Foi incomodativo, até para algumas pessoas à minha volta, ter começado a publicar livros. Já nem digo escrever, uma vez que todos o fazemos desde crianças. Escrevemos para expandir os sonhos, às vezes só o medo. Fui escrevendo porque sempre me fez sentido. Ou, citando Cesária Évora, interpelada sobre cantar descalça, “porque me apetece”. Fazemos porque assumimos o risco e o riso – necessário para tudo isto.
Durante anos as pessoas tomaram-me como aquela que fazia rádio. E estava tudo certo assim. Mais do que suficiente. Palavras bem medidas ao microfone, as canções acertadas. Discreta. Não quer dizer que não o seja agora. Sou exatamente a mesma de há 35 anos, quando comecei, apenas a vestir roupa maior. E a sentir-me também mais confiante. O risco dá-nos esse lastro. O risco é um suporte que nos atira para a ferida e nos salva mesmo quando saímos de lá a cambalear.
As pessoas que nos condenam, invariavelmente, querem mais da sua vida. Mas não arriscam. Aceitam a vida sem inquietações, da mesma forma que não mudam o destino de férias há duas décadas. Mesmo que não as faça felizes ou lhes traga desconforto. Mudar tem que se lhe diga. Às vezes, vale a pena escrever sobre o assunto.
As pessoas que me olham agora de forma diferente – é fácil identificá-las mesmo que elas achem que não – são as mesmas que me admiravam na rádio mas acham que escrever é só para alguns. Que estranho – penso eu, quando todos aprendemos a pegar primeiro no lápis, depois na caneta, depois fomos todos parar ao computador. A escrita tornou-se tão assustadoramente democrática, que já não há ninguém que cuspa folhas da máquina de escrever. Tomamos notas no telemóvel, raras vezes no glamoroso caderno amarfanhado no bolso e marcado pelo vinho e pomos em causa o outro, o escriba das noites longas e da vida amaldiçoada, quando também nós decidimos que podemos ver publicadas as nossas intenções. Às vezes são convicções ou confissões, mas, para os verdadeiros escritores, apenas ficções. É mais fácil validar o outro na ficção do que o audaz na confissão.
Podia dizer que compreendo as pessoas que temem ver o seu talento da escrita perigar nas mãos de um deus menor, mas era a mesma coisa que dizer que ninguém está habilitado a fazer um podcast. Podcast é uma palavra que por acaso não soa bem nem lida nem dita.
Se me sentisse mal de cada vez que alguém anuncia um podcast novo, eu também faço os meus, já não conseguia abrir o microfone. E, acreditem, é-me absolutamente indiferente, uma vez que todos temos uma voz e a podemos e devemos (!) usar. Como as mãos que escrevem e o coração que sente.
Por isso sim, escrevo também. Há ali um lugar de conforto para os que acham que, sendo eu da rádio, não sou mais do que uma radialista. E sou, de facto, da rádio, o meu lugar de eleição, mas sou da escrita ou da cozinha – se me apetecer. Como determinados intelectuais são do ginásio e se julgam atletas. Há uma gradação interessante para os que, de cima do seu oco pedestal, se julgam superiores aos outros. Sabendo eu que o jardineiro, tão conhecedor e sábio no que faz, nunca se põe em bicos de pé no seu relvado. Antes, deixa crescer no seu silêncio, a grande sabedoria que vem da sua humildade.
Vou aprender a jardinar. E a fazer muitas coisas mais. Se eu vier a público dizer que sou jardineira ou mondadeira serei olhada de lado? Os meus pares vão encarar-me com condescendência?
Sejamos razoáveis na análise: a escrita foi dos eruditos enquanto a literacia era só de alguns. Os que clamam pela literacia universal são os mesmos que depois vêm por em causa o seu alcance.
Eu já vivo no mundo em que o intelectual quer ser influencer, mas ainda não tem coragem de o assumir.
O coração ainda bate.