O poder transformador da educação

No conjunto das orientações globais, a Agenda 2030 tem sido uma estratégia poderosa para fomentar os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), situados claramente no contexto de influência.

Foto
Sob a égide da Unesco foi aprovada recentemente a Declaração de Fortaleza Francisco Romão Pereira
Ouça este artigo
00:00
08:37

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

No ciclo de políticas, proposto pelo britânico Stephen Ball como referencial das políticas educativas, o contexto de influência abarca os processos de regulação internacionais, nacionais e regionais, em articulação com os contextos de produção política (elaboração de textos políticos), da prática (organizacional, curricular e pedagógica), dos resultados esperados (efeitos) e de estratégia política (modo de análise conjunta dos quatros contextos anteriores).

Pela análise de tal modelo teórico, bem como dos demais procedimentos de regulação, cabe discutir se, na definição de políticas educativas, há ou não um denominador comum que pressupõe a existência de uma educação global.

A resposta será afirmativa se a linguagem cibernética, ligada à teoria geral de sistemas e à agenda global da educação, for dominante nos discursos e nas práticas educativos, mas, ao invés, a resposta será diferente se a linguagem do contexto e da identidade prevalecer na definição da educação como projeto, num determinado espaço e num tempo específico.

Na perspetiva de Stephen Ball, a regulação derivada do contexto de influência tem contribuído para a passagem de uma mudança baseada na decisão unitária de um determinado Estado para uma mudança centrada em decisões abrangentes, reguladas por organizações e redes transnacionais, supranacionais e internacionais.

Embora os cinco contextos do referido ciclo estejam interrelacionados, porque não são meras etapas lineares, há aspetos que necessitam de ser questionados, nomeadamente o que se entende por macrocontexto, reconhecendo-se a sua diversidade e o seu peso relevante na definição de políticas nacionais, face ao papel fulcral do Estado na conceção de políticas educativas e à valorização dos diversos fatores que podem identificar o que é realmente uma política pública de educação.

Por mais que a linguagem da performatividade, ligada à prestação de contas, à responsabilidade e à eficiência do desempenho, seja valorizada ao nível das políticas educativas, não é de menosprezar, por outro lado, o papel que a escola, associada à sua cultura, assume na interpretação e na tradução das políticas educativas, de acordo quer com a autonomia que lhe é, formal ou informalmente, consagrada, quer com as lógicas que etiquetam as práticas das salas de aula.

No conjunto das orientações globais, a Agenda 2030 tem sido uma estratégia poderosa para fomentar os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), situados claramente no contexto de influência.

É neste quadro que surge a Declaração de Fortaleza – Libertar o poder transformador da educação para um futuro pacífico, equitativo e sustentável, aprovada na reunião mundial sobre a educação, realizada de 31 de outubro a 1 de novembro de 2024, no Brasil, sob a égide da UNESCO e com o apoio do governo brasileiro.

A realização desta reunião foi considerada uma etapa decisiva para fazer da educação um elemento-chave para que os ODS sejam plenamente alcançados, em particular o quarto objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS 4), já que a educação é um fator determinante para o sucesso dos demais objetivos

No preâmbulo da Declaração de Fortaleza são destacadas seis considerações gerais:

1. Reafirmação da educação como um direito humano fundamental e um bem público, bem como de uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade, de acordo com o enunciado do ODS 4;

2. Declaração da educação como fator essencial que facilita e impulsiona a concretização de todos os ODS, havendo a necessidade de acelerar os respetivos planos de ação;

3. Constatação de que vivemos num mundo de rápida mutação, enfrentando múltiplas crises e variados desafios, com destaque para a mudança climática e para o agravamento da pobreza e das desigualdades sociais;

4. Preocupação face à gravidade da acutilante crise mundial da educação, visível quer no número elevado de crianças sem escolarização, quer pelos ataques frequentes e generalizados a alunos, docentes e instituições educativas;

5. Reconhecimento de que o investimento em educação não pode ser reduzido, devendo fazer parte de uma estratégia a longo prazo, dado que que revitaliza a economia, fomenta a resiliência e a inovação, reduz as desigualdades e promove a coesão social, os modos de vida sustentáveis, a paz e a segurança;

6. Assunção de que há ainda muito a fazer para dar prioridade à educação de qualidade, sendo fundamentais, nesse sentido, a vontade política, a colaboração multissetorial e as medidas direcionadas para os grupos onde é mais difícil chegar.

Depois de um texto enunciativo de princípios essenciais da Agenda 2030, a Declaração de Fortaleza integra várias medidas multissectoriais para que o poder transformador da educação seja reconhecido aos níveis internacional, nacional e regional, salvaguardando tanto a legislação, os valores e as normas culturais de cada país, como a cooperação alicerçada numa abordagem pangovernamental. Por conseguinte, os signatários comprometem-se com a valorização do poder de transformação da educação através de ações orientadas, de modo transversal, para estes cinco eixos estratégicos, brevemente sumariados nos seus aspetos mais centrais:

Clima e meio ambiente: Assegurar a sustentabilidade e a resiliência às crises nos sistemas educativos através da educação para o desenvolvimento sustentável, centrando-se na educação ecológica, adaptada aos contextos locais e aos desafios ambientais específicos, promovendo estilos de vida sustentáveis e envolvendo as comunidades na ação climática.

Paz e direitos humanos: Proteger as escolas, os alunos e demais intervenientes educativos de ataques em todas as circunstâncias; assegurar a continuidade da educação e o acesso de todas as crianças e jovens a uma educação de qualidade em situações de emergência; integrar a educação para a paz, os direitos humanos, a cidadania democrática e o desenvolvimento sustentável no currículo escolar, na formação de professores e nas ações a nível comunitário, para assim ser possível construir sociedades pacíficas e resilientes; abraçar a diversidade cultural e linguística; combater a violência dentro e fora das escolas; lutar contra o racismo, a xenofobia e todas as formas de intolerância, discriminação e violência.

Igualdade de género: Estabelecer mecanismos integrados e intergeracionais entre os ministérios, a sociedade civil e as organizações de juventude para criar espaços de aprendizagem inclusivos, seguros e equitativos, eliminando-se as barreiras à igualdade de género na e através da educação; adotar abordagens transformadoras de género em todos os níveis dos sistemas educativos e garantir a paridade de género e a não discriminação nos espaços de ensino-aprendizagem, bem como nos cargos de liderança.

Saúde, nutrição e bem-estar: Prestar serviços integrados de saúde, nutrição e bem-estar nas escolas; assegurar refeições escolares saudáveis e nutritivas; apoio à saúde física e mental dos alunos; promover uma educação sexual abrangente.

Ciência, tecnologia, inovação (CTI) e transformação digital: Investir em CTI e na transformação digital na educação com uma abordagem centrada no ser humano e baseada nos direitos humanos; promover parcerias intersectoriais entre o sector público, o sector privado, as instituições académicas e de investigação e as organizações da sociedade civil, para tirar partido da CTI e das tecnologias digitais, incluindo a inteligência artificial; partilhar recursos que estão na base de outras formas de aprendizagem e melhorar a equidade e a qualidade do ensino; melhorar o acesso equitativo e a qualidade da aprendizagem digital para colmatar o fosso que existe ao nível do uso das tecnologias em meio escolar; permitir percursos e experiências de aprendizagem flexíveis.

A parte final da Declaração de Fortaleza, de compromisso internacional pela implementação das medidas, é antecedida pela definição de uma agenda centrada em fatores fundamentais que visam acelerar o cumprimento do ODS 4, com foco nos seguintes aspetos: equidade e inclusão; educação de infância e aprendizagem fundamental baseada na língua materna, na adequação à idade e na abrangência das aprendizagens, incluindo o desenvolvimento cognitivo e a dimensão socioemocional; aprendizagem ao longo da vida e desenvolvimento de competências nos diversos percursos de escolarização; resolver, com urgência, a falta de docentes à escala mundial e tornar a docência numa profissão atrativa (melhorar os salários e as condições laborais, aumentar a segurança; promover um desenvolvimento profissional de qualidade, autonomia e a colaboração); reforçar a gestão/liderança participativa e democrática em todos os níveos de educação; atuar de forma mais equitativa e eficiente na educação mediante a mobilização de recursos nacionais, o aproveitamento de ajudas internacionais, a formulação de estratégias sustentáveis ao nível do financiamento e a mobilização intersectorial de recursos para a educação.

A Declaração de Fortaleza é, uma etapa fundamental para o cumprimento do ODS 4, identificando os seus signatários um balanço crítico acerca do que há ainda a fazer, a nível internacional, e com mais premência em muitos países que têm sido assolados por crises significativas nos respetivos sistemas educativos. Com efeito, a concretização dos ODS é sobremaneira pertinente para que a educação liberte o seu poder transformador na construção de um futuro pacífico, equitativo e sustentável.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Ler 2 comentários