O jogo entregue à sua sorte

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A prevalência de adição ao jogo, de jogo ilegal e jogo problemático são fenómenos que, atentos os riscos de saúde e ordem pública, tornam a indústria de jogo um sector especialmente regulado, cujas especiais necessidades de protecção dos mais vulneráveis justificam um quadro excepcional às liberdades fundamentais e ao princípio de reconhecimento mútuo consagrado à generalidade das actividades económicas, abundantemente reconhecido em vasta jurisprudência nacional e europeia.

Vale isto por dizer que os Estados têm, sobre estes fenómenos, especiais atribuições e competências na sua prevenção, sancionamento e tratamento, em especial quando as evidências disponíveis atestam uma tendência de crescimento no quadro europeu com o aumento de operadores de jogos de fortuna e azar associado à progressiva abertura dos mercados de apostas nas últimas décadas.

A criação de autoridades administrativas independentes dotadas de recursos e competências para proteger os consumidores e garantir a conformidade dos operadores com regimes de regulação exigentes nos mecanismos de prevenção de branqueamento de capitais, de conhecimento dos consumidores (KYC), de escrutínio da sua capacidade económica (affordability checks) e integridade das operações financeiras são, entre várias outras, dimensões de enorme relevância para garantir que, de alguma forma, também a regulação acompanhe a rápida evolução desta indústria, incutindo confiança a todos os intervenientes no mercado.

Portugal, porém, permanece alheado desta tendência generalizada nas principais jurisdições europeias, perpetuando um mercado balofo, proteccionista dos interesses e dos actores instalados, há muito focado na arrecadação de receita para, por via do jogo, subsidiar actividades de interesse público suborçamentadas no Orçamento do Estado, para além de alimentar a máquina do Turismo de Portugal.

No jogo de base territorial, os mesmos concessionários de sempre figuram como meras repartições públicas de arrecadação de receita, debatendo-se para tudo fazerem a fim de atingirem objectivos financeiros estabelecidos em contratos de concessão há muito ultrapassados pelas modernas dinâmicas de mercados integrados da indústria do jogo.

Não será, pois, difícil, adivinhar à custa de quem e do quê?

Concretamente, quando defraudar o Estado e as obrigações fiscais têm pesadas sanções, diametralmente assimétricas e desproporcionais àquelas que a lei prevê para o defraudar de apostadores, inúmeras vezes mergulhados em intermináveis e lesivos processos para garantir o que devia ser primordial: a célere e eficaz sanção de operadores perante falhas, por vezes recorrentes e impunes, na protecção de consumidores e de vulneráveis.

Não é possível inverter esta visão parcelar, limitada e enviesada, frequentemente verbalizada por decisores sem pejo em afirmar a necessidade de criar mais um produto de jogo para financiar um relevante projecto de interesse nacional, sem uma política de jogo centrada no cidadão/consumidor em que o Estado deixe de ser o principal adicto ao jogo e às suas receitas.

Onde, como se verifica cada vez mais no mercado europeu, as autoridades reguladoras não têm contemplações perante a fraude e práticas lesivas dos operadores, impondo pesadas sanções e tornando-as públicas e fundamentadas.

Onde existam linhas de denúncia e protecção dos apostadores, permitindo-lhes acompanhar o seguimento das suas reclamações, as medidas correctivas e as sanções aplicadas.

Mas também onde se imponha a implementação de eficazes medidas de identificação e reporte de operações financeiras suspeitas através das actividades de jogo e apostas, mantendo registos precisos das transacções e conduzindo procedimentos de diligência devida aos clientes.

Bloqueando transacções suspeitas ou vetando operações de aquisição de capital accionista de operadores licenciados por pessoas físicas ou jurídicas, directa ou indirectamente, envolvidas em infracções sérias e listas de sanções.

Canalizando parte de uma receita crescente para financiar a investigação, a educação e o tratamento da adição ao jogo como um problema de saúde pública, que efectivamente é cada vez mais, como há muito consagrado em manuais de referência (DSM) e estudos epidemiológicos.

Até lá, como diariamente constata o Observatório do Jogo Responsável, o jogo em Portugal continua, ele próprio, entregue à sua sorte, com aqueles que o consomem.

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