“Os Dias da Revolução” – uma colecção sem filtros

“Reconheço a singularidade da colecção, julgo que nunca antes em Portugal se tinha assistido a uma produção editorial tão rica e imediata em torno de um acontecimento político.” Adelino Gomes

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São sempre escassos os fragmentos que nos chegam do passado através de memórias pessoais, sempre tão selectivas, ou das que foram partilhadas por outros. Estas, que no seu conjunto são o que estrutura e consolida a nossa memória colectiva, dependem de múltiplos acasos. Do fotógrafo que estava lá, da boa ou má conservação dos arquivos que recolheram e classificaram imagens, textos, gravações áudio, mas sobretudo da iniciativa de editores, escritores e jornalistas.

Quando passam 50 anos sobre o 25 de Abril, é importante não nos ficarmos apenas pela revisitação das imagens e dos registos sonoros que se tornaram icónicos. Se a realidade se constrói por camadas, o que recolhemos da memória da revolução que refundou o país ainda é insuficiente, ou não tivessem sido aqueles dias transbordantes de acontecimentos, como afinal o são todos os que se vivem em períodos de excepção.

Ao resgatar do esquecimento esta colecção, 25 de Abril: Os Dias da Revolução, de 10 livros, que se encontravam na quase totalidade fora do mercado, o PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, acrescenta muito ao que sabemos. Aos que viveram os dias da revolução, ajudará a iluminar ângulos cegos na memória. Àqueles que não testemunharam esse período da nossa história recente, oferece um conjunto vibrante de imagens, depoimentos escritos sem palavras da autoria dos 50 repórteres fotográficos que deram corpo e alma à colecção.

Adelino Gomes, que foi convidado para escrever um editorial aquando do lançamento deste conjunto de livros, há cerca de cinco décadas, entusiasmou-se. Escreveu então: “… este livro dos camaradas da fotografia, mais do que um documento histórico, é o testemunho do que quiseram os que forçaram a História no 25 de Abril”.

Nesse editorial, que começa com a transcrição dos versos “Grândola/Vila Morena/Terra da fraternidade/O povo é quem mais ordena/Dentro de ti, ó cidade…” realça bem o papel fundamental dos seus camaradas de profissão: “Muito povo nas ruas da Baixa. Alguns jornalistas tinham conseguido ultrapassar a barreira dos tanques e atiradores de infantaria e subiam agora para uma viatura militar, descoberta, posta à disposição pelo comando da força que ocupava o Terreiro do Paço desde as cinco e trinta desse dia 25 de Abril de 1974. Ia começar a aventura inesquecível de um grupo de trabalhadores da Imprensa que, incorporados numa coluna militar, reportariam o entusiasmo do povo e a coragem, generosidade, paciência e simpatia dos soldados, furriéis e alguns oficiais na gloriosa marcha sobre o Carmo. Aventura vivida desde há horas já por outros camaradas da Informação que, um pouco por toda a cidade, registavam em blocos de notas, em máquinas fotográficas, nos gravadores, a queda, minuto a minuto, dos baluartes mais ferozes do mais retrógrado dos regimes políticos europeus. Os militares e o povo unidos, solidários, cooperantes, iriam ser heróis maiores dessa reportagem colectiva. Não havia ângulos a preparar porque o entusiasmo e a beleza estavam em todos os rostos, em todas as ruas. Não havia depoimentos a procurar porque os gritos de ‘Vitória’, ‘Vitória’ irrompiam de todas as gargantas, em todas as praças, em todas as esquinas, em todas as casas. E assim pelo dia fora enquanto se acabavam os rolos, as fitas e as moedas de cinco tostões para o telefone (…) Soldados, populares e jornalistas do mesmo lado, esquecendo uns que estavam para combater, os outros que deviam cuidar da sua segurança e os últimos que a caneta, a máquina fotográfica e o telefone são para gravar”.

Empolgado, Adelino Gomes não poupou nas tintas, pintando com a vivacidade das memórias então ainda recentes e muito garridas o quadro onde também ele cabia, pois nesse dia estivera de serviço a cobrir os acontecimentos.

Todos estes livros começam com a memória do “dia inicial inteiro e limpo”, como o descreveu tão bem Sophia de Mello Breyner, mas seguem acompanhando o curso dos acontecimentos, lendo nos rostos e nos murais – que são os rostos da cidade – novas emoções. O PREC e toda aquela intensidade, depois o que por alguns poderá ser chamado de anti-clímax e por outros tão simplesmente de normalização da democracia. As câmaras destes 50 fotógrafos captaram tudo isto, substituindo-se às palavras, sempre tão subjectivas. Roubando provas desse passado recente, instantâneos que nos mostram agora, à distância de 50 anos, tudo o que sabemos, tudo o que esquecemos, tudo o que aprendemos e também tudo o que distorcemos. Porque as imagens captadas pelas câmaras de fotojornalistas têm a particularidade de ser muito fiéis à realidade. Fotocópias do passado, guardam-no, mantendo uma pureza de que a nossa memória é incapaz.

Adelino Gomes, que escreveu há cerca de 50 anos aquele editorial apaixonado a propósito da primeira edição da colecção que a partir de dia 25 de Novembro é relançada com o PÚBLICO, considera esta obra “uma das mais autênticas representações do ‘calor do momento’ que se vivia nos primeiros meses da revolução’”. Por terem sido editados durante os anos de brasa, “sem os filtros do tempo e da reflexão académica”, todos estes livros “são documentos vivos. Eles capturam a emoção, a incerteza e a esperança que atravessava a sociedade portuguesa no pós-25 de Abril”, acrescenta.

É este carácter imediato de “Os Dias da Revolução” que lhe dá uma força e autenticidade únicas: “Essa imediatez permite ao leitor revisitar os acontecimentos com a mesma intensidade emocional que os actores da revolução sentiram”, refere ainda o jornalista antes de concluir que esta é “uma obra crucial para compreender o momento histórico da revolução”.

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