manter nada no estômago, nem mesmo líquidos, e acabei por procurar ajuda médica. Depois da endoscopia, veio o diagnóstico: esofagite de refluxo. E depois do diagnóstico, veio a sentença: ou fazia uma cirurgia ou deixava de consumir álcool, café, bebidas cítricas e outros alimentos. Muita gente espera que tenha sido uma decisão envolta em grande dramatismo, mas foi uma escolha relativamente simples. Seria muito pior se me dissessem que não podia comer doces ou beber uma Coca-Cola.

Já me imagino no próximo encontro a pedir um copo de vinho para ela e um copo de Riesling 0% álcool para mim. Com um pouco de sorte, se ela perceber pouco de vinhos e quiser provar o meu, não dará pela diferença. Se me descobrir a carapuça, vou responder-lhe: “A minha mulher não gosta que chegue a casa a cheirar a álcool. Dá-me licença que tenho de ir à casa de banho.” Se quando voltar ainda estiver sentada à minha espera, talvez haja esperança.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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