É errado ensinar a dar o lugar?

Num transporte público, as crianças vão provavelmente reparar nas pessoas mais velhas, mas, cabe-nos a nós, pais, ajudá-las a fazer o exercício de imaginar que aquela pessoa pode estar exausta

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"A lição do “dar o lugar” é sobretudo ensinar a prestar atenção aos outros" EDUARDO MOSER/SANDRADESIGN
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Ana,

Odeio a expressão “no meu tempo”, que além do mais dá ideia de que já não contamos nada neste mundo, mas por uma vez vou usá-la.

Estou no comboio e vejo várias crianças sentadas, quando há pessoas de idade em pé. Estou suficientemente longe para não confrontar os pais com um sermão pedagógico ao estilo da tua Avó-Granny ou a gritar aos miúdos um “Dá o lugar à senhora!”, mas a cena está a pôr-me os cabelos em pé. Porque é evidente que é uma questão de pais — compete-lhes estar atentos ao que acontece à sua volta e explicar à criança que deve passar para o seu colo ou ficar em pé, porque tem mais energia e está em melhor forma física do que a senhora que se agarra com dificuldade ao varão.

Provavelmente se dissesse alguma coisa a estes pais, responder-me-iam que às grávidas e aos velhinhos já são atribuídos lugares, mas será que ao oficializarmos direitos, temos como efeito secundário a desresponsabilização individual? Qualquer coisa como “O Estado que trate deles?”.

Cá para mim, Ana, a lição do “dar o lugar” é sobretudo ensinar a prestar atenção aos outros e de, simultaneamente, tomarmos consciência de que podemos fazer a diferença, e que essa diferença conta mesmo nas coisas pequenas. Aliás a Psicologia Positiva veio provar o que sei por experiência própria desde pequenina — que uma “boa ação” traz felicidade e um calor especial ao coração (sei eu, e sabem os escuteiros, com as suas três boas ações por dia!).

Virá seguramente alguém argumentar que as crianças têm tanto direito a ir sentadas como um adulto, e que o meu discurso é retrógrado, mas, por acaso, acredito mesmo que a boa educação não tem nem tempo, nem modas. Estou velha?


Querida Mãe,

Não acho que o seu discurso seja retrógrado, nem que seja sintoma de velhice, e é super importante ir ajudando as crianças a legendar o mundo à sua volta. Porque elas reparam em muito mais do que aquilo que achamos.

No outro dia estava com a minha cadela à porta de um restaurante e passaram várias pessoas por mim. Todos os adultos seguiam em frente, mas todas as crianças, sem excepção, olharam para a Amora — enquanto eram arrastadas pelos pais, o olhar ficava fixo em nós. Algumas aproximaram-se e pediram para dar festinhas, outras continuaram o seu caminho. Mas repararam em mais do que os pais.

Num transporte público, elas vão muito provavelmente a reparar nas pessoas mais velhas ou com mais dificuldade, mas, cabe-nos a nós, pais, ajudá-las a fazer o exercício de imaginar que aquela pessoa pode estar exausta, que uma grávida pode estar enjoada.

No fundo, não digo treinar a empatia (porque a maior parte dos miúdos têm bem que chegue), mas legendar a empatia e mostrar-lhes uma coisa que elas não sabem: como devemos agir naquela situação. Como dar o lugar, como perguntar se quer ajuda, sem condescendência, como iniciar uma conversa com um estranho, e já agora como evitar ou atalhar uma conversa que é incómoda, como intervir numa situação de injustiça, como pedir ajuda, se precisar dela.

Ora todas estas competências resultado do exemplo que lhes damos, exemplo que, por sua vez, é uma consequência da nossa visão do mundo, da confiança (ou desconfiança) com que encaramos as outras pessoas, da postura que temos perante elas. E aquilo que as crianças serão depende destes momentos e destes pequenos gestos que vamos tendo e lhes vamos exigindo, por isso, sim, querida Mãe, percebo a sua indignação.

Beijinhos!


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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