O professor é um trabalhador por conta de outrem: o encarregado de educação

Devo eu exercer a minha profissão em função das críticas dos leigos em ensino, grupo no qual se encontram a maioria dos encarregados de educação?

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Deixei o carro no meu mecânico, em quem confio na totalidade, sei que é preciso substituir uma qualquer peça e o apoio do motor, também pedi lá na oficina para mudarem as escovas do pára-brisas. Percebi que a peça para substituição é uma tal de "válvula EGR". Não sei para que serve, não quero saber. Disto tudo só me interessa não ficar apeada, de resto, o que concerne a mecânica da coisa, deixo isso para quem sabe.

Ora, a minha especialidade é o ensino. Estudei, apliquei o que aprendi e fui avaliada até me tornar profissional, certificada por uma universidade e, por conseguinte, pelo Ministério da Educação. Tal como o meu mecânico arranja o meu carro, eu arranjo as aprendizagens dos meus alunos. Tal como ele previne as falhas do meu veículo, eu devo prevenir o insucesso dos meus discentes — claro que nem sempre consigo, pois apenas posso chegar até um certo ponto e, verdade seja dita, quando o meu carro falha eu não culpo o mecânico. Quando os meus alunos falham, será que os seus pais me culpam?

Alguns não. Confiam em mim, tal como eu confio no senhor Francisco, o meu mecânico. Outros irão culpar. Mas devo eu exercer a minha profissão em função das críticas dos leigos em ensino, grupo no qual se encontram a maioria dos encarregados de educação?

Se eu ligar agora ao senhor Francisco e disser “não troque a válvula, ela está boa”, vai ele ceder à minha exigência, sabendo que estarei a colocar o meu veículo vulnerável a uma avaria de maior dimensão? Ou vai ele, com muita paciência, explicar-me a verdadeira necessidade desta peça e o porquê de a trocar?

A verdadeira questão é: será o trabalho do senhor Francisco lidar comigo, ou com o meu carro? Dirão: “Os dois, claro. És cliente, ele o prestador de serviços.”

Mas quantos carros e respectivos donos de carros tem ele em mãos? Fará sentido perder o seu tempo a resolver as minhas indagações de leiga?

Entendem, certamente, onde quero chegar: a certa altura, os professores começaram a trabalhar para os pais. E vieram os papéis, e vieram os emails, e tudo é dito, demonstrado, explicado, repetido, assinado.

Um dos grandes desassossegos são as chamadas “Medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão”, segundo o DL 54/2018 “as medidas universais são mobilizadas para todos os alunos”. São passe livre que dá ao professor uma autonomia verdadeiramente útil. Posso adaptar processos, ferramentas de ensino-aprendizagem e a avaliação conforme as exigências de cada aluno. Estes podem ser avaliados de formas diferentes e tudo isto para que tenham oportunidade de suceder: o professor calibra o desafio que coloca ao aluno e este continua a ser desafiado, mas torna-se mais permeável ao confronto insucesso. Mas muitos professores ainda têm receio do questionamento dos pais.

Estes, por vezes, reclamam por não entenderem a avaliação, quando dificilmente irão entender, pois a sua especialidade não é ensino, avaliação, pedagogia ou didáctica. E quando reclamam os professores e direcções ouvem, cedem, acalmam os ânimos, passando a explicar por A mais B a cada pai o que fazem em sala de aula. E o professor deixou de trabalhar para os alunos, para a escola, para o Ministério. Agora o professor é um trabalhador por conta de outrem: o encarregado de educação.

Entretanto o senhor Francisco não conseguiu trocar a válvula EGR do meu veículo automóvel — passou a tarde sentado na sua secretária, ao telefone comigo e com outros clientes, porque o cliente tem sempre razão, a esclarecer as nossas dúvidas, a explicar o que é uma válvula EGR e a educar-nos sobre o porquê de a trocar.

Eu, por minha vez, não preparei as aulas da semana que vem. Passei a tarde na minha secretária, a preencher uns papéis e a fazer cruzes noutros, a registar textos explicativos no programa informático e a preencher tabelas, tudo para ensinar aos pais como eu ensino e, sobretudo, como avalio.

Esta cultura de permanente justificação do professor ganhou uma dimensão tremenda, ocupando grande parte das nossas horas laborais. A desconfiança no professor, que por consequência o aluno também desenvolve, coloca interesses e preocupações que deveriam ser residuais à frente das querelas verdadeiramente importantes no ensino. A escola pública está em apuros, é facto, mas tenhamos consciência de que tal como todos contribuem para a sua cura, todos contribuem também para as suas doenças.

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