O “gene gay” ou o gene para gostar de ancas largas

Atenção: a eugenia está de volta. Está disfarçada de investigação científica, mas as ideias que conclui e as simplificações que faz são as mesmas do costume.

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Gene gay não existe DR
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A vida leva-nos a sítios inesperados. Um desses sítios, para mim, foi as traseiras de uma igreja no Maryland rural, numa sessão nocturna para os seniores locais. Estava ali com uma equipa de geneticistas da Universidade Johns Hopkins para discutir genética e contribuição para doenças relacionadas com o envelhecimento. Durante a apresentação, um típico americano de boné, camisa aos quadrados e suspensórios despertou do seu silêncio. Declarou que agora sim, finalmente compreendia um artigo que tinha lido nas notícias e como a genética contribuía para doenças como a demência de Alzheimer, a doença de Parkinson e... a homossexualidade.

A última parte da frase deixou-me estupefacta e com aquele aperto no estômago de descrença. A indignação cresceu dentro de mim. A minha anfitriã manteve a calma e prosseguiu com a apresentação. No caminho de volta de carro para Baltimore reflectimos sobre o incidente.

Para aquele homem, o conceito de "gene gay" que aparece aqui e acolá nas notícias significava que a homossexualidade era uma doença genética. Para outros, a mesma ideia poderia significar que ser gay era algo tão natural e predeterminado geneticamente como ter olhos castanhos, uma parte intrínseca da identidade, e algo mais que uma moda como alguns querem convencer. Continuamos a conversa discutindo como as simplificações dos media não embarcam a complexidade destes temas.

Esta experiência foi ecoando na minha mente ao longo dos anos. Quando comecei a leccionar, comecei a partilhar regularmente esta história, para os alunos reflectirem sobre as interpretações possíveis de existirem genes gay, e como conversar sobre elas com diferentes populações. A ciência, por mais poderosa que seja, é um instrumento delicado. As suas descobertas podem ser mal interpretadas, distorcidas e utilizadas para justificar preconceitos.

Nas últimas semanas, este tema da interpretação preconceituosa de dados genéticos tornou-se ainda mais relevante. Tivemos um dos maiores escândalos de sempre na área da genética humana: uma investigação do The Guardian revelou que autoproclamados cientistas da raça do Human Diversity Foundation estavam a obter ilegalmente dados do UK Biobank, uma base de dados de informação genética e de saúde de voluntários britânicos.

O objectivo deste grupo é chegar a conclusões predeterminadas sobre existência de raças humanas. As conclusões dos membros deste grupo são as esperadas: tentam provar que as pessoas com ascendência não-europeia são menos inteligentes, menos capazes e mais violentas. No meio ainda há propostas de associação entre a probabilidade de se achar atraente um certo rácio mamas-anca, o tamanho de pénis e testículos. Temas clássicos de pseudociência.

Este episódio ilustra a importância da ética na investigação científica, especialmente quando se lida com questões sensíveis como a existência de raça e a identidade de uma pessoa. Foi importante neste contexto as sociedades europeia e britânica de genética humana terem vindo a público dizer que o conceito de raça é uma construção social, histórica e política sem apoio pela evidência científica moderna.

A ciência não é neutra, concluo com os meus alunos. Uma vez um dos meus alunos resumiu dizendo que as perguntas que fazemos, os dados que recolhemos e as conclusões que tiramos são influenciados pelos nossos valores, crenças e preconceitos. O homem que falou nas traseiras da igreja no Maryland apenas usou a informação que adquiriu para apoiar os preconceitos que já tinha. A complexidade da identidade humana, incluindo a orientação sexual e a raça, desafia as classificações simples e as generalizações. A ciência pode ajudar-nos a compreender melhor estas questões, mas nunca deve ser usada para justificar a discriminação ou o preconceito.

Ao deixar a sala de aula, desligo o computador e as luzes, com a sensação de dever cumprido. Transmiti conhecimentos, plantei sementes de curiosidade e inspirei a busca por respostas. Não sinto o aperto no estômago que tive naquela noite no Maryland. No entanto, a ciência é uma constante aprendizagem e muitas perguntas ainda aguardam respostas, desde os mistérios do universo até aos desafios da sociedade. Mesmo assim, tranco a porta e deixo o edifício com optimismo. A próxima geração está preparada.

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