Morreu o escritor Dalton Trevisan, Prémio Camões e um dos maiores contistas do Brasil

Famoso pela aversão à imprensa e pela sua vida de quase reclusão em Curitiba, o escritor que foi Prémio Camões em 2012 é considerado o maior contista moderno do Brasil.

Foto
Dalton Trevisan DR
Ouça este artigo
00:00
08:49

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Agora, que já não o podem importunar, Dalton Trevison, escritor brasileiro de culto, aceitou estar rodeado de pessoas. O seu velório, anunciou a sua agente, no longo obituário que lhe dedicou o jornal Folha de São Paulo, será uma cerimónia aberta ao público. "Tentamos dar o máximo de privacidade como era seu desejo", disse Fabiana Faversani, mas é bem-vindo quem quiser juntar-se para homenagear um dos maiores contistas do Brasil.

A morte de Dalton Trevisan, vencedor em 2012 do Prémio Camões, o maior galardão de língua portuguesa, foi anunciada pela família na rede social Instagram: "Todo vampiro é imortal. Ou, ao menos, seu legado é. Dalton Trevisan faleceu esta segunda-feira, 9 de Dezembro de 2024, aos 99 anos." Conhecido como O Vampiro de Curitiba, título de um livro de 1965 que se tornou a sua alcunha, Dalton Trevisan tinha uma lendária aversão à imprensa e viveu quase em reclusão em Curitiba, a capital do Paraná. A sua última entrevista data de 1972, lembrava esta terça-feira a Folha de São Paulo. O herói do seu livro que se viria a tornar famoso recebeu como nome de guerra “Nelsinho, o Delicado”. Também era vampiro.

O Vampiro de Curitiba, conto que na edição da portuguesa da Relógio D’Água tem cerca de 100 páginas, começa com uma interjeição: “Ai, me dá vontade de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo — beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai…”

Considerado o maior contista moderno do Brasil, mereceu estas palavras do júri do Prémio Camões quando lhe foi atribuído o galardão: "Dalton Trevisan significa uma opção radical pela literatura enquanto arte da palavra. Tanto nas suas incessantes experimentações com a língua portuguesa, muitas vezes em oposição a ela mesma, quanto na sua dedicação ao fazer literário sem concessões às distracções da vida pessoal e social.” Os seus contos conquistaram o mundo, com traduções para diferentes línguas, como inglês, espanhol, francês e italiano.

São várias as listas que aconselham as suas melhores obras. O escritor José Rentes de Carvalho, no prefácio da edição da Relógio D’Água, aconselha, além do conto que faz a capa, A Guerra Conjugal (1969), Mistérios de Curitiba (1968), O Rei da Terra (1972), O Pássaro de Cinco Asas (1974), A Polaquinha (1985), o seu único romance, e Novelas Nada Exemplares (1959), considerada, até há pouco, a sua primeira obra.

O seu melhor conto, entre mais de 40 obras, não será O Vampiro de Curitiba, mas convém-lhe como biografia, defendia a escritora Alexandra Lucas Coelho, numa reportagem em Curitiba realizada no ano seguinte à atribuição do Prémio Camões, quando era correspondente do PÚBLICO no Rio de Janeiro e foi à procura do “mais invisível escritor brasileiro”. A Noite da Paixão (1999) é apontado como o melhor conto do vampiro. “A sua Curitiba vai do vampiro Nelsinho a babar por carne de moça nos anos 50 à drogada que rouba por uma pedra agora, ao par de adolescentes que faz um aborto. É a cidade-rapina em que um homem morre à vista de todos, enquanto tudo lhe é roubado (Uma Vela para Dario). A cidade à beira-rio onde os bêbados lembram elefantes, lentos, disformes (Cemitério de Elefantes).”

"Escritor, um ser maldito"

​Nascido a 14 de Junho de 1925 em Curitiba, Dalton Jérson Trevisan licenciou-se em Direito e chegou a exercer advocacia, antes de se virar para os jornais e para a escrita. Foi jornalista especializado na área criminal e crítico de cinema. Começou a publicar em 1945, mas mais tarde renegaria os seus dois livros de juventude: Sonata sempre ao Luar (1945) e Sete anos de Pastor (1948). Foi na revista literária Joaquim, de que foi fundador e editor entre 1946 e 1948, que surgiu o material das suas primeiras obras. A publicação brasileira havia de tornar-se farol para toda uma geração de escritores, reunindo ensaios e contos de autores como António Cândido, Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade.

Noutra reportagem aqui publicada em 2020 — lembremos que Trevison é um escritor de culto —, a jornalista Isabel Lucas descrevia que Trevisan, tal como o vampiro das suas histórias, existia sorrateiro em Curitiba, cidade que trabalhava literariamente em textos cheios de ironia, violência, erotismo, com grande economia de palavras, muito próximos da poesia. Os protagonistas das suas histórias são pessoas à margem, uma “Curitiba menor", na designação de alguns críticos. Lembrava-se então uma das raras entrevistas que deu, publicada em 1968, em que Dalton Trevisan definia o seu trabalho como contista: “O escritor é uma pessoa que não merece nenhuma confiança. Um amigo chega e me conta as maiores dores; eu escuto com atenção, mas estou é recolhendo material para mais um conto. E eu sei disso na hora. Surge então a má consciência. Sei que estou fazendo assim e não desejaria fazer, mas não há outro jeito. O escritor é um ser maldito.”

​Depois do hiato que se seguiu às obras renegadas, lançou Novelas Nada Exemplares, no final dos anos 50, pelo qual recebeu o seu primeiro Prémio Jabuti de Literatura. Seis anos depois, chegou O Vampiro de Curitiba. Venceria mais três vezes o Jabuti, a última delas em 2011. Em 1996, recebeu o Prémio Ministério da Cultura de Literatura pelo conjunto da sua obra. Dividiu com Bernardo Carvalho o Prémio Portugal Telecom de Literatura em 2003 com o livro Pico na Veia. Com O Anão e a Ninfeta voltaria a vencer, em 2012, o Prémio Portugal Telecom, agora sozinho, na categoria de conto e de crónica.

No mesmo ano em que lhe atribuíram o Camões, foi também distinguido com o Prémio Machado de Assis, oferecido desta vez pela Academia Brasileira de Letras, igualmente pelo conjunto da obra. A academia classificou-o como "um dos mais importantes narradores da ficção brasileira contemporânea”, recordava esta terça-feira o portal de notícias da Globo. Trevisan, acrescenta a instituição, é “portador de uma linguagem predominantemente interiorizante, porém sensível às movimentações sociais", "um contista personalíssimo navegando contra a corrente institucional do conto".

As histórias de Trevisan chegaram à televisão e ao cinema brasileiro. A Guerra Conjugal, de 1969, por exemplo, foi adaptada ao cinema por Joaquim Pedro de Andrade, em 1975.

Dalton Trevisan esteve naturalmente ausente na cerimónia de entrega do Camões, que decorreu no Rio de Janeiro, tinha o escritor 87 anos, mas não recusou o prémio, que descreveu como “o prémio dos prémios”, e enviou uma mensagem: “Os muitos anos, ai de mim, já me impedem de receber pessoalmente o prémio. […] Nunca jamais pensei merecer tamanha distinção. A consciência das minhas limitações como escritor proibiu-me sonhos mais altos. E agora, sem aviso, o prémio Camões.” Como também escreveu o crítico literário Gonçalo Mira no PÚBLICO, o conto, o género literário que Dalton mais pratica, é em si mesmo um género quase marginal: “Que se tenha feito ler, que tenha granjeado elogios quase unânimes da crítica, a ponto de ter ganho em 2012 o Prémio Camões, são feitos notáveis para um contista.”

Dalton Trevisan sabe que a literatura está muito além da ética, recordou José Castello, escritor e crítico literário brasileiro, também depois da atribuição do Camões. “[Ele] não tem piedade de seus personagens. Não os desculpa, não os embeleza, nem ameniza seus horrores. Tampouco se dá ao trabalho de lhes poupar as aparências com o recurso das metáforas, ou dos paradoxos. Sua ficção caminha em direcção oposta a de outra magnífica contista de sua geração, a paulista Lygia Fagundes Telles, que escreve movida pela delicadeza e por uma gritante intuição. Dalton não: ele trabalha aos golpes, com força e precisão, como um escultor — ou, talvez mesmo, como um boxeador. Fosse poeta (talvez seja um poeta e ainda não consigamos ver isso), estaria mais próximo de alguém como João Cabral de Melo Neto, que foi um homem apaixonado pelo concreto, pelos ossos e pelas sínteses.”

Em quase 80 anos de carreira, lembrava recentemente a revista brasileira Quatro Cinco Um, Trevisan construiu uma trajectória singular na literatura brasileira, uma vez que reeditava constantemente os próprios escritos. No ano passado, deixou de renegar as suas duas primeiras obras, escritas pouco depois de fazer 20 anos, como a Sonata ao Luar, escreveu a revista Piauí quando o escritor fez 99 anos, no meio de outra reportagem em Curitiba. “Só para a Antologia pessoal”, lançada em Abril de 2023, lembrou a sua agente Fabiana Faversani, “a gente já mandou oitenta emendas dele para a editora.”

Sugerir correcção
Ler 1 comentários