Jorge Sampaio, o primeiro homem do leme da Aliança das Civilizações

Não necessitamos de mais “divisões militares”, mas sim de mais e melhor soft power para defrontar os desafios da segurança, do desenvolvimento e da paz. Uma Aliança das Civilizações 4.0 precisa-se.

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Estávamos em Fevereiro de 2007. Jorge Sampaio era então Enviado Especial do secretário-geral das Nações Unidas para a Luta contra a Tuberculose, uma nomeação que já vinha do tempo de Kofi Annan, e deslocava-se a Nova Iorque para o primeiro encontro com Ban Ki-moon que acabara de assumir funções. Mal aterrara em Newark, Sampaio ia a caminho das Nações Unidas (UN) quando uma chamada do embaixador espanhol em Lisboa, aludindo a um convite que lhe iria ser feito, o deixou intrigado, sem conseguir perceber do que se tratava. A fraca qualidade da rede não ajudou à comunicação e a entrada no Lincoln Tunnel comprometeu em definitivo aquela conversa inacabada, mas não aparentou ficar excessivamente apreensivo.

Chegado ao 38.º andar onde seria recebido por Ban Ki-moon, naquela sala icónica forrada a madeira que aparece em todas as fotografais oficiais, já finda a reunião, quando pareciam encaminhar-se para a saída, o secretário-geral num tom sussurrante, fosse devido à confidencialidade da matéria ou da parca exuberância dos seus dotes linguísticos, puxa Jorge Sampaio de lado, fazendo-o entrar para uma sala contígua, cuja porta dissimulada pela madeira das paredes se abriu e fechou, qual passagem secreta para o desconhecido.

Minutos depois saiam ambos pela mesma porta oculta, ar sorridente e cúmplice, denotando-se em Jorge Sampaio uma expressão que oscilava entre a perplexidade bem-disposta e alguma intranquilidade. Nessa ocasião, Jorge Sampaio não só vira a sua nomeação como Enviado Especial para a Luta contra a Tuberculose confirmada por Ban-Ki moon, como acabara de ser convidado para ser seu secretário-geral adjunto na qualidade de Alto Representante para a Aliança das Civilizações, cargo que ocupou até cessar funções, a seu pedido, em Fevereiro de 2013, quando passou o testemunho ao seu sucessor no V Fórum Mundial da Aliança das Civilizações que nesse ano teve lugar em Viena.

A Aliança das Civilizações (UNAoC), uma iniciativa saída dos escombros do sismo provocado pelo 11 de Setembro, pela invasão do Iraque e pelos atentados terroristas que se seguiram, mormente o de Madrid de Março de 2004, nasceu de um apelo lançado por Zapatero, então presidente do Governo de Espanha, na Assembleia Geral das UN em Setembro desse ano. Zapatero desafiou os seus pares a lançar uma aliança das civilizações entre o mundo ocidental e o mundo árabe e muçulmano, como forma de distender as tensões, prevenir e amenizar conflitos de ordem cultural e religiosa que, na esteira das políticas neoconservadoras e das teorias inspiradas no choque das civilizações de Samuel Huntington, moldavam a política internacional e dominavam as mentes, as percepções e as narrativas.

Tratando-se de uma iniciativa de soft power, mas cuja razão de ser era eminentemente política, Jorge Sampaio estava bem consciente dos escolhos e dos desafios que a UNAoC enfrentaria, não só por causa do conflito entre Israel e a Palestina, o qual, à época era visto por muitos como o verdadeiro nó górdio da polarização e das divisões entre as sociedades muçulmanas e ocidentais, mas também porque assentava numa visão algo voluntarista de que uma aposta forte no diálogo intercultural e inter-religioso produziria uma mudança significativa nas sociedades e nas relações internacionais.

Foi precisamente para sublinhar o alcance global da UNAoC e o seu carácter eminentemente político que o Alto Representante começou por recentrar o seu domínio de intervenção na promoção da “boa governação da diversidade cultural” insistindo no papel das políticas públicas, em particular no âmbito da educação, media, migrações e juventude que eram os quatro grandes domínios de acção da Aliança.

Conceber, montar de raiz esta plataforma onusiana de diálogo e cooperação e aos poucos aperfeiçoá-la e olear o seu funcionamento foi um processo complexo e moroso, ditado pela preocupação de articular princípios normativos universais com a diversidade das práticas, experiências e realidades locais, por uma abordagem negociada e inclusiva e pela prioridade dada às parcerias e cooperações com um leque, virtualmente infinito, de actores susceptíveis de reforçar e ampliar a voz e o campo de acção da UNAoC. Os primeiros anos após o seu lançamento foram marcados por um forte dinamismo e uma grande expectativa em relação à sua capacidade de “construir pontes entre as sociedades, fomentar o diálogo e a compreensão e forjar a vontade política colectiva de abordar os desequilíbrios do mundo”, tal como indicado no relatório fundador.

De tal forma que, entre 2007 e 2013, o número de membros da Aliança passou de 44 para 138, dos quais 114 Estados e 24 organizações internacionais, um crescimento muito rápido que acentuou as fragilidades e as limitações funcionais da iniciativa face à ambição dos seus propósitos. Um gigante com pés de barro era a imagem crítica que Sampaio gostava de evocar para suscitar a necessidade de encetar a indispensável fase de consolidação da UNAoC.

Uma outra preocupação recorrente nele era a questão da necessidade de produzir resultados tangíveis: embora reconhecendo, como dizia amiúde, que é sempre melhor ouvir loas à paz, à tolerância e à concórdia do que atirar pedras uns aos outros, a UNAoC não se podia contentar em ser um clube de discussão alheado das realidades no terreno. Por isso, advogava o reforço de uma interligação íntima com outros programas e iniciativas da agenda das UN e uma aposta forte no seu papel próprio para o reforço de uma verdadeira cultura da paz, da prevenção dos conflitos e da reconciliação em situações de pós-conflito, mas também para a preservação da diversidade cultural enquanto quarto pilar do desenvolvimento sustentável

Ao cabo de quase seis anos ao leme da Aliança, Sampaio, que via na alternância das lideranças um factor vital de renovação, entendeu ser tempo de passar o testemunho, ciente de que, apesar do caminho feito, muito havia por fazer, num mundo cada vez mais complexo que exigia da UNAoC uma capacidade de resposta à altura dos desafios, sempre maiores e mais prementes, provavelmente sem nunca ter imaginado o abismo a que, nos nossos dias, o planeta e a humanidade iriam chegar.

Parece-me indubitável que, mesmo assim, não hesitaria em advogar que não necessitamos de mais “divisões militares”, mas sim de mais e melhor soft power, de que as UN são fiéis depositárias e garante último, para defrontar os desafios da segurança, do desenvolvimento e da paz. Uma Aliança das Civilizações 4.0 precisa-se.


Por ocasião do X Forum da Aliança das Civilizações

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