IA: eficiência é sinónimo de felicidade e justiça?
No Homem a fome de justiça dificilmente desaparece, tal como o sentido de dignidade. Cabe à Cultura e à Ética preservar limites, propor baias e ao Direito e à Política aplicá-las.
Com frequência espero na fila que uma pessoa ao balcão da farmácia ou do banco termine um diálogo prolongado com o funcionário. No final essa pessoa despede-se afectuosamente e a fila suspira de alívio, mas outro diálogo poderá surgir a seguir… “Seja digital” e não vá para a fila, penso eu. Agências bancárias disponibilizam máquinas “inteligentes” que pretendem ser o substituto de funcionários. Os serviços públicos deixam de ter atendimento público, ou fazem por isso. “Não utiliza a nossa aplicação?”. Um convite simpático para aparecer menos em filas, para compras e serviços à distância, “em linha”. Na verdade, os “sítios” e as aplicações digitais são alternativas “desmaterializadas” cada vez mais obrigatórias para este fim. Uma libertação de “trabalho” monótono? A conversa presencial parece ser perda de tempo e, logo, de dinheiro, logo de eficiência. A eficácia ancestral do “face a face” e a empatia natural a afastarem-se. Estaremos a ficar mais felizes? Pode ser que sim!
Nos sistemas digitais, a inteligência artificial (IA) está cada vez mais presente. A IA proporciona resultados e decisões rápidas com base no acesso a dados. A eficiência não é só um conceito económico, técnico. Confunde-se com poderes e vantagens não visíveis, assimétricas. Um autor que nasceu há 300 anos, bem longe das novas tecnologias, identificou desejos do Homem: “Se eu tiver…quem tenha consciência moral por mim, um médico que decida a minha dieta etc., então não preciso de me esforçar. Não preciso de pensar, quando posso simplesmente pagar, outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida” (I. Kant, O que é o Iluminismo?, 1789). Estaremos assim, no séc. XXI, a caminho deste estado de mais felicidade humana pelo efeito da eficiência tecnológica? Pode ser que sim!
A felicidade é um conceito escorregadio e fugaz. Não é suficiente atenuar as infelicidades existenciais ou inevitáveis que afligem os nossos corpos. Descobrir curas para doenças e prolongar a vida a todos proporciona felicidade. Mas cada vez mais exacerba-se a satisfação de novos desejos, de novidades. Vemos, seja onde for, pessoas, isoladas ou em grupo, agarradas a “fones espertos” ou a ecrãs. Poderá ser um indicador de mais felicidade? Ou será uma necessidade? Será que a IA substituirá desejos anteriores e vai proporcionar novas e duradouras felicidades ou dependências? Pode ser que sim!
O economista Schumpeter (1883-1950) anunciou os efeitos positivos das inovações técnicas na economia, na competitividade, numa “destruição criativa”. Nada de novo, nem definitivo! É a tendência que registamos agora nos mercados, nas empresas: o não ficar para trás sem IA. Anunciam-se previsões de aumentos do PIB dos países, mas a felicidade está associada aos aumentos efectivos, reais, dos rendimentos médios das pessoas face ao custo de vida. Avaliaremos isto com o tempo.
Poderemos ser mais felizes quando o nosso nome é substituído por números, códigos, palavras-passe ou endereços electrónicos? Pode ser que sim! O Homem adapta-se a quase tudo. Primo Levi disse-nos e mostrou isso. Mas no Homem a fome de justiça dificilmente desaparece, tal como o sentido de dignidade. Cabe à Cultura, à Ética a tarefa de preservar limites, de propor baias face a excessos e ao Direito e à Política o dever de as aplicar. O regulamento de aplicações da IA da União Europeia (2024) é um passo esperançoso neste sentido.
Para garantir que as decisões da IA são justas não basta a eficiência, será necessário exigir uma explicação, uma justificação, e evitar a submissão automática de decisões fundamentais para pessoas. Como refere Freitas do Amaral numa síntese do Princípio da Responsabilidade (1979) do filósofo H. Jonas, os primeiros deveres éticos devem ser: “visualizar os efeitos de longo prazo” e “mobilizar o sentimento adequado à percepção dos males futuros” (D. Freitas do Amaral, História do Pensamento Político Ocidental, ed. de 2023, p.744).
Muito se tem escrito e comentado sobre os potenciais efeitos da IA na privacidade, na verdade, no controlo social, nos empregos, entre outros. Selecciono o possível efeito epistemológico, no pensamento humano, com o uso intensivo de exomemórias e exo -“inteligências”. Uma progressiva desvalorização e desuso do esforço nas justificações teóricas substituído pela obtenção fácil de resultados pela IA e aceites como mais eficientes e rápidos. Um novo empirismo? “Menos inteligentes, mas mais felizes”? Pode ser que sim ou talvez não!
Um analista de riscos ou de ética não deve ser optimista, nem pessimista. Deve identificar efeitos plausíveis e propor precaução, prevenção e prudência. A Engenharia tem um objectivo: proporcionar mais felicidade com a resolução de problemas. Mas ocorreu uma inversão: o Homem é que passou a estar subordinado à técnica a qual passou de auxiliar a substituto. Depois do desencantamento, a eficientização forçada do mundo pode colocar em perigo a felicidade e a justiça como a conhecemos. O escritor I. Asimov pressentiu e transmitiu algo, em 1951, no seu pequeno conto de ficção The Fun they Had: a perda de felicidade num ensino futurista sem professor e colegas humanos. Sugiro a sua leitura (uma vantagem do digital: o texto está na internet).